terça-feira, 31 de maio de 2011

A vida é um jogo no jogo da vida

        Para ver e reflectir... porque interessa marcar a diferença.

    Se a vida é um jogo, também há jogos que se fazem na vida com regras demasiado individuais, interesseiras e pouco justas.
       É um projecto de vida mostrar do que esta é feita, mesmo que a visão que dela se faça seja intensa, pondo à prova os valores que a afastam da luz, da cor, do sabor e do saber, do sentir e do pensar a que todos aspiramos.


    Porque na vida há morte (mais ou menos anunciada), porque do mal pode nascer o bem, porque no frio e no calor se combinam as estações, porque do dia e da noite se compõe o nosso tempo, há diferenças que não se opõem tanto assim; muitas vezes complementam-se nessa lição que todos podemos tirar da própria escola da vida.
      E a diferença está em reconhecer a necessidade de ajuda, a vontade de mudar, a procura de uma vida melhor. Porque há sempre a hipótese de um caminho diferente para nos levar... para explorar de forma salutar.

       Enquanto assim for, ficam sempre o tom, o som e a imagem da esperança.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

O ciclo da História e do Tempo

      Com a passagem do tempo, descobre-se que o ciclo da História se repete...

     Garrett, nas suas Viagens na Minha Terra (1846 - cap. XXXVIII), reconhece a "Admirável condição da natureza humana, que tudo nos parece melhor e menos feio quando visto de longe!". Contudo, quando o longe ainda está tão perto, torna-se incompreensível que se apoie e defenda o indefensável.
    Com Frei Luís de Sousa (1843), já se devia ter aprendido que um homem, quando "queima" a sua imagem,  caminha iniludivelmente para um tempo trágico, quando este último é, ainda por cima, ameaçado por um passado mal resolvido.
   Não fosse isto suficiente, Eça de Queirós tem a actualidade que se reconhece em toda uma obra que, à diferença de cerca de século e meio, parece ainda um retrato do presente. E, por certo, tomaria qualquer um dos romances ou crónicas como bons exemplos de uma evidência do século XIX (finais) transformada em vidência para o XXI (inícios).
    Relembro, então, o final de Os Maias e essa reflexão de Carlos e Ega tão ao jeito de quem já descrê da nossa elite política e de um destino que surge como fatal:
    
    "– E que somos nós? – exclamou Ega. – Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão...
      Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...
      – Creio que não – disse o Ega. – Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor...
      – Resumo: não vale a pena viver...
      – Depende inteiramente do estômago! – atalhou Ega.

    Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança – nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
     Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra – porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do «Eclesiastes», em desilusão e poeira.
     – Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correcto, que é o único que se deve ter na vida.
      – Nem eu! – acudiu Carlos com uma convicção decisiva. (...)

   – Espera! – exclamou Ega. – Lá vem um americano, ainda o apanhamos.
      – Ainda o apanhamos!
    Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
    – Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentámos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma.
    Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
    – Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...

    A lanterna vermelha do americano, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
    – Ainda o apanhamos!
    – Ainda o apanhamos!

   De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o americano, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia."

    Esta a diferença entre as palavras e os actos, com vantagem para estes últimos no romance. 
     Contemporaneamente ouviram-se muitas palavras; todavia, os actos desdisseram-nas. 
    Há quem fique no sofá à espera do que venha a suceder no próximo domingo. Outros há que gritam e aplaudem os "preparados", os "conscientes", os "coerentes" nas palavras e nos actos que nos levaram ao anúncio próximo de uma bancarrota. E assim fica um país em clima de festa, de animação, numa alegria sinónima da "paz podre" que pode tornar repetível o ciclo da História: não com um mapa cor-de-rosa que nos retire territórios africanos, mas com uma bandeira negra de fome, de desemprego, de dependência financeira e económica, sem solução para um país europeu cada vez mais no fundo.

      ... ainda que esteja nas nossas mãos o poder de não o fazer repetir-se (mesmo que haja nódoas que só o tempo venha a resolver).

domingo, 29 de maio de 2011

Mas... já chegámos à Madeira, ou quê!

      Era o que eu ouvia dizer quando calcava o risco e o abuso se anunciava (num sentido que sublinha a possibilidade de tudo poder acontecer nesse território).

     Não será estranha a afinidade do verbo chegar com o topónimo Madeira: diz-se que se trata de um verbo proveniente do latim 'plicare' (dobrar, enrolar). Chegados à ilha, via marítima, os marinheiros dobravam as velas ('plicare velam').
       Hoje, chego ao local via áerea e apeteceu-me arrancar, 'enrolar', de imediato, o cartaz que me dava as boas-vindas.


       Até aqui, logo na entrada do aeroporto, deparo com o erro. Deve ser do vento que me recebe...
       Caso para dizer que tanto o acento como a situação são agudos, mas pelo menos o primeiro devia ser grave.

       Não havia necessidade, em terra cujos sinais de desenvolvimento, acessibilidade e simpatia são evidentes.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quando "A vida é um jogo"

     Mais uma produção à R3.

     É giro ver como, à escala das coisas, um grande passo do homem pode tornar-se num grande passo para a Humanidade.
    Não se trata de ir à lua, mas é a afirmação de umas estrelas que, um dia, se cruzaram no meu caminho, pelas leituras que tiveram de fazer e pelos projectos que quiseram realizar. Do primeiro ao segundo, deste ao terceiro, ao quarto, ao quinto... espero que muitos mais surjam.
    O próximo anuncia-se forte, a julgar pela 'promo'.

 
    Pela apresentação dos responsáveis, lê-se que «Afonso, depois de passar pela recente morte dos pais, vê a sua vida mudada. Não vivendo nas mesmas condições que vivera com os pais e irmão, Afonso vai encaminhar-se para o "mundo" do jogo, sem saber as consequências que isto pode trazer. O seu irmão, Nuno, vai ser a sua consciência. João Pedro (JP) e Beto serão as duas caras que irão influenciar Afonso para os maus hábitos.» Um filme de Rui Moreira, Ricardo Santos, Rafael Silva e Fábio Pinto, na R3 Produções, 2011.

    É de profissionais. Com jovens destes, atentos aos males do mundo e às "bolas de neve" que nos arrastam e enrolam, dá para crer num futuro melhor do que o presente. Chamadas de atenção não faltam: assim se queira ver o que afasta o Homem da felicidade da vida, mesmo que esta se apresente, por momentos, negra e num jogo que nos possa (a)trair...

Adjectivos relacionais: qual a relação?

       Porque há classificações à espera de alguma estabilização...
   
      Volta-se à necessidade de construir pontes, as quais usam as margens que as sustentam, sem que as terras sejam da mesma natureza ou espécie.

     Q: Colega, segundo o Dicionário Terminológico, os adjectivos admitem as subclasses do qualificativo, numeral e relacional. A questão é: e os antiguinhos gentílicos e toponímicos? Deixaram de existir? São apenas adjectivos?

      R: Começo por reconhecer que, acima de tudo, são adjectivos e que bom é quando os alunos assim o reconhecem pelas propriedades associadas: caracterizam o nome com o qual se combinam e, tipicamente (sublinho), variam quanto ao número, ao género e ao grau.
    Em termos de subcategoria, os velhinhos gentílicos e toponímicos enquadram-se nos agora designados adjectivos relacionais. Considerando que estes últimos são os que derivam de uma base nominal, reconhece-se a adequação desta designação pela paráfrase "natural, procedente ou originário de + N'. Assim, 'comunidade brasileira' (Brasil > brasileira) apresenta o adjectivo 'brasileira', formado a partir de um nome, tal como 'comida chinesa' (China > chinesa) ou 'literatura moçambicana' (Moçambique > moçambicana).
   O mesmo sucede com a referência à residência ou local de nascimento: 'concelho gondomarense' (Gondomar > gondomarense), 'grupo portuense' (Porto > portuense), 'jovem londrino' (Londres > londrino).
   Acrescento, ainda, o caso dos adjectivos que têm como base nomes próprios de pessoa (os antropónimos). Daí a 'lírica camoniana' (Camões > camoniana), os 'textos garrettianos' (Garrett > garrettianos) ou as 'novelas camilianas' (Camilo > camilianas).
     É um dado que a paráfrase atrás referida ('natural, procedente ou originário de + N') permite, genericamente, reconhecer este subtipo de adjectivos; todavia, não deixa de haver muitos que podem ser usados ou como relacionais ou como qualificativos em contextos distintos.     
    Comparem-se os casos seguintes:
    i) produto industrial (relacional)    Vs     quantidade industrial (qualificativo)
   ii) direitos humanos                     Vs         gesto humano
   iii) sepulturas faraónicas              Vs      gastos faraónicos
      Se há um sentido original que se associa a um uso quase sempre relacional, a interpretação qualificativa é derivada e obtém-se a partir de um traço significativo extraído do sentido original (por exemplo, o excesso, a superioridade em 'faraónico'; a sensibilidade em 'humano'; a quantidade em 'industrial').

      ..., para que nem tudo seja admissível, pelas noções que muitos têm e nem sempre acertam.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Com letras e números em abraço

      Assim o escrevi num soneto, dedicado a alguns dos meus alunos, há já quatro anos - talvez inspirado em leituras da altura e desse mistério rendido ao facto de números e letras organizarem a nossa vida.

     Retomo um excerto de O Código Da Vinci, de Dan Brown:

                                 
                                          1.618

     «Voltou-se para o mar de rostos interessados.
     - Quem sabe dizer-me que número é este?
     Um aluno do curso de Matemática, sentado numa das últimas filas, levantou o braço.
     - É o número PHI. - Pronunciava-o como fi.
     - Muito bem, Stettner - disse Langdon. - Senhoras e senhores, apresento-lhes o PHI.
     - Não confundir com PI - acrescentou Stettner, sorrindo. - Como nós, matemáticos, costumamos dizer... (...)
     Enquanto carregava o projector de diapositivos, Langdon explicou que o número PHI derivava da sequência Fibonacci, uma sequência famosa não só por a soma de dois termos adjacentes ser igual ao termo seguinte, mas também por os quocientes de dois termos adjacentes terem a surpreendente propriedade de se aproximarem de 1.618: PHI!
    A despeito da aparente origem místico-matemática, explicou Langdon, a faceta verdadeiramente extraordinária do número PHI era o seu papel como elemento constitutivo fundamental da natureza. Plantas, animais e até seres humanos, todos possuíam propriedades dimensionais que obedeciam com uma espantosa exactidão à razão de PHI para 1.
    - A ubiquidade do número PHI na natureza - continuou Langdon, apagando as luzes - excede claramente a coincidência, e por isso os Antigos assumiram que tinha sido preordenado pelo Criador do Universo. Os primeiros cientistas chamavam a um-ponto-seis-um-oito a Proporção Divina. (...)
    - Isto é espantoso! - exclamou alguém.
    - Pois é - admitiu uma outra voz -, mas o que é que tem a ver com arte?
   - Ah! - disse Langdon. - Ainda bem que alguém pergunta. Projectou um novo diapositivo, um pergaminho amarelado no qual estava representado o famoso nu de Leonardo da Vinci, O Homem de Vitrúvio, assim chamado em honra de Marcus Vitruvius, o brilhante arquitecto romano que exaltou a Proporção Divina no seu texto De Achitectura
   - Ninguém compreendeu melhor do que da Vinci a estrutura divina do corpo humano. Da Vinci chegava ao ponto de exumar cadáveres para poder estudar as proporções da estrutura óssea do ser humano. Foi o primeiro a mostrar que o nosso corpo é literalmente formado por blocos constitutivos cuja razão proporcional é sempre igual a PHI.
    A turma inteira dirigiu-lhe um olhar carregado de dúvida.
    - Não acreditam? - desafiou-os Langdon. - Da próxima vez que forem para o duche, levem uma fita métrica. (...) Todos vocês. Rapazes e raparigas. Experimentem. Meçam a distância do topo da vossa
cabeça até ao chão. Então dividam esse valor pelo da distância do vosso umbigo até ao chão. Adivinhem lá que número vão obter.
    - Não me diga que é PHI! - exclamou, incrédulo, um dos futebolistas.
   - Digo, sim senhor - respondeu Langdon. - PHI. Um-ponto-seis-um-oito. Querem outro exemplo?Meçam a distância do ombro às pontas dos dedos, e então dividam-na pela distância do cotovelo às pontas dos dedos. Outra vez PHI. Mais uma? Anca ao chão a dividir por joelho ao chão. PHI. Articulações dos dedos das mãos. Dos pés. Divisões espinais. PHI, PHI, PHI. Meus amigos, cada um de vocês é um tributo ambulante à Proporção Divina. (...)
    Durante a meia hora seguinte, mostrou-lhes diapositivos de obras de Miguel Ângelo, Albercht Dürer, Da Vinci e muitos outros, demonstrando a obediência intencional e rigorosa de todos estes artistas à Proporção Divina na disposição das respectivas composições. Mostrou a presença do número PHI no Pártenon de Atenas, nas pirâmides do Egipto e até no edifício das Nações Unidas em Nova Iorque. O número PHI aparecia na estrutura organizacional das sonatas de Mozart, na 5ª Sinfonia de Beethoven, nas obras de Bartók, Debussy e Schubert. O número PHI, disse Langdon aos seus alunos, fora inclusivamente usado por Stradivarius para calcular a localização exacta dos
espelhos nos seus famosos violinos.
    - Para terminar - disse, dirigindo-se ao quadro -, voltamos aos símbolos. - Traçou cinco linhas que se interceptavam para formar uma estrela de cinco pontas. - Este símbolo é uma das imagens mais poderosas que vão ver este semestre. Formalmente conhecido como pentagrama... ou pentáculo, como lhe chamavam os Antigos... é considerado por muitas culturas simultaneamente divino e mágico. Alguém sabe dizer-me porquê?
     Stettner, o matemático, levantou a mão.
     - Porque, se traçar um pentagrama, as linhas dividem-se automaticamente em segmentos de acordo com a Proporção Divina.
    Langdon dirigiu-lhe um orgulhoso aceno de cabeça.
    - Muito bem. É verdade, as razões dos segmentos lineares num pentáculo são todas iguais a PHI, o que faz deste símbolo a expressão perfeita da Proporção Divina.

    Na arte, diz-se também estar o soneto como a forma mais perfeita da literatura.
    Catorze (são os versos) dividido pelo número 1.618 resulta no número 8,652657...
    Os dois primeiros algarismos dessa sequência infinita são precisamente o 8 (a soma das duas quadras) e o 6 (a dos dois tercetos). Entre os dois não figura o 7 (que se diz mágico), ainda que se prefigure no arredondamento da décima.
   Se na sequência numérica por nós normalmente reconhecida  o 8 e o 6 são mediados pelo 7, dir-se-ia que aí se encontra um ritual de passagem, uma fronteira para dois eixos compositivos: do sétimo para o oitavo verso cumpre-se a ponte entre duas metades do soneto. Talvez, por isso, no soneto camoniano "Alma minha gentil que te partiste", esteja muito mais aí a chave de ouro, segundo a linha interpretativa de uma composição poética marcada pela temática central do 'amor' (um amor vivido, "ardente", que o sujeito poético pretende colocar no plano da idealização, de uma eternização que supere os limites terrenos, mundanos).

   
     E. M. de Melo e Castro "Soneto Soma 14x" (1963)


    Ernesto M. de Melo e Castro prefere a leitura do soneto enquanto soma (horizontal dos algarismos) catorze vezes, pela expressão da poesia concreta e visual - um discurso que se materializou e cristalizou num outro código (gráfico-numerológico).
       Duas quadras e dois tercetos - a totalidade de versos no soneto - evidenciam-se graficamente numa organização estrófica com a mesma ordem de leitura do verso da esquerda para a direita, ou vice-versa.
     A leitura vertical da sequência numérica é menos significativa face ao título da composição, mas não deixará de constituir um jogo revelador de somas combináveis com a própria noção de soneto: a coluna da esquerda totaliza 49 (noves fora quatro - uma quadra); a seguinte e a do meio somam, cada uma, 35 (noves fora 8 - duas quadras; sem esquecer que 35+35 = 70, noves fora 7 - uma quadra e um terceto); a penúltima, 28 (noves fora um - a unidade do soneto, para não referir a soma de 2+8, a totalizar 10 - o habitual verso decassilábico); a última coluna, à direita dá 63 (o 6 que representa os dois tercetos; 3, a composição versificatória do terceto).
       Números e letras; Matemática e Literatura (Poesia). 
       Para quê separar códigos que a Proporção Divina juntou?

    ... tem o Homem que saber interpretar a sua própria criação e as suas convenções. Tudo dele depende, sabendo que, nos contrários, também há lugar para os afectos: "letras e números dando um abraço".

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Meu sangue azul!

     Sem fanatismos; com a emoção da cor de eleição...

     O tema é o do dia, a arte não é nenhuma, mas os versos são do vadio que os quis escrever.


     É a cor do céu e do mar na limpidez que o Homem anseia.
     
     Hoje, o Futebol Clube do Porto sagrou-se campeão europeu!
     Foi a Dublin, defrontou o Braga e, sobre a verde relva, com ele venceu.
     Duas equipas do Norte, duas cidades portuguesas, europeias...
     Entre vermelho e verde, afirmou-se o azul que me corre nas veias.
     Sete anos depois de Gelserkishen, reacendeu a magia:
     qual falcão aéreo, o dragão impôs-se na terra, em campo,
     fez da bola o fogo, fez-se à baliza adversária, deu alegria
     a todos os que soltaram "POOOORTO" e do grito fizeram canto.
   
    Na dança do dragão, veja-se o bem que um país norteia.


  Pronto: cá está um exemplo de como poesia, futebol e economia não combinam, decididamente! O número sete anda por lá, sem perfeição ou dom mágico que resolva a crise... (do país e de quem escreve).

     Por um momento que (me) interessa recordar.

domingo, 8 de maio de 2011

Poesia sem...

    Lembrei-me de muitos, lembrei-me de mim.

    Posso ter o mundo, mas há sempre a sensação de que falta qualquer coisa. 
    Então, fixa a mente essa falha, essa (pequena) falta que torna o tudo em nada. É lamentável este sim e não, que não dá espaço ao talvez (sim / não) e ao quase (sim / não).


POEMA SEM

Sou um desgraçado!

Abandonam-me...
Afastam-se de mim...
Não me livro dessa lei da morte
que me persegue, me apaga
de uma epopeia sem mar, sem horizonte... com fim.
Sem ventura, sem sorte nem norte...
Esta a queixa amarga:
não estão comigo.

Qual Camões, resta-me a gruta,
as paredes cruas de um espaço
desprovido de cores e de flores;
Sem Ilha dos Amores...

Triste, só e desamparado...
Vivo um presente à espera de futuro...
lembrando um tempo que passou.

Desasado estou.

                                                                                     Gondomar


    Pode ser pessoa. 
    Pode ser condição. 
    Pode ser motivo para o qual não haja reacção. 
    Pode ser um estado para o qual se anseia por uma acção.

    Que pode dizer um professor quando lhe falta o que assim o faz ser?

sábado, 7 de maio de 2011

A Morte do Palhaço... ou um despertar de consciências

      Em boa companhia, na clausura em que nos colocaram no Mosteiro de S. Bento da Vitória.

     No final de mais um dia pesado de trabalho, um reencontro de amigos para compensar o tempo e os sorrisos que nem sempre se tem. Esta é uma das formas felizes de saber viver, o tema evocado por uma das obras de Raul Brandão, datada de 1896: História d'um Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício).

     Refundida sob o título A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore (1926), confirma-se a dimensão filosófica do texto, sublinhada no pessimismo das personagens face aos problemas da vida e no ensejo pelo sonho.
      Para não se crer que o palco é diferente da vida, a representação do texto (levada a cabo pelo grupo teatral 'O Bando', numa co-produção com o Teatro Nacional de S. João) inicia com o espectador a cruzar-se com um grupo de personagens indigentes: feito o percurso comum até junto do palco, o primeiro senta-se num carro de compras adaptado a um assento; o mesmo fazem as segundas. E todo o "enxurro humano" fica enjaulado, enleado, limitado pelo que o sensível dá, entre duas portas cerradas e numa sociedade "escura". Resta o espaço para sonhar, enquanto alternativa possível à degradação, à indigência, a um contexto marcado pelos sinais da guerra, do pessimismo (finissecular), de um percurso barrado. Entre os gestos repetidos, rotineiros, sem produzir qualquer acção, espera-se por um sinal de mudança: uns limitam-se à espera; outros sonham e, um pouco à moda de Beckett, situam-se entre os socialmente desprotegidos, os que vivem à margem e aspiram a algo que os mantenha presos à vida, numa espécie de quimera frequentemente dolorosa.


     Nas conversas construídas com e sobre um palhaço (insistentemente questionando-se se deve amar ou morrer), há ainda lugar para Pita (entregue aos prazeres da vida), um rei, uma rainha e a filha, o doido, o anarquista, um antigo chefe de repartição (Gregório). Todos se caracterizam com um nariz de palhaço e participam na agonia, nas dúvidas e incertezas deste último. Hospedados na casa de D. Felicidade, reflectem sobre a existência humana, as opções de vida: viver pelo sonho; entre este e a vida terrena; a entrega exclusiva à vida mundana.

Se saio do sonho, não sei viver. 
Sobressalto-me com o menor ruído imprevisto: 
a porta que se fecha é para mim uma angústia. 
Compreendes isto? 
Antes a catástrofe que espero caísse sobre mim, 
e me estatelasse no solo, 
do que este terror contínuo, a inquietação do que é vago, 
o aflitivo do nada...

       Este o pensamento do palhaço, que se revela contra o mundo, num texto cuja adaptação dramatúrgica e cuja encenação estão a cargo de João Brites, segundo um libreto de Nuno Júdice. A composição musical é de José Mário Branco, para um espaço cénico de Nuno Carinhas.
      Entre a depressão que conduz ao desgosto (por não se descobrir um caminho para a felicidade e por se constatar a impotência em mudar o mundo) e a luta de todos os dias (aproximada dos sonhos, num simbolismo em que a música e o plano da utopia se cruzam) - ainda que tal possa implicar o sacrifício da realidade -, fica a nota do derrubar de portas que teimam em não se abrir, apenas cedendo sob o peso de uma vida. Sempre morre alguém para que a humanidade dê um novo passo e se possa concretizar algo do sonho aspirado.
   
     Todos somos palhaços nesta vida: todos temos sonhos e criamos figuras na nossa cabeça; aspiramos a algo e limitamos, auto-censuramos o que possa ou não ser feito. Damos a vida para que outros lhe dêem continuidade.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Com textos 11 - um passo adiante.

       Depois do 10º ano, o 11º já está por aí.

      À semelhança do ano de escolaridade anterior, Com Textos 11 chega ao mercado escolar.
   Uma proposta editorial da ASA Editores, objetivada na resposta a orientações programáticas da disciplina de Português (nível secundário da formação regular) e sustentada em atividades validadas por experiências levadas a cabo em anos letivos transatos pela equipa de autores de que faço parte. A consultoria científica e pedagógica deste manual escolar foi relaizada pela Professora Doutora Maria Francisca Xavier (da Universidade Nova de Lisboa).
      Como linhas de conceção do projeto, sublinham-se os aspetos seguintes:
- estruturação do grafismo na lógica da dupla página;
- a organização das sequências por competências (ouvir/falar, ler, escrever, práticas e estudo da língua associados ao conhecimento explícito), apostando na processualidade implicada em cada uma delas;
- contacto com géneros e tipologias textuais diversificados, literários e não literários, conforme indicação do programa de disciplina;
-exploração de diferentes modalidades de oralidade, leitura e escrita;
- proposta de dinamização de projetos articulados com os conteúdos declarativos e processuais relacionados com cada uma das sequências;
- monitorização de competências mais de carácter transversal, com a indicação de indicadores / critérios de desempenho / de sucesso, com guiões de verificação articulados com atividades propostas ao longo das sequências;
- consolidação de conhecimentos, com formulação de sínteses de conteúdos programaticamente definidos essenciais às sequências em estudo;
- testagem de conhecimentos / competências para regulação das aprendizagens (avaliação formativa).
      O manual, construído em co-autoria, faz-se acompanhar, além de produtos complementares (caderno de atividades, livro de professor, materiais de natureza multimedia), do texto integral de uma das obras de leitura obrigatória para o ano de escolaridade em causa: Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett.

       Citando as palavras de apresentação, construiu-se um projeto no qual se pretende a implicação prioritária de professores e alunos, na crença de que "Só com trabalho coordenado e empenhado se pode, talvez, afirmar que os manuais escolares têm um papel decisivo em todo o processo de ensino-aprendizagem".

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Uma lição queirosiana... e vidência /evidência para o século XXI

       Não se trata da vidência. Era evidência no século XIX.
     
       Assim o escrevia Eça de Queirós, numa das suas "farpas" (compiladas em Uma Campanha Alegre - vol. 1):

  (...) Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.
   Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.
      Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade.
   Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.
      Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.
     Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.
      (...) – Ando aborrecido! – é o coro geral. Os espíritos estão vazios, os sentidos insatisfeitos. Gradualmente, com a vontade doente, o corpo enfraquecido, o homem só procura distrair, matar o tempo. Mas em quê? Na leitura?
     Não se compra um livro de ciência, um livro de literatura, um livro de história. (...)
    Perdeu-se através de tudo isto o sentimento de cidade e de pátria. Em Portugal o cidadão desapareceu. E todo o País não é mais do que uma agregação heterogénea de inactividades que se enfastiam.
     É uma Nação talhada para a ditadura – ou para a conquista."

   Crónicas de um tempo que teve o que se chamou um "prólogo" em As Farpas, um estudo social de Portugal. Era o mês de Junho de 1871; mas bem que podia ser Maio ou Junho de 2011.

     Crónicas de um tempo que ainda não lá vai.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Deixis e idealização... um caso problemático.

      Camões: numa das suas mais clássicas e mais idealizadas composições poéticas...

      Um exemplo que se convoca para o que o poema não tem.

     Q: No caso do soneto "Um mover de olhos brando e piedoso", o "Esta" do último terceto é um deíctico de pessoa ou de espaço?

       R: Antes de qualquer resposta, começo por transcrever o poema camoniano:

O nascimento de Vénus, de Boticelli
(pormenor)
Um mover de olhos, brando e piedoso
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

     A progressão do soneto faz-se em função de uma longa enumeração (entre os versos 1-11) associada a uma imagem estereotipada que está mais para a idealização e o modelo clássicos da figura feminina, traçada em termos que conjugam a influência platónica (ideal de beleza física, reflexo da beleza interior, numa manifestação sensível do princípio de beleza inteligível), bem como a representação dos modelos petrarquista de Laura e renascentista de Vénus.
    Pela natureza e pela opacidade da significação literária, pelo recurso a códigos estéticos que convocam o sentido das regras, da harmonia e da imitação dos modelos, haveria já aqui razões para alguma problematização do conceito de 'deixis' aplicado ao soneto (a deixis está para a mostração das condições temporais-espaciais-pessoais de produção de um discurso como este poema está, em contraposição, distante da construção de alguma referencialidade evidenciadora da interacção de um 'eu / nós' com um 'tu /vós').
    Assim, o pronome demonstrativo em causa (que abre o terceto final e constitui uma pista linguística para a possível divisão do soneto em duas partes) não é um deíctico. A sua funcionalidade textual é a de retomar toda uma sequência enumerativa anterior (onze versos iniciais), esta última resumida num só termo e que, no seio do discurso poético em questão, configura um sujeito sintáctico para a predicação dominante do texto. Logo, trata-se de um exemplo de termo anafórico, cujo antecedente é, nada mais nada menos, o conjunto dos onze grupos nominais anteriores - identificáveis por uma estrutura sintáctica do tipo "Um(a) + [adj] + N".
   "Esta", noutras circunstâncias textuais, pode ser um deíctico quando referencia a proximidade de uma entidade face a um 'eu / nós' responsável pela produção discursiva; quando entra em contraste com um "Essa" (que está mais para o 'tu / vós').
   Textualmente, "esta" pode ainda ser uma referência a uma entidade, a um espaço, a um tempo que acabaram de ser discursivamente mencionados. 

      É o caso nesta composição camoniana (na qual se retoma um ideal de beleza feminina); daí a sua natureza anafórica.

terça-feira, 3 de maio de 2011

A aumentar... nem sempre a gente se entende.

     Há, de facto, na língua portuguesa, situações ou casos muito complicados, por mais repetidos que sejam na exemplificação de alguns mecanismos ou processos linguísticos, logo nos primeiros anos de aprendizagem formal da língua.

     Esta foi a reflexão que me surgiu quando me foi lançada esta questão:

   Q: Como você explica a seus alunos a formação de termos aumentativos, como é o caso de 'canzarrão', 'gatarrão' e 'casarão'? Acha que são casos de derivação sufixada?

     R: Reconheço a dificuldade, desde já, na explicação destes casos, em termos morfológicos. Ainda que sejam habituais na exemplificação do grau aumentativo dos nomes, por segmentação morfológica dificilmente se escapa a uma implicação de conhecimentos dos quais o falante comum já não tem forte consciência. Aponta-se para alguma irregularidade em termos de formação, o que poderá tender para o processo de lexicalização de algumas das palavras.
     Começando por 'canzarrão', trata-se de um caso que evidencia a marca do Português enquanto língua proveniente do latim: o radical latino 'can(e)-'. O sufixo '-ão' é comum e, entre outros valores, é utilizado com sentido aumentativo. Do que resta da segmentação é um sufixo, por uns estudiosos perspectivado como de substrato pré-romano  e por outros tomado como de origem basca ('-arro' / '-arra' / '-orra', presente em 'bocarra', 'cabeçorra'). Nesta linha, ter-se-á ainda o interfixo '-z-'. Em síntese, tudo parece apontar para o facto de se estar perante uma palavra derivada por sufixação, mas com uma sucessividade faseada na derivação (cão > *canzarro > canzarrão) - o que não andará distante da derivação de 'homenzarrão' (< *homenzarro < homem) e de 'gatarrão' (<*gatarro < gato), neste último caso sem a necessidade do interfixo.
   Quanto a 'casarão' (que também convive com a forma dicionarizada 'casão'), há maior regularidade nos processos e nos constituintes morfológicos a considerar: à base 'casa' acrescenta-se o sufixo '-ão', mediado pelo interfixo '-r-'.
      Perante isto, tremo só de pensar que algum aluno esteja na idade dos 'porquês' e tudo queira saber.

   Pela complexidade verificada, estes são casos que não deverão ser abordados na lógica das regularidades da língua: há exemplos mais pacíficos na sistematicidade de processos e na regularidade dos afixos. Pelo menos, são exemplos que contemplaria mais na perspectiva do trabalho do léxico do que na do processo de formação de palavras.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Um dia... dois dias... uma só mãe.

     É o dia comercial da mãe, que também tem dia santo... e merece.

Quarteira (Foto: VO)
     
     Mãe é mãe, pai é pai (ouve-se), por maior tautologia de que o enunciado se revista - ou talvez, assim, se diga mais implicitamente do que o que pudesse ser feito explicitamente, sempre aquém do que se quisesse ou pretendesse dizer.
     Este é o mundo da mãe ou a mãe que é um mundo.
    Por muito que se diga que tem mãe todo o vinho com depósito na garrafa; que é mãe o lugar, a obra, a abelha, a água, o país (ou pátria), a galinha; que é filho sem dor e mãe sem amor; que a ociosidade é a mãe de todos os vícios; que levar as mãos às fogueiras é a mãe das frieiras, a presença da mãe não deixa de eternizar a possibilidade de nascer, de crescer, de suportar a dor.
     E porque hoje é mais um dia da mãe...


Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!


Almada Negreiros, in A Invenção do Dia Claro (1921)


     Na palavra cantada por tantos poetas, há três letras numa só sílaba.

     Há sangue, há carne, há amor para que o Homem sobreviva ao tempo.