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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Um quiasmo... no muro.

        A prova de que os recursos retóricos andam aí pelas ruas.

       Ou melhor, nos muros. Não se diga, portanto, que as figuras de retórica são para os textos literários, porque é bem redutor tal pensamento.
       Basta uma caminhada para nos cruzarmos com uma delas:

Quiasmo em paredão junto à praia - na Granja (Foto VO)

      Ao estilo vieirino (que tantas vezes recorreu ao quiasmo para expressar um pensamento moralizador nos seus sermões), veja-se uma repetição configurada numa construção reveladora de um paralelismo cruzado (se figurar em linhas prosaicas ou versos distintos) ou de uma ordenação contrária (do tipo AB - BA). Se o Homem come para viver, é bom que não viva para comer. Há como que um efeito de espelho, de reflexo, partindo a frase anterior em duas; um pensamento não deixa de ficar marcado: o da sobrevivência que não deve dar a lugar a excessos ou vícios.
     Há, portanto, uma simetria sintática a traduzir uma máxima ou moralidade significativa - prova de como a forma está de mão dada com o conteúdo para que tudo faça (algum) sentido.
     Com o exemplo fotografado, o primado da sensibilidade firma-se (só não sei se houve a mesma no ato de pintar a pedra de forma algo ousada). Talvez não resulte em vandalismo puro porque a verdade do escrito impõe-se face à frieza da racionalidade ou da pedra.

     Se são figuras retóricas, são da língua - falada ou escrita. Nem que seja no paredão de uma localidade próxima.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Eis o poder da antonomásia

       Isto de pensar que a literatura é que tem figuras de estilo é um erro.

       Para não falar nos enunciados metafóricos que produzimos no dia-a-dia (como o 'jogar em casa / jogar fora'), ou os de natureza mais metonímica (como o 'beber um copo'), considere-se ainda os que revelam outra figura retórica: a antonomásia.
Publicidade com muita retórica e inteligência 
(imagem colhida do Facebook)
     Por definição, trata-se de uma figura retórica de pensamento que consiste em empregar um nome próprio como um nome comum, transmitindo a generalização de um predicado / propriedade / caraterística que pertence, por excelência, ao nome próprio, ou, inversamente, em utilizar um nome comum para designar um nome próprio. 
     O conhecimento enciclopédico-literário e cultural permite entender que “Tartufo”, por extensão, refere-se a um “hipócrita”; “Messalina”, a uma “mulher devassa”; inversamente, “o primeiro rei luso” designa “D. Afonso Henriques” ou "o Salvador do mundo", Cristo (para os crentes católicos cristãos, por certo). A antonomásia constitui-se, nesta medida, pela expressão ou pela manifestação próxima ao que é uma metonímia, sem esquecer a forma da perífrase (como nos dois últimos casos). Dizer que alguém me saiu cá um Sócrates é tomar o nome próprio por uma propriedade que 'nos sócrates desta vida' é, pela virtude, convocar o papel filosófico e as qualidades referenciais do saber e da sabedoria; pela ausência dela, relembram-se casos que não nos deram felicidade nenhuma nas más decisões políticas (aqui o Sócrates é já outro, no tempo, no espaço e no âmbito de ação!).
       É sabido como a publicidade recorre frequentemente a mecanismos linguísticos e retóricos capazes de causar impacto, efeitos pragmático-estilísticos que exploram a estranheza, o insólito, o saber partilhado, o jogo interpretativo desafiante e desafiador na construção de significado. O jogo de conceitos cabe neste trabalho linguístico que se revê no anúncio publicitário à direita.
      O conceito 'machado' não é o do instrumento de corte, mas bem que o podia ser (pela força de luta e do acesso desejado ao saber, "abrindo a cabeça", a mentalidade à cultura que dignifica o ser humano); Machado (de Assis) é um nome próprio, um cânone cultural e literário de expressão portuguesa, que tem essa potencialidade: a de abrir, intervir, dar a ler um mundo mais digno, atento àquilo de que o mundo pode e deve evitar / aspirar - um Machado escritor que é homónimo de um 'machado' para a construção (da inteligência, da sabedoria) do ser humano.

      Brincadeiras com (ou de) muito saber, onde literatura e linguística se mostram inseparáveis.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Recursos...

      ... expressivos, anote-se.

      A questão é pertinente, merecendo apontamento nesta "carruagem".

       Q: Bom dia, caro Vítor.
       Só um pequeno esclarecimento sobre esta questão: "E como anoitecia cedo, havia outro remédio senão ir agora a mata - cavalos a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar." Considerando a instrução "Identifica um recurso expressivo presente na expressão 'com o coração a refilar', considero metáfora, mas posso também considerar personificação? Abraço. Grato

     R: É assumida como natural, no campo literário, a relação de várias figuras de estilo, em termos do pensamento traduzido, às duas figuras-mãe: a metáfora e a metonímia. Dificilmente se falha quando uma destas é convocada.
      No caso em concreto, e uma vez que se trata apenas de uma instrução de identificação, deverão ser aceites ambas as respostas (metáfora e personificação). Na verdade, se a metáfora se encontra associada ao termo "coração", por motivos do sentimento e da emoção (coração como metáfora de sentimento), a personificação está focada na intencionalidade relacionada como o termo "refilar". O coração a refilar é a ideia de um sentimento personificado, com características humanas e o sentido da intencionalidade - com a intenção de contrariar, criticar, reagir.
       Fosse a questão outra, com os alunos a terem de explicitar a expressividade da figura de estilo, haveria a possibilidade de condicionar a resposta em função da justificação a dar.


      Não raras vezes nos deparamos com segmentos textuais, nos quais confluem vários recursos expressivos e/ou estilísticos. Sempre que tal acontece, a abertura a vários cenários de resposta é atitude a assumir, desde que os argumentos aduzidos na resposta sejam compatíveis com o recurso / a figura selecionada. Daí que, mais do que a identificação, seja desejável a explicitação da expressividade ou dos efeitos obtidos com o uso de tal recurso na mensagem.

       Claro que 'recursos expressivos' é uma designação mais abrangente para processos bem além das figuras de estilo; porém, no que a estas últimas diz respeito, personificação e metáfora andam bem alinhadas no exemplo transcrito.

sexta-feira, 9 de março de 2018

A propósito de anáforas... bem distintas.

      Feita a devida distinção entre o mecanismo linguístico de retoma e a figura de retórica, tudo vai bem.

       O problema está mesmo quando os dois processos são confundidos.

      Q: Quando aparecem palavras repetidas ao longo de uma frase, pode dizer-se que estamos perante a figura de estilo da anáfora? Estou a considerar o seguinte exemplo: "Quando a cidade acorda, não há cidade com a paz do campo. Não há cidade com paz."

      R: Não generalizaria a questão desse mundo, particularmente no que à figura de estilo diz respeito. Em termos de coesão do segmento proposto, pode dizer-se que há uma relação anafórica na repetição do termo 'cidade', mas a questão, neste caso, fica centrada na construção de uma cadeia de referência baseada na reiteração ou repetição lexical. Os três termos não são exemplo de anáfora como figura de estilo, mas de uma repetição sinónima de retoma (do já referido) que pode eventualmente resultar sugestiva no diferencial e no destaque que esse espaço adquira no texto em que surge - ainda assim, não a anáfora como recurso estilístico, por não se tratar de repetição de palavra em frases (ou versos, no caso de um poema) ou sequências sucessivas.
     Em termos de estilo, o exemplo que propõe pode apenas ilustrar a figura de estilo da anáforana construção 'não há cidade com [...]. Não há cidade com', na medida em que persiste, em frases / orações sucessivas, uma cadência de escrita apoiada na repetição não só do vocábulo 'cidade' mas também de uma construção sintática ('não há cidade com'), colocada no início de orações principais e tomada como fator cadenciado e sucessivo de construção.
     Não tomaria, portanto, o uso do primeiro 'cidade' na relação com os seguintes como exemplo de uma figura de estilo, mas sim de um mecanismo coesivo baseado num processo referencial anafórico (enquanto mecanismo linguístico). Aproximaria o segundo 'cidade' do terceiro (no seio de toda a sua construção frásica similar) enquanto efeito estilístico, sugerido por um ritmo cadenciado de segmentos sintáticos sucessivos (seja em prosa seja em verso), familiar a uma retórica literária interessada na exploração de efeitos expressivos e significativos motivados por uma intencionalidade distinta de sentidos mais literais, denotativos e/ou imediatos.
      Lausberg, no seu Elementos de Retórica Literária, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian ([1963] 1993: 174-175), apresenta a figura de estilo como sendo do tipo "... / X... /X...", em que X é a palavra, expressão ou construção repetida em segmentos sucessivos. É este o tipo que se revê em "..., não há cidade... Não há cidade...".

      Um mesmo nome (anáfora) não quer dizer que signifique o mesmo ora quando de mecanismo linguístico se fala ora quando de processo retórico e estilístico se trata.

domingo, 31 de dezembro de 2017

Votos pouco convencionais

       E depois do Natal, a entrada no novo ano.

     Avisa-se o leitor de que a imagem seguinte pode afetar algumas pessoas mais suscetíveis e/ou causar alguma incredulidade:


Imagem colhida a partir de http://geradormemes.com/meme/drk6hr

    Partilho uma forma original, embora pouco convencional, de formular os votos de umas boas entradas e de um bom ano. É o que dá brincar com a metonímia e a homofonia

       A bem do riso, do cómico e da boa disposição que o novo ano possa trazer. Bom 2018!

domingo, 1 de novembro de 2015

Ai, Pessoa! Como nos desafias!

      Começa bem o mês que, no seu final, tem Pessoa bem marcado.

     Nada como principiar com o poeta da Geração de Orpheu. Na sequência do trabalho com um poema, impôs-se a dúvida:

      Q:  Pode tentar classificar-me a oração "Que eu fosse outro" em "Tivesse Quem criou / O mundo desejado / Que eu fosse outro que sou,”Dei um nó.

      R: Os versos pessoanos transcritos (in "Guia-me só a razão") fazem parte de uma composição poética pautada pela constatação ora da consciencialização dos limites e do exercício da racionalidade ora da afirmação do plano da transcendência.


       É na segunda quadra que eles podem ser lidos, numa construção sintática densamente complexa cheia de hipérbatos, de anástrofes e de elipses, Nesta sequência, interessa, pois, reconstruir a ordem típica das palavras e explicitar a lógica discursiva associada ao pensamento transmitido. Ter-se-ia, então, na ordem padronizada, a frase 'Quem criou o mundo ter-me-ia criado outro, (se) tivesse desejado que eu fosse outro (diferente do) que sou'. 
       "Que eu fosse outro", na reconstrução feita, corresponde a uma oração subordinada substantiva completiva (a funcionar como complemento direto, introduzido pela conjunção completiva ou integrante 'que'), relativamente ao verbo 'desejar' configurado no pretérito mais-que-perfeito do conjuntivo ("tivesse... / ... desejado").

      No meio de tanta subordinação sucessiva (para a subordinante 'ter-me-ia criado outro'), há todo um processamento retórico e lógico-discursivo a complexificar a classificação de uma pequena palavra ("que") colocada no meio de um mar de complicações. Espero ter ajudado a desatar o nó.