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sábado, 22 de março de 2025

Onze anos depois

     Regresso a Cabanas de Viriato e ao palacete, hoje museu, de Aristides Sousa Mendes.

   Já muito escrevi acerca de uma das personalidades mais relevantes da História de Portugal do século XX, internacionalmente reconhecida como um "Justo entre as Nações", mas que ainda muitos teimam ver apagada, na permanência de uma condição que a jornalista Diana Andringa apelidou de "O Cônsul Injustiçado".
   Volto ao tema, pela visita hoje levada a cabo à casa que vi já bem degradada e, presentemente, se dá a ver restaurada, acolhendo o Museu Aristides de Sousa Mendes. Não fossem os sinais interiores (denunciadores da injustiça, da perseguição, da miséria para que foi conduzido), dir-se-ia que, pelo exterior, um libertador do sofrimento e da desgraça está mais do que enaltecido. Não será nunca o caso.
    Guiados por um familiar seu, foram cerca de quarenta participantes a partilhar uma oportunidade de aproximação / identificação com uma causa que devia ser a de todos os homens: generosidade e grandeza de alma ao serviço do salvamento de povos ostracizados, conduzidos, por uns loucos despóticos do tempo, para um fim indigno.

Contrastes que o tempo produziu (montagem fotos VO)

   Muito trabalho foi já desenvolvido para um conhecimento mais efetivo do que representou, no seu tempo, este diplomata português, cujo desejo acabou por ser o de "ficar do lado de Deus contra os homens, em vez de ficar com os homens contra Deus". Num espírito de desobediência consciente, enfrentou e desafiou ordens expressas do ditador António de Oliveira Salazar (contrariando a famigerada Circular 14) e, durante três dias e três noites, concedeu milhares de vistos de entrada em Portugal, para refugiados de várias nacionalidades interessados em fugir de França e de outros países europeus (invadida pelo regime nazi). 
  Pagou caro por isso, e tal é comprovado de várias formas - uma delas, talvez a mais leve, por ter entregado um sobretudo (recentemente readquirido pela fundação para o museu) como forma de pagamento de uma despesa feita para poder alimentar a família.

Uma das salas do museu (primeiro andar) homenageando o Cônsul de Bordéus

   Num mundo que vivia e se digladiava com fortes armas, dizimando seres, Aristides Sousa Mendes empunhou um carimbo, para salvar milhares.

   Perante o vivido no museu e o restauro evidenciado no palacete, falta o passo de divulgação, de requalificação e de revalorização nacional merecidas de um dos seus maiores no período da Segunda Guerra Mundial; alguém que se interrogou sobre a vivência de um tempo tomado de desumanidade e loucura: "que mundo é este em que é preciso ser louco para fazer o que é certo?" Lembrá-lo será sempre pouco para o bem que fez.

sábado, 9 de novembro de 2024

A propósito do Muro de Berlim

      Mais de sete anos passados, vi o muro cuja queda (de há trinta e cinco anos) é hoje celebrada.

   O "Berliner Mauer" foi a barreira física erguida pela República Democrática Alemã (Alemanha Oriental - socialista) durante a Guerra Fria. Circundava toda a Berlim Ocidental (capitalista), separando-a da Alemanha Oriental (socialista), incluindo Berlim Oriental. Além da divisão da cidade ao meio, simbolizava dois blocos e duas visões políticas do mundo: a da República Federal da Alemanha (RFA), constituída pelos países capitalistas encabeçados pelos Estados Unidos da América; a da República Democrática Alemã (RDA), composta pelos países socialistas sob o regime soviético. 
     Iniciada a construção na madrugada de 13 de agosto de 1961, veio a ser derrubado a 9 de novembro de 1989. Em diversos pontos de Berlim pode ver-se, no chão, trilhas com placas de ferro e a inscrição “Berliner Mauer 1961-1989”. 

Placas da trilha do "Berliner Mauer" (Foto VO)

       Marca-se, desta forma, o percurso por onde o muro passava e dá-se visibilidade a uma iniciativa que visa, com o passar do tempo, lembrar uma época que ninguém deve esquecer, no que a motivou e no que representou.
       Por abril de 2017, a par das gruas e dos tubos de drenagem que denotavam as múltiplas construções na cidade, o que restava do Muro de Berlim apresentava, em Kreuzberg, mais de cem pinturas de artistas de todo o mundo, iniciadas em 1990 no lado leste do muro de Berlim. 

Um muro gradeado numa capital em obras (Foto VO)

      Assim vê o turista a designada "East Side Gallery", uma galeria de arte ao ar livre situada junto à margem do rio Spree (no lado leste do antigo muro), fundada após a bem sucedida fusão de duas associações de artistas alemães: a VBK e a BBK. Os membros fundadores foram Bodo Sperling, Barbara Greul Aschanta, Jörg Kubitzki e David Monti. 

O "Beijo Fraterno" ao meio (entre o presidente russo Brejnev e o chefe oriental alemão Honecker),
a simbolizar o fim da cortina de ferro, segundo pintura do russo Dmitri Vrubel
(Foto VO)

      O trecho mais famoso do que resta do muro fica na Mühlenstraße, ao longo do rio Spree, entre a Ostbahnhof e a ponte Oberbaumbrücke.
     Isto de apanhar o muro de Berlim com gradeamento não está com nada, mas foi o que se pôde arranjar. Valeu ter encontrado o "Porto Pirata", escrito ao fundo (em cor azul, claro está!):

A presença de uma grande cidade no muro de uma capital europeia (Foto VO)

       Não esquecer, também, aquele conhecimento que não deixa de ser inspirador no seio de um pensamento que, no mínimo, se revela revolucionário e inconformista:

E esta, hein?! Igualdade e inclusão em múltiplos sentidos, no seu melhor. (Foto VO)

       Das boas lembranças (e boa companhia) de uma viagem à memória histórica de um tempo que passa e hoje se revê com outros muros, não menos segregacionistas (também a derrubar... a bem da arte e da humanidade).

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Mont Saint-Michel

      Qual peregrino, em terras gaulesas, mais precisamente na Normandia.

      Em local fortemente marcado pela espiritualidade, a abadia do Mont Saint-Michel é um exemplo de arquitetura medieval excecional, prova de edificação prolongada ao longo dos tempos (dos séculos XI e XII à construção do claustro e refeitório dos séculos XIII ao XVI).
     A muralha do século XIV configura uma fortificação que, outrora, protegia a ilha das marés e, durante a Guerra dos Cem Anos, das incursões inglesas que atravessavam o canal da Mancha - daí também representar um forte símbolo de identidade nacional.

Vídeo com apontamentos fotográficos do passeio escolar do AEML (Vídeo VO)

    Aclamado local de peregrinação, juntamente com Roma e o Caminho de São Tiago, o Mont Saint-Michel foi percurso das romagens mais significativas do oeste medieval, a ponto de ser considerado uma das mais importantes cidades-santuário europeias.
    Crê-se que os mil e trezentos anos de história do local iniciaram em 708, quando Aubert, bispo de Avranches, mandou construir no monte Tombe um santuário em honra de São Miguel Arcanjo (Saint-Michel).

   Hoje o monumento beneditino recebeu mais um admirador - inclusive da caixinha de bolachas salgadas comprada na Grande Rue. Motivo para regressar um outro dia?

domingo, 17 de abril de 2022

Um grande ovo de Páscoa cracoviano

       Sucedem-se as Páscoas, ano após ano, e os ovos.

      Entre as várias explicações para o ovo e para o coelhinho da Páscoa (que não "foi com o Pai Natal, no comboio ao circo"), a multiplicidade dá para todos os gostos - os mais religiosos, tradicionais, simbólicos, culturais, regionais e até os mais fantasiosos.
       Encontrei uns bem artísticos em Cracóvia, no conhecido Mercado de Páscoa, realizado anualmente na praça central da Cidade Velha, Rynek Główny (praça principal de Kraków). Em cerca de dez dias, as festividades da Semana Santa concretizam-se na exposição de ovos gigantes decorados e na confeção das tradicionais "palms" artesanais de flores e plantas secas, para serem abençoadas no Domingo de Ramos - informações colhidas e vividas em memórias de viagens bem passadas. O colorido da praça é festivo. Os ovos, dispostos em vários pontos da praça, são atração visual assegurada, numa composição e num enfeite de versatilidade cromática notáveis.

Um ovo cracoviano à altura de um ser humano (Foto VO)

      A presença do ovo, desde a Antiguidade persa, traz consigo a perceção do símbolo do renascimento. De regiões como a Ucrânia (muito antes da chegada do cristianismo) ou a China, vem a leitura do alimento e da origem da vida - e, por extensão, da criação do mundo - até à comemoração do fim do inverno. Daí o entendimento do "Páscoa" como "passagem".
       Dos ovos de galinha (cozidos) pintados à mão (que persistem) aos de chocolate (mais recentes e comerciais), muitos séculos aprimoraram o que pôde ter sido a celebração de uma passagem mais familiar e doméstica até se chegar aos requintes da doçaria e pastelaria francesas, sem esquecer que Eduardo I de Inglaterra banhava ovos em ouro para presentear os seus súbditos favoritos - uma espécie de inspiração para o que Peter Carl Fabergé viria a produzir com os valiosíssimos Ovos Fabergé.
      Numa perspetiva mais literária, sustentada no que o escrito e um trabalho humanista permite ver, dir-se-ia que a origem panteísta dos credos é aquela que se funda e remete para um passado quando podiam ser vistos, nos campos, em época primaveril, muitos coelhos e lebres. Um mito popular referenciado pelo alemão Georg Franck von Franckenau, no século XVII (cerca de 1670), na obra Disputatione Ordinaria Disquirens de Ovis Paschalibus, ganha dimensão criativa e literária ao ser traduzido, na escrita, pela figura de uma Lebre de Páscoa, a trazer prendas para os mais novos que melhor se comportaram. Da Alemanha para o Reino Unido e daqui para os Estados Unidos, dissemina-se um universo entendível à libertação das agruras do inverno, à passagem e aos ritos primaveris, numa acomodação ética e moral conjugada com a ressurreição da natureza. A isto mesmo o cristianismo se havia já ajustado, numa visão libertadora e configuradora de outras passagens (histórico-filosóficas, éticas e religiosas).

       E com mais esta curiosidade, passemos a um novo ciclo: o da primavera que chegou e prepara a vinda do verão. Pelo menos, com a mudança da hora, os dias parecem mais alegres e luminosos (ou luminosos e alegres). Por ora, uma boa Páscoa para todos.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Leonardo

      Começou bem o ano televisivo, com uma série sobre um grande para a Humanidade!

    O título disse tudo: "Leonardo". Sim, o que nasceu em Florença, em Vinci (comuna italiana, na Toscana). Daí, Leonardo Da Vinci. 

Leonardo (centro), Caterina (esquerda) e o investigador da polícia (direita) - imagem representativa da série

    Em duas semanas foi exibida, na RTP1, uma série datada de 2021, com realização em países europeus como a Itália, o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Espanha, bem como nos Estados Unidos da América. Enquanto figura das mais importantes no Alto Renascimento (nas áreas das artes e das ciências), Da Vinci foi apresentado com algumas fragilidades e pontos críticos no seu percurso biográfico; foram identificadas as suas influências, as suas invenções, sem esquecer o relevo de muitas das suas obras-primas. Encarado como o próprio arquétipo do Homem do Renascimento, foi retratado como polímata, dotado de talentos diversos e obcecado pela perfeição.

Encontro pessoal com a estátua de Leonardo da Vinci, em Milão

      Na representação desta figura, o ator Aidan Turner deu corpo a um protagonista histórico, numa intriga criada por Frank Spotnitz e Steve Thompson. 

Trailer oficial da série televisiva exibida na RTP1

     O ponto de partida foi localizado na cidade de Milão, em 1506, quando Leonardo da Vinci foi preso por ser falsamente acusado de envenenar Caterina de Cremona. Entre intrigas palacianas e detetivescas, houve toda uma analepse para recuperar a juventude (quando aprendiz no estúdio de Andrea del Verrocchio, onde conheceu Caterina) e a infância (quando abandonado pelo pai); refez-se todo um percurso de vida, pautado por descobertas, desistências, frustrações e conquistas, ganhos e perdas, amores e desamores, rivalidades, enganos e desenganos, com a entrega fiel ao que escolheu como família, paixão e projeto de vida.

   Na contracena, Matilda De Angelis (Caterina), Alessandro Sperduti (Tommaso Marsini, o companheiro de artes) e Carlos Cuevas (o amante Salai) enquadraram a vivência marcante desse artista e cientista, explorando a dimensão emotiva, pintada de várias tonalidades, na genialidade do autor de "Mona Lisa (ou Gioconda)" e "A Última Ceia".

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Sobre Arte e o Museu do Prado

     Depois de assistir a um documentário de 2019 intitulado "O Museu do Prado" (TVCine Edition), apetece lá voltar.

       Apresentado por Jeremy Irons e dirigido por Valeria Parisi, trata-se de uma produção para televisão a assinalar a primeira viagem cinematográfica pelas salas, histórias e emoções de um dos museus mais visitados do mundo. Nele encontram-se obras de arte magníficas, contando a história de Espanha desde os Trastâmaras aos Habsburgo, bem como do continente europeu que esteve sob a alçada do império de Carlos V.
Entrada lateral do Museu (estátua de Velázquez)
    Do Salão dos Reinos de Filipe IV (bisneto de Carlos V) ao grande e complexo edifício que abriu as portas madrilenas à arte (primeiro, por mandado de Carlos III de Bourbon, no século XVIII, ao arquiteto Juan de Villanueva; depois reto-mado, após as invasões francesas, por Fernando VII e Isabel de Bragança), destaque para a pintura de Ticiano, Rubens, El Greco, Velázquez, Goya, Dalí - espelhos de tempo e de histórias a (re)descobrir e a (re)viver.
      Aquando dos duzentos anos de abertura ao público (1819-2019), as fachadas principal e lateral do museu estavam em restauro. No interior, eram tantos os espaços e as obras que o tempo esgotou-se na infinitude de pontos de interesse, dos mais antigos aos mais contemporâneos.
      Rever alguns deles neste registo fílmico foi uma boa recordação, por certo. Ainda assim, as cores e as dimensões do autêntico estão para lá do que o ecrã televisivo permite.
     Termina o documentário com uma citação das palavras de Pablo Picasso, diretor do Museu do Prado, em 1936:

"A Arte limpa a alma...

... da poeira da vida quotidiana".

     Lembro-me de ter percorrido alguns dos corredores e das secções do grandioso museu, e ficar com a sensação de que precisava de mais do que dois dias para apreciar tanta herança cultural.

     Entre tantos registos, trouxe este:

"Deposição da Cruz", pintura flamenga (Van der Wayden)

      Um quadro que desafia as linhas da moldura, o espaço da imagem (explorando um efeito claustrofóbico), a própria pintura (apresentando-se com tridimensionalidade, quase como se fosse uma escultura, na composição para lá das linhas convencionais, dos limites retangulares singulares e das linearizações estáticas). Um episódio religioso, bíblico, convoca a reflexão sobre a morte, quase numa coreografia dos corpos inanimados / desfalecidos, sem esquecer o pormenor de uma caveira (ao fundo, aos pés) a impor-se face à grandiosidade das figuras representadas.

        Acho que estou a precisar de um bom banho (de cultura)!

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto

     Um dia que não pode ser desconsiderado na memória da Humanidade, por mais que o tempo passe.

     Entre os livros que se leram, os filmes que se viram, as palestras a que se assistiram, as viagens que se fizeram, nada se equipara ao vivido.
     Tenho algumas memórias acerca do dia lembrado, felizmente, nada comparado com os que sofreram na pele os acontecimentos hediondos da História. Ainda assim, são memórias minhas entre a revolta e o medo de que esses tempos tenham existido e de que possam vir a repetir-se por ação consciente do Homem, desconsiderando e humilhando o seu semelhante.
    O mais próximo que estive dessa realidade foi ter viajado e ter observado sinais de uma vivência que atualmente se pode dizer museológica, mais de sessenta anos depois, em Sachesenaushen, em Auschwitz, em Birkenau. Pisar o chão que foi percorrido por judeus, e não só, conduzidos ora para trabalhos forçados (em condições de sobrevivência desumana) ora para a morte, é uma memória necessariamente distante do sofrimento real, por mais que este possa ser mostrado aos olhos de um turista. Cada passada em chão de terra e cascalho é ouvida nesse caminho que foi o de centenas de milhares forçados a um infortúnio frequentemente fatal. Faltam as sirenes, as luzes de denúncia e perseguição; os gritos dos militares e o ladrar dos cães; a chuva ou a neve ou o vento ou todos eles combinados; a verdadeira fome e sede (tanto de pão como de justiça); as fortes agressões físicas e psicológicas; o céu escuro da noite ou o cinza diurno dos folículos negros da chaminé caindo e com cheiro a carne queimada. 
       Pode ainda sentir-se o peso do momento; nunca será o do tempo da recordação.

À entrada "O trabalho liberta", em Sachsenhausen (Foto VO)

        O Campo de Concentração de Sachsenhausen, pequeno na comparação com os congéneres polacos, é um desses espaços-museu, na Alemanha. Ativo desde meados de 1936 (numa inauguração simultânea com os Jogos Olímpicos de Berlim) a abril de 1945, tem o nome Sachsenhausen, na cidade de Oranienburg, em Brandemburgo. Foi aí que se confinaram ou liquidaram em massa, primeiro, os opositores políticos ao regime de Hitler; depois, judeus, ciganos, homossexuais, Testemunhas de Jeová, além de milhares de prisioneiros de guerra.

Memorial das vítimas de Sachsenhausen (Foto VO)

        O memorial às vítimas - primeiro, às mãos dos nazis, depois, à mão dos serviços secretos soviéticos - é um belo registo escultórico dos tempos sórdidos então vividos pelos prisioneiros. Numa das várias placas espalhadas pelo campo, lê-se uma das maiores lições a tirar do que foi experienciado:

Pensamento de um prisioneiro do Campo de Concentração de Sachesenhausen (Foto VO)

"E eu sei mais uma coisa - que a Europa do futuro 
não pode existir sem comemorar todos aqueles, 
independentemente da nacionalidade, que foram mortos naquele tempo, 
com todo o desprezo e ódio; que foram torturados até à morte, 
famintos, gaseados, incinerados e estrangulados..."

          Em plena Berlim, entre as muitas evidências do que foi o centro da II Grande Guerra, um outro sinal das atrocidades infringidas pode ser contemplado:

Memorial dos Judeus, em Berlim (Foto VO)

       Em terreno inclinado, 2711 lajes de cimento compõem o "Memorial do Holocausto", construído entre 2003-2004 e inaugurado em maio de 2005, numa homenagem aos judeus vitimizados no holocausto europeu. São cerca de 20.000 metros quadrados com blocos de tamanho distinto, onde os turistas se passeiam, se cruzam numa espécie de labirinto aberto - um monumento da desgraça passada a divertir os que presentemente parecem estar a jogar às escondidas.
       Não há A Lista de SchindlerA Vida é Bela ou O Pianista que se equipare a cada passo calcorreado nestes locais de desgraça humana, hoje encarados como uma topografia de horrores, de roteiros de sinais de tragédia distante.
     Foram imensas as vítimas, muitas mais as desgraças que só alguns puderam, de algum modo, contrariar. No caso português, há o exemplo recentemente lembrado com o "Dia da Consciência".

      Está anunciado para o Porto um Museu do Holocausto, o único da Península Ibérica. Quero lá ir, certamente, quando a pandemia não for tão trágica; porém, os ares alemães e polacos serão sempre mais autênticos para um genocídio humano que o regime nazi impôs ao Mundo.

domingo, 12 de abril de 2020

Páscoa com ovos cracovianos

     Em tempos próximos de clausura, vive-se uma Páscoa diferente.

    O confinamento e o distanciamento social não são muito compatíveis com o espírito da celebração. Agradeça-se, porém, a condição salutar em tempos de doença e anseie-se por um novo dia. Será esta, por ora, a "passagem" mais esperada e desejada.
Mais um "Grande Ovo do Coração"
     Ficam os votos da melhor Páscoa possível, com tudo o que de bom se possa lembrar dos bons velhos tempos, inclusive daqueles quando, na infância, a diversão era pintar simples ovos cozidos, com sóis, estrelas, caretas, flores, cores, linhas e pintas tão festivas! Talvez seja, hoje, mais uma atividade para "ocupar" os dias; mais uma oportunidade para manusear o renascimento da vida - afinal, aquilo de que o ovo é símbolo desde épocas bem anteriores ao Cristianismo (a troca de ovos no Equinócio da primavera, a 21 de março, era tradição para marcar o fim do inverno ou o início da primavera, para não mencionar que alguns deles eram enterrados, na crença de que, assim, se assegurava bons cultivos e boas colheitas).
    Chegada a Páscoa cristã, a cultura pagã foi integrada na celebração da Semana Santa, passando o ovo a simbolizar o renascimento, a ressurreição de Cristo.
     Em tempo de ovuladas amêndoas e adoçados ovos,  interessa deixar, de momento e à semelhança do ano passado, um outro ovo cracoviano, trazido da praça principal de Cracóvia (Rynek Główny); um "Grande Ovo do Coração", para, com afeto, colorir estes dias muito cinzentos.

    Uma boa Páscoa para todos e que se cultive a paz, a segurança, a saúde, para se poder colher, de novo, a vida e fazer a passagem para felicidade(s) maior(es).

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Revendo 'A Lista de Schindler'

     Foi dos filmes mais marcantes do final do século XX, obra-prima de Steven Spielberg.

    Já há um tempo andava com vontade de rever este filme. As interpretações de Liam Neeson (Oskar Schindler), Ben Kingsley (o contabilista judeu Itzhak Stern) e Ralph Fiennes (o comandante alemão Amon Goeth) são marcantes, bem como produção feita a preto e branco maioritariamente (só aqui e ali com uma nota de cor). No enredo, situado entre 1939 e 1945, revê-se a Polónia nazi, o genocídio dos judeus, a Checoslováquia da fábrica e do campo de concentração de Schlinder (Brünnlitz). Em mais de três horas, retratam-se, de forma mais ou menos ficcionada, episódios de vida de um Justo entre as Nações mais o périplo de um povo que, na II Grande Guerra, viveu mais uma etapa trágica na sua diáspora.

Compacto de A Lista de Schindler (1993)


    Inspirado no livro homónimo de Thomas Keneally, é seguramente um dos filmes da minha vida, desde que há mais de vinte e cinco anos ficaram imagens fortes como a da irritante criança loura que assiste ao desfile de judeus nas ruas polacas e grita "Goodbye, Jews!"; a do professor de História e Literatura que não é considerado "trabalhador essencial", mas acaba por o ser quando diz ser "polidor de metais"; a dos soldados alemães que discutem se a música tocada por um outro é da autoria de Bach ou de Mozart, enquanto ocorre o fuzilamento de vários judeus; a da criança vestida de vermelho, que se esconde do exército nazi, mas acaba junto de outros corpos; a do intolerável comandante Amon Goeth a fazer "tiro ao alvo" da sua varanda para alguns judeus que se encontram no campo de concentração de Płaszów; a de crianças que se escondem nas sanitas conspurcadas, na esperança da sobrevivência; a de uma outra criança insuportável a simular, com a mão, o corte de pescoço para as mulheres que chegam ao campo de Auschwitz-Birkenau; a do banho ameaçador das mulheres numa câmara que, em vez de água, bem podia ter sido de Zyclon B; a do comovente Schindler a chorar por não ter conseguido salvar mais judeus. O percurso deste povo é representado na pior das agonias.
     Mais significado ganha o filme quando, apesar da distância no tempo, se contacta com os locais nele retratados: a fábrica de Schindler e a judiaria, em Cracóvia; o campo de Auschwitz-Birkenau.

Praça Bohatérow Getta (ou dos Heróis do Gueto), no distrito de Podgorze, 
no gueto judaico de Cracóvia, com Monumento das Cadeiras, diz-se, pago por Roman Polanski
 (local onde eram selecionados os judeus para os campos de concentração) - Foto VO

Fachada da fábrica de Schindler, em Cracóvia - Foto VO

Janela à entrada da Fábrica de Schindler 
(com fotos e nomes dos trabalhadores judeus) - Foto VO 

Monumento Judeu junto ao bairro Kazimierz, onde este povo vivia na cidade, antes da II Guerra
(colocação de pedras como prática nas sepulturas judaicas, lembrando a época do Antigo Testamento) - Foto VO

Pórtico da Sinagoga Remuh, ao fundo do bairro Kazimierz
(nome a lembrar o rei Casimiro, fundador do espaço judaico na Baixa Idade Média) - Foto VO

    O bairro Kazimierz foi local da gravação cinematográfica, tendo-se, a partir desta última, conseguido a recuperação do espaço (dado o interesse turístico que o tem marcado). Quem por ele passeia não deixa de sentir o peso da História, os sinais da tragédia, o espírito de uma revolta contra quem pôde alguma vez defender o genocídio judeu, o holocausto.
      Na confluência de sentimentos, quando percorri estes locais, dizia para comigo que tinha de rever A Lista de Schindler. Entre a revolta do vivenciado com as políticas antissemitas e a admiração por um homem, no meio de outros iguais, dominou um sentido de compaixão e de gratidão muito forte. A cena final do filme (homenagem dos judeus salvos por Schindler junto à campa, em Jerusalém, no Monte Sião) é a representação maior da figura dessa gratidão, uma espécie de pacto ou princípio que, aliás, atravessa toda a película, ainda que numa multiplicidade de sentimentos bem difusos: o de Schindler para com Stern, no reconhecimento do trabalho deste; o de Amon para com Schindler, enquanto parceiros de negócios pautados por suborno e contrabando; o de Schindler para com uma judia, beijando-a num dos aniversários dele, quando lhe é ofertado um bolo; o dos judeus para com Schindler, à hora da rendição alemã incondicional, oferecendo-lhe um anel a partir de um dente de ouro fundido, a partir dos bens de muitos, e trabalhado à hora do final da guerra.
        Hoje o Ser Humano não pode deixar de estar, quase por ironia, agradecido a um partidário inicialmente nazi, o único que tem sepultura em território judeu, pelos mais de mil que ajudou a salvar.

      De oportunista interessado em ganhar dinheiro a herói tomado pela humanidade (sem escolha) ao salvar judeus, Oskar Schindler fica para a memória de muitos como um dos protagonistas da Sétima Arte, num filme que recebeu sete óscares, um deles o de Melhor Filme (1994). E foi tudo, na base inspiradora, tão real!

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

75 anos depois

      Para futura memória e para que não se repita a história.

     Na sequência do visionamento do documentário "Depois de Auschwitz", na RTP1, há memórias que se recuperam de um passado, o estudado e o vivenciado.
      Saber o que se sucedeu há 75 anos, pelos livros e registos audiovisuais, é descobrir uma forma de recuperar a liberdade e a visão da dignidade humana que muitos, anos antes, ficara comprometida, ao serem cometidas atrocidades impensáveis. Os testemunhos do tempo vão sendo revelados, partilhados (e, ainda assim, há quem assuma que o holocausto não existiu) e o espanto revoltado não cessa!
   Visitar Auschwitz e Birkenau, depois de já ter passado pelo campo de concentração de Sachsenaushen, é definitivamente uma outra visão dos sinais dos factos. O último impressiona; o primeiro perturba; o do meio (sem qualquer virtude) faz abominar, odiar quem tenha pensado em tal espaço com propósitos tão execráveis.

Entrada do campo de concentração de Auschwitz ("O trabalho liberta") I - Foto VO

 Entrada do campo de concentração de Auschwitz ("O trabalho liberta") II - Foto VO

 Uma janela para os muros, os postes e as redes eletrificados - Foto VO

  O muro dos fuzilamentos - Foto VO

  Os fornos de um crematório - Foto VO

  As camas de cimento e tábuas rompidas para os sobreviventes - Foto VO

       De Auschwitz, ficou-me a memória de entrada no campo, quando um grupo de judeus cobertos com o seu 'talit' branco, com a estrela azul de David, mais o 'kipá' branco na cabeça, solidéu tradicional, orava em círculo. O respeito deles e nosso por eles impunha-se. Não foi o único povo a sofrer as atrocidades nazis, mas, na sua diáspora, tem o segundo quartel do século XX  como um dos seus períodos mais negros e a Humanidade como espectadora de uma perseguição desmesurada, de um genocídio atroz. 
       Uma nota informativa, para os turistas / visitantes, dá conta de que os primeiros prisioneiros foram polacos; seguiram-se os prisioneiros de guerra soviéticos, os ciganos e inúmeros deportados de outras nacionalidades. A partir de 1942, este tornou-se no local de morte maciça nesse plano nazi de exterminar o povo judeu que se encontrava na Europa. A taxa de mortalidade era tão elevada que a única forma de identificar os corpos era através de um número do campo tatuado no corpo (antebraço, braço, perna ou peito), mesmo quando muitos homens, mulheres e crianças eram praticamente dizimados à chegada, tanto em Auschwitz como nas câmaras de gás de Birkenau. Mortos nas câmaras ou em qualquer ponto do campo, feitos cheiro nauseabundo ou pó nos crematórios, marcados de dor e humilhação insanáveis no corpo e na alma.
      Hoje, o fim chegava - há 75 anos - com o exército vermelho a libertar os prisioneiros que não haviam sido deslocados pelos alemães para o interior da Polónia. Um massacre e um morticínio que deixaram marcas aos que conseguiram sobreviver e assistiram à eliminação de inúmeros. 
     Tudo começou menos de uma década antes (seis anos apenas), com discursos de intolerância, de supremacia de raças, de desprezo por quem interessava tirar do caminho para poder usufruir daquilo que deixavam e que alguém tinha instruções de recuperar (desde os dentes de ouro a tudo o que pudesse ser aproveitado).

     Uma história que não pode ser apagada, pela intolerância que foi, pelo excesso de poder que revelou, pela desumanidade que alguns humanos foram capazes de criar e outros de aceitar ou silenciar. Demasiado pesado para não ser divulgado.

sábado, 7 de dezembro de 2019

Há meio ano

       Passaram seis meses (claro está)!

       O tempo era outro (estávamos no verão, com a brisa de um final de tarde) e o espaço também (no país vizinho, lá para os lados da Catalunha). Era uma vivência de música ao vivo, com um nome sonante do panorama atual. Um pequeno excerto do espetáculo colorido, assistido, é o que se apresenta:

Ed Sheeran ao vivo - Barcelona

       Hoje, em tempo de trabalho intenso, dá para ter vontade de reviver o concerto (já que, por cá, o desconserto vai sendo grande). Ou de reviver o filme que me deu a conhecer um britânico de voz inconfundível.

      ... e ficam os registos de algumas lembranças que valem a pena (mesmo que tenha havido instantes fora do circuito musical para esquecer).

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Barcelona...

      Não é a canção de Montserrat Caballé e Freddie Mercury... é outra.

     Há dois anos Ed Sheeran cantou-a; hoje repetiu-a para todo um público (barcelonês e não só) o acompanhar:

Excerto do concerto de Ed Sheeran, em Barcelona (07-06-19)

     Uma canção da e (cantada) na cidade tem outro encanto, por certo. Tem a identidade de pertença, tem o sabor da dádiva de quem a partilha ou  a dedica, tem a cor catalã de uma noite celebrada e encantad(or)a. E quando a voz e a melodia se impõem naturalmente, sem artifícios e com a qualidade de um artista genuíno e totalmente dedicado à música e ao visual de todo o seu show, o espetáculo é fantástico.

      Foi assim hoje, ao final de um dia vivido no Estádio Olímpico Lluís Companys de Barcelona (ou de Montjuïc). Um concerto para memória futura e que fez esquecer, por momentos, as agruras do presente. 

sábado, 27 de abril de 2019

Tudo por causa do sal e das lembranças

       Alguém dizia há dias que outro alguém era um pãozinho sem sal.

      Assim se expressa o desinteresse por pessoas e coisas. O idiomatismo recupera a importância do sal, ou a falta dele, sem que necessariamente se esteja a falar de salário (que chegou a ser pago com dito).
       Pensar que há dias estive rodeado dele (do sal, não do salário, porque este tende a desaparecer rapidamente), na sua expressão mais monumental nas minas de Wieliczka, na Polónia:

Apontamento da visita às Minas de Wieliczka (Polónia)

    A grandiosidade turística do espaço visitado está na proporção desse condimento tão necessário à culinária quanto indesejado à saúde, sempre que usado em excesso.

     Nada excessivo na visita. Antes pelo contrário: deslumbramento, sim, partilhado com boas pessoas. Fica o registo para memória do vivido.
       

domingo, 21 de abril de 2019

Ovo de Páscoa cracoviano

     Regressado a tempo para a Páscoa
"Grande Ovo do Coração (Foto VO)
     Diretamente de Cracóvia, chega o ovo pascal.
  Na praça central de Cracóvia (Rynek Glowny), encontrei uns ovos de Páscoa ('Os Grandes Ovos do Coração"), símbolo da amizade, do amor e da alegria pascal. Uma dádiva aos olhos dos transeuntes e visitantes de boa vontade na região de Koprivnica-Križevci, à semelhança de exposições análogas em galerias e praças de outras cidades do mundo (Nova Iorque, Pittsburgh, Milão, Ferrara, Roma Bruxelas, Klagenfurt, Graz, Slazburg, Viena, Brno, Bratislava, Lendava, Zagreb, entre outras). Um projeto de pintura em estilo naïve, levado a cabo pelos artistas Josip Gregurić, Đuro Jaković, Stjepan Pongrac e Zlatko Štrfiček.
      Ao Papa Emérito Bento XVI foi oferecido um destes ovos, em 2010; eu trouxe um, em registo fotográfico (claro está!), comigo. Apanhei-o de "passagem", em pleno espírito de Páscoa - esta palavra, na sua origem hebraica (Pessach), significa isso mesmo - “passagem” -, a marcar, na mais natural das religiões panteístas, o final do inverno e a chegada da primavera. Para os cristãos, a Páscoa é a festa da ressurreição de Cristo, ocorrida três dias após a sua morte na cruz - também uma "passagem" para uma nova vida.

     Seja este Ovo de Páscoa o nascimento para um novo ciclo da vida. Boa Páscoa para todos.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Passos em memória

        O dia de hoje fica marcado pelos passos em direção ao genocídio.


Entrada do Museu AuschWitz-Birkenau (Foto VO)
        Auschwitz é nome de terror. Birkenau, um pouco mais ao lado, é bem pior.
      Aí chegado, a entrada no campo de concentração é imagem familiar, de tão vista em livros de História ou em documentários televisivos, para não falar de filmes que, a propósito da II Segunda Guerra Mundial e do poder nazi, a impõem aos olhos cinéfilos.
        A linha férrea a passar sob um pórtico-vigia altaneiro, como que a separar a vida pacata de uma localidade dessa morte anunciada para os que a ela chegavam, é símbolo de um caminho que muitos fizeram até ao extermínio mais ou menos imediato. Aqui chegaram muitos judeus, especialmente polacos, em massa, mas também os vindos de toda a Europa conquistada pelo exército nazi, excedendo em grande número para a capacidade das prisões até então existentes. Este foi o maior dos campos de concentração, num complexo constituído por Auschwitz I - Stammlager (campo principal e centro administrativo do complexo); Auschwitz II – Birkenau (campo de extermínio); Auschwitz III–Monowitz, para além de mais de 45 outros campos satélites.

Pórtico de entrada de Birkenau ou Auschwitz II  (Foto VO)

        Para lá do pórtico, prossegue ainda a linha de comboio; veem-se campos com barracões, que foram de cavalos e armamento e se tornaram de pessoas; erguem-se, aqui e acolá, postos de vigia, juntos a uma longa extensão de arame farpado, delimitando largos terrenos, até que, ao fundo, se vê um memorial às vítimas e, atrás, uma pequena fileira de bétulas resistentes ao tempo. Talvez tenham assistido a muito desse cenário hediondo que a Humanidade não pode esquecer. Após a invasão da Polónia (setembro de 1939), os soldados alemães fizeram da cidade Oświęcim (traduzida por Auschwitz) um espaço de horror, configurando a floresta de bétulas (Brzezinka) num espaço de genocídio, de extermínio - o lugar para a Solução Final dos judeus (mais de três milhões aqui foram assassinados).

Galeria-memorial às vítimas dos Nazis, em Birkenau (Foto VO)

        A determinada altura, a cada passo dado, os meus e os dos meus companheiros, soou bem na alma o ruído do cascalho misturado com a terra, como a avisar que aquele era chão de desgraça. Há cerca de oitenta décadas, podíamos ter sido nós a ser conduzidos para o trabalho forçado ou os ensaios médicos, na melhor das hipóteses; para as câmaras de gás da "Pequena Casa Vermelha" ou "Pequena Casa Branca", na pior (ou talvez não, por ser das mortes mais imediatas e libertadoras do terror que era viver). Seis crematórios acabariam por fazer dos corpos pó.

Os quartos nos barracos do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau (Foto VO)

       Foi preciso esperar por 27 de janeiro de 1945 para o exército soviético libertar este campo de concentração - facto comemorado mundialmente como o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto

        A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 2002, declarou oficialmente este local como Património da Humanidade. Um triste Património este nosso, prova da crueldade e da tortura de que os Homens são capazes.

domingo, 14 de abril de 2019

Um roteiro com sinais de tragédia

         O dia de hoje trouxe à consciência o sofrimento de há quase oitenta anos.

       O percurso pela Cracóvia da diáspora judaica é um misto de emoções: o da satisfação de uma viagem em boa companhia; o da mágoa de encontrar sinais de um tempo feito de sofrimento de um povo e do imperialismo perverso e antissemita de um outro.

 
Roteiro pelo bairro de Kazimierz - Cracóvia (Vídeo e fotos VO)

         É a oportunidade de calcorrear cenários hollywoodianos (A Lista de Schindler teve neste espaço algumas gravações, nomeadamente nas cenas dos judeus a deixarem as suas casas e a serem concentrados neste bairro medieval), entretanto refeitos com as marcas das memórias e dos restauros, a procurar recuperar de um passado terrível vivenciado no século passado.
       Kazimierz foi constituída no século XIV pelo rei Casimiro III da Polónia (Kazimierz Wielki), tendo-se tornado um local onde os judeus se estabeleceram ao longo de vários séculos em sã convivência com os polacos. Aí se podiam encontrar pontos comerciais, casas e sinagogas para uma população judaica que chegou a atingir 80 mil habitantes, um terço do total da área urbana. Com a invasão nazi, o número acabaria por ser substancialmente reduzido, largo que ficou no das vítimas dos campos de concentração.
       Atualmente, a recuperação do local tem atraído polacos e judeus, como que numa retoma do ambiente anterior à invasão alemã.

         Cracóvia, na sua beleza, tem a densidade e o peso de uma história triste para a Humanidade.
        

sábado, 19 de janeiro de 2019

Aventura dos cinco

      Não se trata dos heróis infantis da Enid Blyton, não! Antes uns leitores adultos e bem queirosianos, reanimados pela Torre da Lagariça.
Rumo à Torre da Lagariça (Foto VO)
      O pretexto é a venda anunciada da Torre. Já que não pode ser comprada pelos próprios, estes vão ao encontro da que se diz ser a torre inspiradora de Eça de Queirós para a construção de A Ilustre Casa de Ramires (AICR). Já sabem que não vão encontrar lá Gonçalo Mendes Ramires nem  o projetado romance, em dois volumes, centrado no antepassado ou "avoengo" Tructesindo Mendes Ramires. O imaginário romanesco é motivo suficiente para juntar cinco amigos, fazê-los viajar pela zona norte de Portugal, dar umas gargalhadas e aproveitar um sábado chuvoso para ficar na história das respetivas memórias. Não há pretensão de escrita (pronto, talvez este singelo apontamento) nem intento genealógico e/ou político (como o de Gonçalinho); talvez o desejo de conhecer um pouco mais do país tão à mão, mas sempre tão ignorado pela sua interioridade. No final, já se sabe que haverá muitas histórias para contar e recontar, acrescentar uma piada, brincar com as palavras e as situações - um pouco como nas narrativas que o protagonista queirosiano lê, revê e reescreve à medida que com elas se cruza.
     Do Porto a Baião, entre curvas e contracurvas, procurou-se esse defensivo e sólido torreão, essa "robusta sobrevivência do Paço acastelado da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X" (AICR, Lisboa, Edições Livros do Brasil, p. 6). Falar da casa de Ramires não parecia ser muito esclarecedor na busca de orientações; em contrapartida, a "Torre da Lagariça" já era tomada pela consabida tradição da marca da defesa da linha do Douro na época da Reconquista; aquela que, mais tarde, perdido o seu interesse e significado militares - com as fronteiras mais a norte - acaba, no século XVI, nas mãos da família Pinto (senhores da Torre da Chã e do Paço de Covelas, descendente de Paio Soares Pinto, que lutara ao lado de Afonso Henriques na Batalha de Ourique).
      Com a sua fachada granítica resistente ao tempo, lá se encontrava ela: a "famosa Torre, mais velha que Portugal" ou "a antiquíssima Torre (...) com uma pouca de hera no cunhal rachado" (AICR, ibidem) no seu formato quadrado e escuro, im-ponente, forte, a contras-tar com o fantasmagórico branco de uma decadência maior no solar anexo. Tal como o dissera uma habitante local, ao seu jeito popular e familiar, esta não tem lá ninguém. Mostra-se, na sua gran-deza, como testemunho histórico-literário da "fre-guesia de S. Cipriano, concelho de Resende, distrito de Viseu... e aqui estou eu".
    Um caminho rural estreito permitiu chegar mais perto. A densa vegetação envolvente, a invadir e bloquear o que foram acessos à casa e à torre, não impediu o calcorrear do miradouro, da muralha em torno do solar, nem a observação das fenestradas paredes de pedra típica nas fortalezas ameadas.
     Persistente, a chuva convidava ao abrigo nessas portas destruídas pelo tempo, a deixarem antever o que seria o espaço solarengo hoje abandonado. A vegetação desordenada, invasiva toma conta do vazio. O que foi um jardim torna-se tão natural quanto o tempo permite. Sobrevivem ali buganvílias entrelaçadas com silvas; folhas e ramos secos, mortos a par ou sobre tufos de musgo viçoso, com verdor.
     A resiliência dos  aventureiros (mais uns do que outros) resultou em registo fotográfico. Talvez, daqui a uns anos ou décadas, a imagem venha a ser diferente. Quem sabe - seria bom que assim não fosse - ausente.
       Hoje ficou esta:

Torre da Lagariça e o solar anexo (Foto VO)

      De regresso ao Porto, os cinco, sem que a imaginação os leve "sempre a exagerar até à mentira", vivenciaram uma viagem bem real, alimentaram o corpo e o espírito com o que de bom a vida também tem, sempre com "A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades..." - por ora diria que bastava resolver o interesse em preservar um espaço, uma memória cultural e histórica, um motivo literário do interesse e da especulação imobiliários, no respeito pelo "silêncio e doçura da tarde (...), pedindo a paz de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casais adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que sempre bendita fosse entre as terras" (final de AICR, pág. 362).  
   

quinta-feira, 10 de maio de 2018

O Dia da Queima dos Livros

      Há cerca de um ano percorri um dos locais fatídicos na zona que foi Berlim comunista.

      Há oitenta e cinco anos desapareciam aí os livros que se revelavam opositores ao espírito alemão nazi. Corria o ano de 1933 e, em Berlim, acontecia a queima dos livros de autores ditos 'não-alemães' (ainda que alguns deles o fossem), levada a cabo pela Liga de Estudantes Alemães Nazis, em OpernPlatz (hoje BebelPlatz). 
     Tratou-se de uma campanha de propaganda, repetida em muitas cidades alemãs, contra os que se revelavam contra o espírito alemão (os chamados "Undeutsch"). Nomes como os de Sigmund Freud, Karl Marx, Albert Einstein, Franz Kafka, Bertolt Brecht, Walter Benjamin, Marcel Proust, Emile Zola, Máximo Gorki e Ernest Hemingway figuravam entre os que tinham obras queimadas. Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazi, assumiu que, a partir de então, nasceria o novo homem alemão, livre da influência e do intelectualismo judaicos. Por ironia, o país que tinha inventado a prensa tipográfica móvel há cerca de meio milénio assistia a uma tragédia cultural, provocada pelo nacionalismo irracional, destruidor de memórias, ideias, histórias. 

Imagem alusiva à queima de livros (Bücherverbrennung)

    Trinta e três anos depois (1966), o filme Grau de Destruição (no Brasil, Fahrenheit 451) recuperava o tópico, ao adaptar o romance homónimo de Ray Bradbury, sob a direção de François Truffaut, e ao mostrar como um regime totalitário proibia os livros e toda a forma de escrita, acusando-os de tornar as pessoas descontentes e não produtivas (a resistência ao regime era apenas feita na terra dos homens-livro, uma comunidade de pessoas que destruía os livros depois de os memorizar; a perseguição era inevitável para quem era apanhado na posse de um, mas o propósito de o decorar era o de o republicar quando não fossem mais proibidos).

Excerto fílmico de Grau de Destruição (ou Fahrenheit 41), de 1966

     Atualmente, frente ao prédio da Faculdade de Direito da Universidade de Humboldt fica o chamado Book Burning Memorial: uma abertura de vidro colocada no chão da praça, a permitir aos transeuntes a visão, no subsolo, de uma sala com uma grande estante de livros branca, vazia. Recorda-se, assim, o dia em que, durante a ocupação nazi, 20.000 livros foram queimados, num só dia, numa pira que consumiu obras de cientistas, filósofos, escritores e pensadores de renome. Por extensão, a ausência dos livros simboliza a falta dos milhões mortos pelo nazismo, para além dos perseguidos, torturados e humilhados por pensa-rem de modo distinto.
    Organizada pelas estruturas governamen-tais nazis e pelo Comité Geral dos Estudantes da União Nacional-Socialis-ta,  a "Queima dos Livros" foi acompanhada por reitores, professores universitários, líderes estudantis, mais os altos representantes de Hitler. Mais de trinta cidades universitárias alemãs colaboraram e fizeram estender a campanha a outros pontos do país, graças à divulgação feita pela rádio, pelas telas de várias salas de cinema e pela cobertura de imprensa. Os dias seguintes assistiram à criação de outras fogueiras, alimentadas pelos livros e documentos escritos que os soldados nazi retiraram, à força, de casas, livrarias e bibliotecas.

    Em tempos de fraca memória, interessa relembrar os perigos do fundamentalismo, dos nacionalismos exagerados, da miséria humana e dos horrores que a História deu a conhecer e que o presente teima em fazer persistir. Os livros também cumprem esse papel (que o diga Saramago, com o seu O Ano da Morte de Ricardo Reis).