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segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Uma lição de contemporaneidade, intemporalidade e universalidade

     Pelos 500 anos de Camões - com engenho e arte.
   
   Ainda que um dos anos de referência seja o do já concluído 2024, o recentemente iniciado 2025 não se encontra fora de contas, ou tempo, para o quingentésimo aniversário do nascimento de Camões.
    Com a presença simpática, sapiente e generosa do Professor José Augusto Cardoso Bernardes (comissário-geral para as Comemorações do V Centenário do Nascimento de Luís de Camões), os alunos do 11º ano do Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira (AEML) tiveram o privilégio de receber uma Lição (intencionalmente maiusculizada, pelo orador e pela qualidade dos "sinais de vida" transmitidos), a propósito de um dos três maiores da literatura universal (a par do grego Homero e do romano Virgílio).
    No muito de lendário e mítico - numa espécie de "nada que é tudo" - que a biografia do quinhentista luso possa ter, a data e a localidade de nascimento são ainda objeto de discussão entre estudiosos. Suposições, conjeturas, portanto. O mesmo não se dirá já da morte, nesse 10 de junho de 1580, factual e explicitamente confirmado em documento conservado na Torre do Tombo, garantindo à mãe a tença atribuída por D. Sebastião; tornado feriado nacional, inicialmente, em honra de um poeta; hoje identificado como Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
    Quanto à obra, da muita que nos chegou, importa lembrar que, há meio milénio, esta circulava oralmente, perante uma imprensa que já tinha sido inventada entre 1439-1450 e cuja evolução era bem mais lenta do que a atualmente verificada com qualquer progresso tecnológico. A fixação de texto era débil, mediante a realidade do objeto livro que, no século XVI, não deixava de ser um tesouro, apenas acessível a poucos e da propriedade de muitíssimos menos. A autoria mantinha-se bastante discutível, mediante a apropriação e a atribuição de versos que eram cantados, oralizados, repetidos de corte em corte e pertenciam a um anonimato (des)interessado comummente designado de "tradição oral / popular". Sabe-se que Camões viu publicada a epopeia Os Lusíadas em 1572; são póstumas as edições das Rimas, numa identificação de poemas que, nalguns casos, permanecem dúbios quanto à composição autoral, face a critérios filológicos mais rigorosos.
      Camões falou com um rei, dedicando-lhe uma epopeia e ousando formá-lo e avisá-lo dos perigos que os galgos (cavaleiros) poderiam representar, numa recriação do mito de Actéon (com o caçador a ser caçado); produziu obra que, entre a euforia e a visão crítica, se tornou reconhecida, desde o início até à atualidade. Mesmo para quem, como Fernando Pessoa, se designou "Supra-Camões", o épico quinhentista não deixava de, no início do século XX e com o Modernismo, estar situado num patamar maior, de referência. 
      Nas palavras do especialista convidado - professor catedrático e reconhecido camonista (para além do estudo que desenvolve com outros autores dos séculos XV e XVI da literatura portuguesa) -, Camões está vivo: enquanto ícone cultural, agregador e marca de identidade / pertença, na linguagem e nos códigos institucionais diplomáticos nas relações entre países; enquanto exemplo de contínua edição, ao longo de séculos e regimes, com tradução em diferentes línguas (e, desde logo, o português, certificado no século XVI, por critérios estéticos, como língua adulta, pois, à semelhança dos clássicos, admitia produção de uma epopeia); enquanto tópico escolar (desde a edição comentada dos Piscos, em 1584); enquanto transmissor de valores, numa pedagogia e formação de leitores, que, em meio milénio, acederam - nos versos partilhados, nos episódios narrados, nas reflexões produzidas (e as que atravessam Os Lusíadas são impregnadas de valores em que humanismo, humanidade, consciência de mundo e consciência da fragilidade da condição humana são ingredientes para a universalidade e intemporalidade do poeta) - aos tópicos da mudança, da diferença, do (des)amor, da (in)justiça, do infortúnio (que a Fortuna, por vezes, deixa durar demasiado), do esforço, do poder material / espiritual, da (des)ilusão, do verdadeiro valor da glória, dos deuses e dos heróis... da viagem que a vida é. 
     
     A iniciativa, levada a cabo pelas professoras bibliotecárias e pelos docentes de Português do AEML, não deixou de ter o contributo de alunos, que partilharam leituras de vários poemas: de Camões e de autores que, na passagem dos séculos, o versaram, citaram, recriaram (Bocage,  Sophia, Torga, Nuno Júdice, Adília Lopes, Manuel Bandeira). Outras provas de vida, dignas de celebração. Nada como terminar esta última, num convívio à mesa, numa refeição confecionada pelos formadores e formandos do Curso Profissional de Restaurante-Bar e condimentada pelas especiarias de um tempo bem (re)vivido.

domingo, 17 de abril de 2022

Um grande ovo de Páscoa cracoviano

       Sucedem-se as Páscoas, ano após ano, e os ovos.

      Entre as várias explicações para o ovo e para o coelhinho da Páscoa (que não "foi com o Pai Natal, no comboio ao circo"), a multiplicidade dá para todos os gostos - os mais religiosos, tradicionais, simbólicos, culturais, regionais e até os mais fantasiosos.
       Encontrei uns bem artísticos em Cracóvia, no conhecido Mercado de Páscoa, realizado anualmente na praça central da Cidade Velha, Rynek Główny (praça principal de Kraków). Em cerca de dez dias, as festividades da Semana Santa concretizam-se na exposição de ovos gigantes decorados e na confeção das tradicionais "palms" artesanais de flores e plantas secas, para serem abençoadas no Domingo de Ramos - informações colhidas e vividas em memórias de viagens bem passadas. O colorido da praça é festivo. Os ovos, dispostos em vários pontos da praça, são atração visual assegurada, numa composição e num enfeite de versatilidade cromática notáveis.

Um ovo cracoviano à altura de um ser humano (Foto VO)

      A presença do ovo, desde a Antiguidade persa, traz consigo a perceção do símbolo do renascimento. De regiões como a Ucrânia (muito antes da chegada do cristianismo) ou a China, vem a leitura do alimento e da origem da vida - e, por extensão, da criação do mundo - até à comemoração do fim do inverno. Daí o entendimento do "Páscoa" como "passagem".
       Dos ovos de galinha (cozidos) pintados à mão (que persistem) aos de chocolate (mais recentes e comerciais), muitos séculos aprimoraram o que pôde ter sido a celebração de uma passagem mais familiar e doméstica até se chegar aos requintes da doçaria e pastelaria francesas, sem esquecer que Eduardo I de Inglaterra banhava ovos em ouro para presentear os seus súbditos favoritos - uma espécie de inspiração para o que Peter Carl Fabergé viria a produzir com os valiosíssimos Ovos Fabergé.
      Numa perspetiva mais literária, sustentada no que o escrito e um trabalho humanista permite ver, dir-se-ia que a origem panteísta dos credos é aquela que se funda e remete para um passado quando podiam ser vistos, nos campos, em época primaveril, muitos coelhos e lebres. Um mito popular referenciado pelo alemão Georg Franck von Franckenau, no século XVII (cerca de 1670), na obra Disputatione Ordinaria Disquirens de Ovis Paschalibus, ganha dimensão criativa e literária ao ser traduzido, na escrita, pela figura de uma Lebre de Páscoa, a trazer prendas para os mais novos que melhor se comportaram. Da Alemanha para o Reino Unido e daqui para os Estados Unidos, dissemina-se um universo entendível à libertação das agruras do inverno, à passagem e aos ritos primaveris, numa acomodação ética e moral conjugada com a ressurreição da natureza. A isto mesmo o cristianismo se havia já ajustado, numa visão libertadora e configuradora de outras passagens (histórico-filosóficas, éticas e religiosas).

       E com mais esta curiosidade, passemos a um novo ciclo: o da primavera que chegou e prepara a vinda do verão. Pelo menos, com a mudança da hora, os dias parecem mais alegres e luminosos (ou luminosos e alegres). Por ora, uma boa Páscoa para todos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Uma ponte de cores

        No enlameado estaleiro da avenida, via-se uma ponte de cores.

       Ao final de uma tarde, ainda com sol, mas a chuva anunciada e os trovões a rasgar o céu, surgiu um arco-íris para chamar a atenção e fazer esquecer o cinza das nuvens que se impuseram:

O estaleiro da avenida 8 de Espinho dominado pelas cores do arco-íris - (Foto VO)

      No mar caíam os relâmpagos; nos ouvidos entrava o som retardado das descargas elétricas. E neste espetáculo natural, parecia que estavam a chegar sinais dos deuses para uns tempos que não estão fáceis.

      Íris, que nas suas tarefas de mensageira deixava um rastro arqueado e colorido no firmamento, foi uma espécie de arauto divino, segundo a mitologia grega. Bom seria que nos deixasse novas tão multicolores quanto o brilho do pote de moedas de ouro maciço, da mitologia irlandesa, a representar os sonhos que todos temos.

        Prestes a terminar o verão, os sinais outoniços vieram mais cedo.


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Geologia literária ou literatura geológica

      Quando a natureza se revela inspiradora para as narrativas.

     Pela zona de Lavadores, com o olhar na direção do mar, há uma composição rochosa chamada de "Pedra Moura": um bloco granítico sobre outro afim, com fratura visível provocada pela erosão.

"Pedra Moura" e os pedregulhos de Lavadores (Foto VO)

      Para quem ache ser explicação ou descrição demasiado científica, pode sempre recorrer à lenda - mais uma entre as muitas que povoam o imaginário nacional, com a típica temática da moura castigada (ou não fosse a terra lusa dominantemente cristã).

      Ora, conta a lenda (maneira sempre eficaz de se apagar o narrador e os efeitos que este pudesse introduzir na narrativa) que uma bela e formosa moura (são-no sempre, apesar de punidas, demoníacas e tentadoras) recebeu um grande castigo (lá está - depois dizem que hoje é que somos preconceituosos): trazer pedras das profundezas marítimas até às proximidades do areal (coitada)! Porém, o mar (soberbo) retomava tudo o que lhe pertencia e, com as marés, fazia voltar essas pedras ao fundo marinho (mais fazendo da moura a versão feminina de Sísifo). O esforço persistente da mourisca (afinal, tem alguma virtude) fez que, um dia, de lá trouxesse um penedo, penosa e colossalmente colocado em cima de um outro (uma moura muito hercúlea, portanto). Vencido o mar, lá estão os pedregulhos, desafiando o oceano. É a Pedra Moura de leva...dores ou que lava... dores pelo castigo cumprido (ao que chega o sentido toponímico da história).

     Quem quiser saber dos motivos do castigo, talvez tenha que investigar sobre os tempos do rei Ramiro e do filho, D. Ordonho, mais o rei mouro Alboazer Alboçadam que detinha as terras de Gaia. Há de lá encontrar uma moura formosa (mais vítima do que merecedora de castigo).


domingo, 3 de novembro de 2019

Será que a Amélie vem aí?

        Dizem que a tempestade está para chegar a Portugal.

     Podia ter sido uma promessa, para afastar a anunciada intempérie; foi apenas um passeio para afastar as más energias, o cansaço e alguns sintomas doentios que persistem. E, agora, dizem que está a vir depressão! Coisa escusada! São ventos e chuvas que chegam para derrubar qualquer homem. Era bom que se dissipassem.
       A força da natureza está à vista: depois do sol tímido de um sábado e domingo, muda a cor do céu, a névoa surge, o vento esfria e o mar alteia. De longe, o branco das ondas ameaça pintar as paredes de uma capela, erguida sobre um rochedo, de costas voltadas para as fortes ondas. Em Miramar, a capela barroca do Senhor da Pedra não mira o mar; mira a terra. Impõe-se mais do que Pedro: é pedra sobre rocha, local de culto e peregrinação que, segundo um dos painéis de entrada, está erguido num espaço que terá remotamente recebido cultos pagãos de povos pré-cristãos. Persiste essa natureza natural e panteísta, pela envolvência do mar, da terra e do céu.

Capela do Senhor da Pedra, em Miramar (freguesia de Gulpilhares) - Foto VO

      Construída nos finais do século XVII (1686), a igreja é Património Mundial da UNESCO desde 1996. A sua forma hexagonal e a balaustrada exterior circundante, frequentemente rodeadas pela subida das marés, contribuem para um imaginário singular: o de um escolho santificado. A força da crença cruza-se com alguma sobrenaturalidade. Segundo os antigos, uma imagem de Cristo terá sido trazida pelo oceano: “Que num belo dia pousou sobre aquela pedra onde, mais tarde, veio a ser erguida a capela” (lê-se num outro painel, numa espécie de justificação do nome: “Senhor da Pedra”). No registo da lenda, quando os locais se preparavam para construir uma ermida ao Senhor da Pedra num terreiro conhecido por arraial, frequentemente era vista uma luz sobre os rochedos. A cada noite a luz misteriosa brilhava, pelo que os habitantes começaram a acreditar num sinal enviado do Céu. Assim, o ponto luminoso à beira-mar passou a ser o local de construção da capela. 
      O fantástico e o sobrenatural são ainda sulcados pelo espiritual e pelo religioso: na rocha, por atrás da capela, está incrustada uma marca semelhante a uma pegada de boi, que os habitantes da terra dizem ser de um animal bento (o boi que aquecia Jesus na manjedoura) que, também, por ali havia passado.

     As marcas nos penedos são uma constante nas lendas de cariz religioso. Natureza e fé são motivos para dar cor às religiões. A Amélie tem nome que (além de título para filme) dá para depressões.
      

sábado, 24 de novembro de 2018

Diarinhando... bom título!

      A tarde foi de apresentação de um livro especial. Entre amigos, no Centro de Recursos da Secundária de Gondomar.

    Uma capa bonita, um título inovador, uma apresentação entre o elogio fundado na qualidade estético-literária e as cores da amizade, uma obra à espera de ser lida. E a autora?


    Já figura nalguns apontamentos desta 'Carruagem', por nos ter dado Histórias para Lermos Juntos e nos ter brindado com O Tesouro. Na companhia e na amizade. Assim foi, assim continua a ser, com os ingredientes geradores de uma família de leitores que Maria Clara Miguel tem vindo a construir. No caso de alguns dos presentes (inclusivamente de alguns ausentes), mais do que leitores, por certo.
      Nada é por acaso, diria a nossa Isaura. O (re)encontro com Maria Clara Miguel aconteceu. E uma Lúcia está para se dar a conhecer. Não foi 'encontro feito poesia', porque de narrativa se trata. Mas nas máscaras de Narciso (nesse mito que se compõe do eu que também é outro, no espelho da água), o que se narra é um ato de escrita metamorfoseado em diário, em prosa poética, em fragmento reflexivo, em apontamento breve, em opinião ou gosto que se querem partilhados.
      Dizia o apresentador do livro - o colega, escritor e amigo Manuel Maria - que nas páginas lidas há suspense, surpresa e sedução. As personagens e as ações narradas convocam espiritualidade e intuição, conformes à tonalidade lilás da capa, a essa cor metafísica propícia à purificação e à cura do físico, emocional e mental. A criação artística é um dos caminhos, nessa elevação de intuição, inspiração e criação espiritual. É mistério a expressar-se pela individualidade, pela personalidade, numa relação plena com a espiritualidade.
      De tudo isto se compõe a obra hoje dada a público, páginas configurando nove semanas de um diário que Lúcia (também Isaura e/ou Maria Clara Miguel) escrevinhou - não se trata de escrever mal nem de produzir algo sem valor (bem pelo contrário); talvez fingir um registo solto, natural, com um fim diverso (mais do que determinado), entre o entretenimento criativo, a oportunidade aproveitada, a vontade sem compromisso e a necessidade de revisitar tempos, gostos, pessoas, memórias que em todos nós vivem - umas comungadas, outras só de alguns, muitas só do 'eu' plasmado num discurso por natureza calendarizado, datado à cabeça (o Homem é tempo; dá-lhe a mão e larga-o, conforme a força, a vontade e a capacidade de o acompanhar).
      Diarinhando é amálgama para um ato encarado como processo, talvez por pretender culminar numa construção de identidades e entidades fictícias que só a vida pode vir a (re)criar pelo que já deu a (re)ver ou a imaginar.

     Ao folhear o livro, parei em algumas datas (8 de fevereiro foi uma delas) e em alguns segmentos (um deles, logo a abrir: "Está aí alguém?"). Talvez seja Narciso a recriar-se, a rever-se num universo de palavras, num fluir do tempo, num espelho de interrogações, reflexões, intrigas que de vida (também) se fazem.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Convergindo, divergindo

     Depois de um dia de muito trabalho...

     ... busco o mar, ânsia de partir até à linha do horizonte, a todo o momento renovado. Se outra terra me acolhesse...

Porque há ir e voltar (Foto VO)

   Os passos, no vai-e-vem da busca, ficam lá, na areia, à espera que o vento apague as marcas da minha presença, os sinais desse encontro que tive, que fiz, que vivi e de que me afastei.
     Fui, vim e, daqui a pouco, é como se lá não tivesse estado. E assim a vida corre...

    Regressado a casa, vou a mais trabalho, até que a noite chegue e a possa dormir para recomeçar o que não houve tempo de acabar. Qual Sísifo, empurro a pedra, pesada... que teima rolar ao meu encontro.

sábado, 3 de novembro de 2018

Tristão e Isolda - da lenda ao filme

      Diz-se lenda medieval de origem céltica; firmou-se como uma das histórias universais de amor trágico.

    Surge pelo século IX. As primeiras versões escritas são do século XII, no formato de narrativa em verso, tendo sido história difundida por trovadores e pela realeza francesa (rainha Leonor de Aquitânia) na Europa. Um século depois, foi incorporada no Ciclo Arturiano, com Tristão a assumir-se como um cavaleiro da Távola Redonda. 
    Tristão (James Franco) assiste à destruição da sua família por invasores oriundos da Irlanda, até que um nobre da Cornualha (Lord Marke, interpretado por Rufus Sewell) o protege. O reino é constantemente ameaçado pelo rei irlandês, como forma de impedir o nobre bretão de obter uma união de pares e de reinos capaz de o enfrentar (assegurar a paz das fronteiras irlandesas era um objetivo a cumprir, desde os tempos da expansão romana).
     Entre a Irlanda e a Cornualha, há, contudo, um mar que deu em amar, ou não o cruzasse Tristão, acabando por conhecer Isolda (Sophia Myles), a ela se unindo e dela se afastando até dela se separar com a morte.

Tristão e Isolda - trailer do filme de Kevin Reynolds (2006)

    A intriga fílmica, dirigida por Kevin Reynolds (2006), espelha várias questões da literatura do tempo: a herança, os vestígios e a influência romanas; a questão das relações feudais, dos códigos de honra e de lealdade, bem como da vassalagem e do amor cortês; a condição da mulher no casamento (essencialmente entendido como contrato, negócio); o adultério como consequência ou realidade associada à distorção das regras de casamento; a relação da arte com a vida cortesã (literatura, dança e música), entre outros.
     Se a versão cinéfila é ou não fiel às origens narrativas celtas é questão que, não sendo de menor interesse, não apaga o destaque temático a dar ao herói (homem sem terra, na busca e no distanciamento face ao que mais deseja - Isolda; ser em constante conflito, entre o foro público e o privado, mas sempre fiel tanto ao "senhor" que serve como à "senhor" que ama) e à heroína (mulher entregue a um amor que vai ultrapassar convenções familiares e sociais, para não falar da própria vida).

   Segundo as palavras de uma personagem do filme, o amor de Tristão não destruiu um reino (contrariamente ao assumido no momento da denúncia amorosa), não diminuiu ninguém. É expressão de elevação, de idealização; de amor mais forte do que a vida ou do que a morte.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Nascer para morrer

    A novidade não é nenhuma, mas há quem nasça para morrer mais cedo.

Escultura de Manuel Laranjeira (foto VO)
       Assim foi com Manuel Laranjeira.
    Hoje evoca-se a data de nascimento, ocorrida há 139 anos (no mesmo ano em Teixeira de Pascoaes também nasceu), em Mozelos, no concelho de Santa Maria da Feira.
    É, contudo, em Espinho que, a partir dos 21 anos, cumpre um percurso de vida que o aproxima da medicina; da intervenção cívica, social e artística local; da criação literária e da escrita que o fazem produzir crónicas, cartas, poemas, textos dramáticos. 
   Na busca da idealização, da luz, da possibilidade da realização e da criação, aspira à obtenção de um sentido de vida que continuamente colide com uma realidade que o atrofia, o enleia numa vivência de profunda tristeza e tédio.
   Da arte, na ânsia e na expectativa de atingir o nível do criação e do criador, diz-se cultor ou semeador, numa espécie de parábola para o que acha ser o seu papel na vida e no que o mundo pode deixar germinar:

Montagem de foto com pensamentos do autor

    Entre as ideias e os ideais de um homem, dão-se a ver as primeiras no mundo; dos segundos nem sempre é fácil falar, particularmente quando estão além do que realmente circunda um ser que a muito aspirou, nos mistérios libertos de um caminho que quis desvelar e (re)criar, sem condições de caminhar.

     Qual Sísifo (e)levando a "pedra" ao cume do altar artístico, Laranjeira revelou-se um permanente insatisfeito, um idealista sempre à espera de atingir os mistérios da luz da criação (que alimenta a alma e a liberta da vida breve).  

domingo, 25 de janeiro de 2015

De novo, com os olhos e ouvidos nas origens.

    Hoje gostava de estar em Atenas a gritar SYRIZA.

     Espero que amanhã, num tempo mais alargado do que o dia, o grito ecoe para cada medida ou decisão feitas da honestidade e do dever cumprido para o prometido. Basta de sufoco, a bem de alguma esperança. Por maior que tenha sido o erro do passado, para que haja presente com sentido há que abrir a caixa de Pandora.
     Assim se construirá verdade, confiança, referência, ao contrário de muitos que continuamente desdisseram o que os levou ao poder. 
    Assim se alimentará tempo novo, com uma outra forma de fazer as coisas, mais atenta ao Homem e menos ao capitalismo sufocante e castrador em que as instituições de crédito financeiro se tornaram.
    Curioso (ou talvez nem tanto) que tudo esteja a acontecer na Grécia, nesse berço do pensamento democrático original. Se foram muitos os erros anteriores, se ainda há quem não cumpra o que é necessário para o bem comum grego (e, por consequência, europeu), tudo tem que ser feito para responsabilizar os que prevaricam; mas também há que criar vontades, novas vozes, novas caras e dinâmicas de futuro, apostadas na mudança (não no 'statu quo' ou no 'dejá vu').
    Em tempo de novo protagonismo, de um pioneirismo que se quer exemplar para a Europa - continente que muito lhe deve o nome -, gera-se uma causa de dimensão nacional com sentidos e efeitos muito para além da fronteira grega; revê-se o próprio continente, aquele que da Grécia recebeu toda uma civilização (a qual esteve na origem de tudo), segundo rezam a História e os mitos.
"O rapto da Europa", de Peter Paul Rubens (1628-9)
   Nesses tempos dos primórdios, dos deuses da anti- guidade clássica, uma princesa fení- cia se impôs pela beleza, chamando a atenção e as paixões do poderoso deus grego: Zeus. Disso não gostou Hera, a ciumenta mulher do deus principal da mitologia grega. Daí este ter-se transformado num touro, para se apro- ximar da princesa, que, maravilhada, coroou o animal com uma grinalda de flores e acabou por saltar para o seu dorso. Ao senti-la nas suas costas, o taurino e supremo morador do Olimpo desatou a correr em direção ao mar, só parando quando chegou a uma pequena ilha: Creta. Aí, à sombra de um plátano, revelou-se na sua verdadeira forma. Acabaram ambos por dar vida a três crianças: Minos (futuro rei de Creta e um dos juízes do inferno, que ouvia as confissões dos mortos), Radamanto (rei das Cíclades, conhecido pela sabedoria e justiça) e Sarpedão (príncipe da Lícia).
      Hoje, em tempos de crescentes individualismos, fala-se na necessidade de um espírito gregário, de uma natureza associativa (pretendida e nem sempre alcançada) para ultrapassar problemas e crises comuns, numa inspiração apoiada no modelo das ágoras e das ligas que instituíam a união de esforços. Os tempos são efetivamente outros, à espera mais de Radamantos do que de grupos que não pugnam pela felicidade comum.
       Talvez aqui a Grécia ainda tenha uma palavra a dizer. Eu gostava que fosse SYRIZA, pelo que esta coligação possa representar de exemplo para uma saída humanizada e feliz para a austeridade; para a afirmação de uma nacionalidade mais interessada no seu povo do que nas prioridades especulativas de grupos mais focados nas próprias bolsas (e nos respetivos bolsos), em detrimento do bem social comum.

    Num país que tanto deu à Europa (cultural e linguisticamente), talvez ainda esteja a ser preparada (mais) uma lição. Que assim seja, a bem dos homens que nela moram e para que os mesmos, ou outros ainda, saibam que há uma forma diferente de fazer as coisas (sem ter de se cair em igualitarismos duvidosos nem em controlos ameaçadores, perversos e desumanos).

domingo, 23 de março de 2014

Regressou: Odysseus

      O herói ansiado chegou, no período mais crítico em que a rainha de Ítaca é feita prisioneira.

      Falo de Ulisses (ou Odysseus, no grego), personagem homérica recuperada da literatura para uma série televisiva em exibição na RTP2 - aqui revista no trailer exibido no canal francês "Arte":


       No segundo episódio, foi anunciada a chegada de um navio com uma vela idêntica à da embarcação de Ulisses. Não era o que Penélope e Telémaco desejavam, a braços com as intrigas de Leócrito para casar com a mulher de Ulisses e, assim, ascender a um trono há muito sem rei. Tratava-se apenas da chegada do poeta recitador Eucaristos, portador da notícia de que Ulisses estava vivo. A troco de uma escrava (Cléa) que quer para si e que Penélope havia entregado a Eucaristos (como recompensa das novidades recebidas), Telémaco consegue que o poeta tenha um encontro privado com a rainha. Esta é, entretanto, denunciada pela aia Eurínome: Leócrito prometera a esta última a liberdade, se ela o informasse de qualquer encontro masculino com Penélope. Crente na fidelidade da sua rainha a Ulisses, Eurínome prefere, contudo, a liberdade. Penélope é acusada na assembleia de homens e é feita prisioneira de Antinoo, que entretanto se rebelara contra Leócrito e acabou por usurpar o trono. 
      É o adivinho Tioscos que, na praia, acaba por encontrar os vestígios de um naufrágio e o corpo de um homem no areal. E assim se cumpre o reconhecimento do soberano, com o regresso deste após dez anos de viagens.

Alessio Boni e Caterina Murino nos papéis de Penélope e Ulisses

      Mantenho, ao final do quarto episódio, o registo avaliativo de uma produção muito interessante para divulgar uma história que faz parte do legado cultural mediterrânico e que tantas referências mantém com outras obras da literatura ocidental europeia.

quinta-feira, 6 de março de 2014

É de Luso (e nada tem a ver com água)

    Tomada a região da Lusitânia como província romana, recebeu esta o nome por causa dos habitantes guerreiros (os 'lusitani') que longamente resistiram ao povo do Lácio. 
A Hispânia Romana
     Há ainda quem se refira a um rio grego (Lousios), pela matriz cultural grega, ou a uma figura mitológica (Luso) derivada de um erro de tradução da expressão latina «lusum enim Liberi patris», na obra Naturalis Historiae (de Plínio, o Velho), tomando a palavra 'lusum' ou 'lusus' como nome próprio. Segundo o eborense latinista André de Resende, Luso seria um companheiro ou um filho do deus do vinho, Baco - leitura proposta por Camões na estrofe 22 do Canto III d'Os Lusíadas (“Esta foi Lusitânia, derivada / De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo / Filhos foram, parece, ou companheiros...").
       Atualmente, o termo luso é usado para referir tudo o que seja relativo a Portugal (daí o povo luso ou a nação lusa), nomeadamente nas palavras compostas que o integram (por exemplo, tratado luso-americano).
     No que toca à composição de palavras, a base autónoma 'luso' ganha entretanto uma configuração fónica distinta no som vocálico final, como se de uma vogal de ligação se tratasse. Ainda assim, a existência autónoma da palavra é o que justifica a grafia proposta pelo Acordo Ortográfico (AO) para os compostos com hífen. Daí ler-se neste último o seguinte (Base XV - artigo 1º):

«BASE XV
Do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares 

1.º Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido: ano-luz, arcebispo-bispo, arco-íris, decreto-lei, és-sueste, médico-cirurgião, rainha-cláudia, tenente-coronel, tio-avô, turma-piloto; alcaide-mor, amor-perfeito, guarda-noturno, mato-grossense, norte-americano, porto-alegrense, sul-africano; afro-asiático, afro-luso-brasileiro, azul-escuro, luso-brasileiro, primeiro-ministro, primeiro-sargento, primo-infeção, segunda-feira; conta-gotas, finca-pé, guarda-chuva.»

      Pelos sublinhados da minha responsabilidade, conclui-se que será de escrever 'luso-africano', 'luso-americano', 'luso-britânico', 'luso-canadiano', 'luso-chinês', 'luso-descendente', 'luso-francês', 'luso-indiano', 'luso-venezuelano' e outros lusos mais.

       Luso, lusitano, lusíada... é português, e (para citar o slogan publicitário) o que é nacional é bom. Talvez.

terça-feira, 4 de março de 2014

Odisseia de Homero, na RTP2

       É mesmo da obra de Homero, aquilo de que aqui se trata.

Caterina Murino, representando a personagem Penélope (rainha de Ítaca)
     De novo o bom exemplo da RTP2, ao exibir uma série realizada por Stéphane Giusti e que merece a atenção do espectador, por várias razões: da obra aos atores que a dão a conhecer.
      Domingo passado foi emitido o primeiro episódio de "Odysseus", história que remonta ao século VIII a. C. e que tem no título o próprio protagonista (Odisseu ou Ulisses, como era conhecido na mitologia romana) de uma das grandes epopeias na cultura da humanidade. A obra atribuída ao escritor grego Homero é abordada nesta série, numa coprodução da RTP com uma produtora de origem francesa e uma outra italiana. Gravada na íntegra em Portugal (Serra da Arrábida), a adaptação do texto homérico conta com a participação de mais de sessenta atores nacionais (entre os quais Diogo Dória, Luís Gaspar, Nuno Lopes, entre outros).
     A cena inicial do príncipe Telémaco na praia de Ítaca à espera da comida que escasseia, da promessa que não se cumpre, daquele que não chega - há cerca de dez anos - é o ponto de partida para a representação de uma intriga escrita originalmente sob a forma de poema e que dá conta do regresso de um herói (lê-se na proposição que é a história do “herói de mil estratagemas que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quanto lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros”). 

Fotograma a partir da exibição televisiva da série, na RTP2

     A situação de Penélope e Telémaco em Ítaca é crítica, na presunção da morte de Ulisses, sendo aqueles obrigados a lidar com um grupo de pretendentes insidiosos - os Mnesteres ou Proci -, em contínua competição pela mão de Penélope. Resta a esta última retardar os ímpetos dos que a rodeiam com sede de poder, sob o estratagema de tecer a mortalha de Laertes (pai de Ulisses) - que formula o desejo de se juntar ao filho, assim que souber da sua morte.

     Por mais certo que seja o princípio de que não se deve ajuizar as obras pelos filmes ou séries que nelas se baseiam, não deixa esta série televisiva de constituir uma boa aproximação a uma referência cultural de que alguns ainda falam / ouvem falar a propósito de outros textos.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Castelos de areia...

      Circula no Facebook um cartaz com o melhor dos objetivos, ...

      É o que se pode dizer de quem deseje promover a escrita e a leitura.
      Custava evitar o erro da vírgula? 

Cartaz de divulgação de atividades de alfabetização

     Quem convida à escrita esqueceu-se de o fazer da melhor forma: não se pode separar o sujeito ("Quem escreve" / "Quem lê") do predicado ("constrói um castelo" / "passa a habitá-lo") por uma só vírgula. Bem digo isto aos alunos! Fico com mais um exemplo (mau) para ilustrar o caso (a não repetir).
      De novo, no melhor pano cai a nódoa!
      Com uma imagem tão encantatória, aposto que a torre de livros vai ter o mesmo fim da torre de Babel.
      (Com Photoshop ou Paint, ainda se vai a tempo de eliminar os excessos).

     ... mas há castelos que parecem ser de areia, sujeitos ao pior dos ventos.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

No dia seguinte...

    Na sequência da festividade, a criação...

    Inspirado no mito que alimenta a vida, Eros ressurgiu.

Montagem de versos à margem da pintura de Edvard Munch: "Cupido e Psiquê" (1907)

    Porque não há dia nem precisa de haver festa - só quem ame e seja amado.
    Verso e poesia.

  Seja Eros seja Cupido, há setas que atingem os frecheiros (independentemente dos nomes e dos 'desastres de amor' que possam causar), quais feitiços que se viram para os feiticeiros. E assim nascem alguns versos.

sábado, 2 de novembro de 2013

Sena e Afrodite Anadiómena, mais outras experiências.

    Afrodite, saída das ondas, é mito clássico para figurar na mais criativa expressão da modernidade.

      Uma pintura anónima do primeiro século (79. d.c.) encontra-se em Pompeia, representando a divindade sobre as águas. A ascendência mítica remonta à civilização egípcia e à deusa Neith ou Nepte, Naus, Nuk ou Nut, numa nau celestial.


     Os versos de Arthur Rimbaud traçam-na com alguma abjeção, mesmo quando a figura poética tenha gravados, nas nádegas, os nomes Clara Vénus. A desconstrução do mito ou a sua reconfiguração preparam uma visão estética e poética assentes na metamorfose, na afirmação do desconhecido e na reinvenção da imagem cultural do mito.
    Na literatura portuguesa, Jorge de Sena tomará a poesia como a possibilidade de transformar o mundo e também a própria linguagem. Os 'Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena' escritos em 1961 são disso exemplo, além de outras experimentações em verso publicadas, por exemplo, em Peregrinatio ad loca infec-ta (1969), em Exorcismos (1972) ou, postumamente, em Visão Perpétua (1982) - todas elas rela-cionadas com a metamorfose da própria língua ao nível do sig-nificante (recorrendo a apócopes, síncopes, formações neológicas das palavras, colagens de segmentos, recuperação de arcaísmos e eruditismos, inversões, invenções lexicais, epítetos clássicos para referências mitológicas).
      Há quem veja neste trabalho criativo a aproximação de Sena a projetos de poesia experimental (na linha de Ernesto de Melo e Castro). Todavia, mais do que produções orientadas para uma dimensão semiótica a construir - nomeadamente, com signos não vocabulares -, a reconstrução da linguagem seniana não apaga muita da materialidade que a língua traz consigo, antes apostando na reminiscência de sonoridades e raízes gregas e/ou alatinadas; na possibilidade significativa da sugestão sonora e da organização morfossintática na própria dimensão sintagmática da língua; na invenção vocabular, potencial no português. 
   Graças a estes mecanismos, visa-se atingir uma significação nova, uma outra semântica, para a qual o poeta orienta, por exemplo, com as «Notas a alguns Poemas» (in Trinta Anos de Poesia, de 1972) ou ainda com as palavras citadas num ensaio de Gastão Cruz (cimo, à direita).

       Na recriação proposta, nas entradas que o leitor ativa para aceder à associação de imagens evocadas no texto (sonora, morfológica, sintática, conhecimentos enciclopédicos), a decifração do enigma faz-se, qual peregrino perseguindo locais e motivos poéticos que, na tensão do aparente nulo significativo, conduzem ao pleno infinito da significação; permitem a experiência radical de, pela conjugação de entradas de leitura, (re)construir um código feito do jogo poético composto de forças e redes de reiteração e dissonância.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Porque estamos a viver num inferno

      Anunciada como a história dos nove círculos, sete pecados e um segredo, o novo romance da Dan Brown já está nas minhas mãos.

    Rendi-me à compra daquele que é já considerado o mais recente sucesso de vendas das livrarias: Inferno, de Dan Brown.
   Escrevendo o nome do autor, pareço estar entre a primeira sílaba e a caminho para o nome de DANte Alighlieri, o poeta que melhor descreveu o retrato de um inferno tão aterrador quanto faminto de paraíso. Assim progride A Divina Comédia, com pouco de cómico, mas anunciando um final feliz; ou, segundo alguns autores, com muito de língua vernácula e dirigida à população geral (por contraste com a formalidade a representar a alta literatura, o cânone clássico exemplificado nas tragédias).
    Depois de O Código Da Vinci, Anjos e Demónios e O Símbolo Perdido, reencontro-me com Robert Langdon numa narrativa plena de mistério, intriga, referências histórico-culturais, codificações e simbologias que vão entretecendo o imaginário leitor e apresentando a cidade dos Médici: Florença.
     E assim me revejo, também, nos lugares visitados, pela lembrança evocando referências locais, artísticas, patrimoniais e monumentais dessa "Firenze" toscana, berço do Renascimento italiano projetado para a Europa trecentista, quatrocentista e quinhentista.
     Diria que estou no paraíso , no entanto, é o inferno que se impõe numa rede de congeminações; de jogos de poder; de retratos de doenças e pandemias; de maniqueísmos que (no confronto do bem e do mal) têm o efeito sensibilizador para grandes questões da Humanidade, mais a previsibilidade de, tal como n' A Divina Comédia, terminar num "happy end".

      Na descoberta do livro e em processo de leitura, sigo os trilhos infernais e romanescos, não muito distantes da vida real em que todos nos encontramos (porque feitos de vida e de sobrevivência, sempre na esperança de tempos melhores, mais justos e mais pacíficos, para que não se revele o que de mais aterrorizador, animalesco e dantesco possa existir na Humanidade).

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Dos mitos do fim do mundo

       Depois da sequência mágica, vem a lembrança fatídica.

       Duas alunas abeiraram-se de mim, entre o envergonhado, o assustado e o curioso, colocando a questão: se eu acreditava que o mundo ia acabar no dia 21.
     Disse-lhes que sim... e que devíamos agendar uma festa de despedida para o dia anterior. Riram-se.
       O facto é que insistiram, na busca de algum apaziguamento. Queriam perceber a razão por que toda a gente fala nisso. E foi o fim do mundo para mim: perdi o meu intervalo.
     Fi-las lembrar o que elas tinham ouvido aquando da passagem do milénio; fi-las saber que já muito antes tinha sucedido o mesmo com todos os milénios; muito rapidamente dei-lhes a saber algumas vidências e profecias que, no tempo em que foram formuladas, não tiveram o resultado anunciado (felizmente, para alguns casos; infelizmente, para outros).
      O ano 2012 teve já tratamento fílmico, numa abordagem do que a civilização maia previa como ano crítico para um povo, num jogo numerológico em que o dia 21 de dezembro se apresenta como fatal.
     Hoje pode dizer-se que o "fim do mundo" para essa civilização foi muito antecipado.
   Sabe-se também que muitos dos conhecimentos, das crenças, das divindades, dos costumes associados condicionam a visão do mundo e nessa relativização tudo deve ser equacionado - nomeadamente a mudança de ciclos. A alteração de qualquer ritmo no que fosse o aparecimento da luz solar seria visto como um sinal divino e ameaçador, particularmente para uma entidade suprema para a vida desta civilização mesoamericana (Kulkulcán era a versão maia do deus Quetzalcóatl asteca). Um eclipse solar teria, por certo, um significado muito para além daquele que atualmente pode ser cientificamente descrito. E este seria apenas um incidente no meio de tantos outros a contemplar.
     Foi então que perguntei às minhas interlocutoras o que elas achavam se, neste mesmo dia, um satélite deixasse de funcionar e, por exemplo, inviabilizasse o funcionamento de todos os dispositivos eletrónicos no mundo (telemóveis, multibancos, telefones, televisores, rádios, internet, só para falar dos mais familiares). A resposta veio pronta e válida, para qualquer data do que ainda resta de 2012 ou de anos vindouros: "Era o fim do mundo!"

      Lá está: aos nossos olhos, com os nossos costumes, conhecimentos e vivências o fim do mundo também é falado / previsto / previsível, sem uma data concreta, com tanto de catastrófico quanto das dependências que temos a todo e qualquer momento. Conclusão: é o próprio homem a construir o fim do mundo (pelo que deve ter mais medo de si mesmo e das necessidades que cria).

domingo, 29 de abril de 2012

"De que sofre esta cidade?"

     Esta cidade, Tebas (velha cidade de Cadmo) ou outra, maior ou mais pequena, remota ou atual, deveria sempre ter esta pergunta, para a busca da resposta.

     A tarde foi passada no auditório da Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE) - Teatro do Bolhão, em boa companhia e com grande representação.
    Num anfiteatro (qual encosta de degraus não de terra nem de pedra, mas de cadeiras - quase poltronas - voltadas para um palco), frente a um palco dominado pela essencialidade minimalista de um cenário e por um grupo de ótimos atores (a que não faltou um coro, enquanto personagem múltipla, cujo canto ritmado servia de comentário à ação dramatizada), assisti a Édipo, de Sófocles. Com encenação de Kuniaki Ida, o elenco contava com as participações de António Capelo (Édipo), João Paulo Costa (Tirésias, Jocasta e Servo), João Cardoso (Creonte e Mensageiro), além de Pedro Lamares (Corifeu) e um coletivo de jovens artistas.


    Nas primeiras décadas do século XXI reencontrei-me com alguns sinais do último quartel do século V a.C. Foi o caso da representação assente em três atores masculinos (o protagonista, o deuteragonista e o tritagonista);  da figura do Corifeu liderando o coro; do tom e do conteúdo trágicos do texto; da conciliação dos opostos (um homem que se sente livre, mas que só o é enquanto percorre um caminho fatalmente determinado; a modernidade de adereços conjugada com a clássica máscara em Jocasta mais a sugestão de trajes e o calçado de sola espessa dos sacerdotes que prestavam culto a Dionísio; o conhecimento e a consciência portadores da desonra fatal, das maldições que fazem sucumbir o Homem). Junta-se-lhes o sentido didático e emocional da peça (com confrontos explicitamente demonstrados e publicamente partilhados, suscitando, perlocutoriamente, o terror e a piedade), a força do destino que aprisiona o Homem àquilo de que o próprio possa tentar fugir ou contrariar - tudo ingredientes típicos para um género marcado como a maior expressão literária da antiguidade, conforme o evidenciavam as práticas teatrais dionisíacas (as mais conhecidas), com representações diárias de três tragédias, fechadas com a apresentação de uma comédia.
      Sófocles foi grande figura nestes eventos tão religiosos quanto cívicos. Édipo foi um dos seus textos, do ciclo tebano (acerca da fundação da casa real de Tebas, por Cadmo), retratando a tragédia de caracteres, composta pela pretensa individualidade espelhada na vida social da pólis.
     Desde o início da obra, a questão da atualidade impõe-se, pelo diálogo mantido entre o Corifeu e Édipo. É a crise, o drama da cidade revelados:


«Visto que desejas continuar no trono, 
bem melhor será que reines sobre homens
do que numa terra deserta. 
De que vale uma cidade, de que serve um navio, 
se no seu interior 
não existe uma só criatura humana?»

     O percurso cénico do despojamento de Édipo - da túnica do poder ao pé descalço de uma figura voluntariamente cega e desamparada - é o caminho de um decifrador de enigmas que tudo quer saber e se agarra à vontade de não fugir à verdade; o do conhecimento ou da consciência que se revela ignorância, na interpretação errada de sinais e na fuga que não dá lugar ao afastamento ou à distância do indesejável - antes à proximidade e à concretização trágica das profecias dos oráculos. 
      Entre a cegueira do Homem e a insegurança da condição humana revê-se um dos mitos gregos de maior relevo.

     Assim se traça a complexa procura e revelação da identidade de um herói lendário grego (que matou o pai e procriou com a mãe), mais ajustado ao que de anti-herói tem (pelo entrecruzamento da fragilidade humana no sacrifício supremo do autoconhecimento, com a marca do fatalismo, da crueldade e da determinação do destino).

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Novas abordagens para velhos mitos

      Um filme que se vê...
   
      Este é o balanço do visionamento de 2012, sempre com a noção de que se trata de um "dejá vu".

  Trailer do filme de Roland Emmerich (2009)

     Para quem já viu 'The Day After', 'The Day After Tomorrow', 'The Independence Day' e outros do género, '2012' pouco traz de novo. É o regresso do mito do fim do mundo, ficcionalmente tomado por alguma esperança na humanidade (pena que esta seja vista sempre após um período de crise e de catástrofe).
     Registo, contudo, algumas notas:
. o ressurgir de um mito fértil na ficção dos tempos, desta feita sob a égide da leitura, da profecia, das premonições que a civilização Maia deixou à Humanidade;
. a retoma de motivos bíblicos (desta feita com a Arca de Noé, símbolo da preservação das espécies, e os tempos recuperados do dilúvio, no Velho Testamento), como sinal do renascer dos tempos ou marca romântica do eterno retorno;
. a recuperação do tópico de África como o continente-berço da humanidade (num renascimento da Humanidade e numa releitura 'up-to-date' do que seja o 'Cabo da Boa Esperança');
. a numeralogia a fazer das suas (21-12-2012), num jogo entre "Saltimbanco" (I), símbolo da origem das coisas e de um valor solar, e "Papisa" (II), símbolo do crescimento e do indefinido que se repete a partir da unidade; sem esquecer "A Imperatriz" (III), símbolo do sentido de comando e de acção numa iluminação benéfica ao espírito pela possibilidade de ensinamento (a força mental à disposição do ser), nem "O Papa" (V), poder espiritual e força de acção sobre o plano material (graças ao qual o poder material, físico se redime, salva, redefine);
. a glorificação dos tempos de esperança, de que este século de Obama parece ser sintoma, tanto na ufania do Nobel da Paz deste ano como na messianização ou no toque de esperança em que o primeiro presidente negro dos EUA tem vindo a ser envolvido... ou se tem vindo a envolver (basta ver quem são os bons da fita).

      Sem a espectacularidade ou a novidade dos antecessores no género, com algum registo de cómico nas situações visionadas no seio da catástrofe, este é mais um filme para encher algumas salas de cinema.