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segunda-feira, 6 de julho de 2020

(Mais) Um romano para o mundo, com " O Amor a Portugal"

          Começou o dia com o anúncio da morte de Ennio Morricone.

      Não se pode dizer que seja inesperado, para quem já tinha 91 anos, mas a juventude e a força reveladas um ano antes, no concerto do Altice Arena (Portugal), faziam prever que ainda havia resistência suficiente para construir novas melodias ou conduzir outros espetáculos.
     Falar de Ennio Morricone é sinónimo, entre outras coisas, de música no cinema. O compositor e maestro italiano, nascido e falecido na sua cidade natal (Roma), é uma figura mundialmente conhecida, pela projeção que teve, e ainda tem, com as bandas sonoras de filmes como Era uma vez na América (1984), A Missão (1986) ou Cinema Paraíso (1989), só para citar alguns dos títulos mais sonantes.
       Dizer que ele deixou música para a vida é afirmação demasiado simplista, porque foram / são várias as melodias que estão gravadas na mente: das mais de quatrocentas partituras que compôs para cinema e televisão, há ainda a acrescentar mais de uma centena de obras clássicas. 
      As cinematográficas são, efetivamente, as de maior projeção. São mais do que reconhecíveis sonoridades como...

Banda sonora de "Era uma vez na América" (1984)

          ... ou...

Interpretação de uma das músicas de Ennio Morricone, 
no filme Cinema Paraíso (1989)

      A sua primeira indicação para Óscar ocorreu em 1979, pela banda sonora de Days of Heaven (Terrence Malick, 1978); a segunda, por A Missão (Rolland Joffé, 1986); outras se seguiram, até que, em 2007, recebe, a título honorífico e pelos contributos na música da Sétima Arte, o Óscar Honorário. Em fevereiro de 2016, finalmente, acaba por ganhar seu primeiro Óscar competitivo, por The Hateful Eight (Quentin Tarantino).
        A ligação do compositor a Portugal, para além dos espetáculos cá conduzidos, faz-se também com a voz de Dulce Pontes. Com o álbum Focus (2003), materializou-se uma colaboração da cantora portuguesa com o maestro italiano: ela a cantar alguns dos clássicos dele, que se tornou seu admirador na voz.
         E entre os clássicos, apareciam alguns originais - um deles intitulado "O Amor a Portugal":

Versão orquestral de "O Amor a Portugal", de Ennio Morricone

O AMOR A PORTUGAL 

O dia há de nascer
Rasgar a escuridão
Fazer o sonho amanhecer
Ao som da canção e então

O amor há de vencer
E a alma libertar
Mil fogos ardem sem se ver
Na luz do nosso olhar
Na luz do nosso olhar

Um dia há de se ouvir
O cântico final
Porque afinal falta cumprir
O amor a Portugal
O amor a Portugal

        Se a música é símbolo de harmonia, Ennio Morricone muito contribuiu para ela(s). RIP.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Revendo 'A Lista de Schindler'

     Foi dos filmes mais marcantes do final do século XX, obra-prima de Steven Spielberg.

    Já há um tempo andava com vontade de rever este filme. As interpretações de Liam Neeson (Oskar Schindler), Ben Kingsley (o contabilista judeu Itzhak Stern) e Ralph Fiennes (o comandante alemão Amon Goeth) são marcantes, bem como produção feita a preto e branco maioritariamente (só aqui e ali com uma nota de cor). No enredo, situado entre 1939 e 1945, revê-se a Polónia nazi, o genocídio dos judeus, a Checoslováquia da fábrica e do campo de concentração de Schlinder (Brünnlitz). Em mais de três horas, retratam-se, de forma mais ou menos ficcionada, episódios de vida de um Justo entre as Nações mais o périplo de um povo que, na II Grande Guerra, viveu mais uma etapa trágica na sua diáspora.

Compacto de A Lista de Schindler (1993)


    Inspirado no livro homónimo de Thomas Keneally, é seguramente um dos filmes da minha vida, desde que há mais de vinte e cinco anos ficaram imagens fortes como a da irritante criança loura que assiste ao desfile de judeus nas ruas polacas e grita "Goodbye, Jews!"; a do professor de História e Literatura que não é considerado "trabalhador essencial", mas acaba por o ser quando diz ser "polidor de metais"; a dos soldados alemães que discutem se a música tocada por um outro é da autoria de Bach ou de Mozart, enquanto ocorre o fuzilamento de vários judeus; a da criança vestida de vermelho, que se esconde do exército nazi, mas acaba junto de outros corpos; a do intolerável comandante Amon Goeth a fazer "tiro ao alvo" da sua varanda para alguns judeus que se encontram no campo de concentração de Płaszów; a de crianças que se escondem nas sanitas conspurcadas, na esperança da sobrevivência; a de uma outra criança insuportável a simular, com a mão, o corte de pescoço para as mulheres que chegam ao campo de Auschwitz-Birkenau; a do banho ameaçador das mulheres numa câmara que, em vez de água, bem podia ter sido de Zyclon B; a do comovente Schindler a chorar por não ter conseguido salvar mais judeus. O percurso deste povo é representado na pior das agonias.
     Mais significado ganha o filme quando, apesar da distância no tempo, se contacta com os locais nele retratados: a fábrica de Schindler e a judiaria, em Cracóvia; o campo de Auschwitz-Birkenau.

Praça Bohatérow Getta (ou dos Heróis do Gueto), no distrito de Podgorze, 
no gueto judaico de Cracóvia, com Monumento das Cadeiras, diz-se, pago por Roman Polanski
 (local onde eram selecionados os judeus para os campos de concentração) - Foto VO

Fachada da fábrica de Schindler, em Cracóvia - Foto VO

Janela à entrada da Fábrica de Schindler 
(com fotos e nomes dos trabalhadores judeus) - Foto VO 

Monumento Judeu junto ao bairro Kazimierz, onde este povo vivia na cidade, antes da II Guerra
(colocação de pedras como prática nas sepulturas judaicas, lembrando a época do Antigo Testamento) - Foto VO

Pórtico da Sinagoga Remuh, ao fundo do bairro Kazimierz
(nome a lembrar o rei Casimiro, fundador do espaço judaico na Baixa Idade Média) - Foto VO

    O bairro Kazimierz foi local da gravação cinematográfica, tendo-se, a partir desta última, conseguido a recuperação do espaço (dado o interesse turístico que o tem marcado). Quem por ele passeia não deixa de sentir o peso da História, os sinais da tragédia, o espírito de uma revolta contra quem pôde alguma vez defender o genocídio judeu, o holocausto.
      Na confluência de sentimentos, quando percorri estes locais, dizia para comigo que tinha de rever A Lista de Schindler. Entre a revolta do vivenciado com as políticas antissemitas e a admiração por um homem, no meio de outros iguais, dominou um sentido de compaixão e de gratidão muito forte. A cena final do filme (homenagem dos judeus salvos por Schindler junto à campa, em Jerusalém, no Monte Sião) é a representação maior da figura dessa gratidão, uma espécie de pacto ou princípio que, aliás, atravessa toda a película, ainda que numa multiplicidade de sentimentos bem difusos: o de Schindler para com Stern, no reconhecimento do trabalho deste; o de Amon para com Schindler, enquanto parceiros de negócios pautados por suborno e contrabando; o de Schindler para com uma judia, beijando-a num dos aniversários dele, quando lhe é ofertado um bolo; o dos judeus para com Schindler, à hora da rendição alemã incondicional, oferecendo-lhe um anel a partir de um dente de ouro fundido, a partir dos bens de muitos, e trabalhado à hora do final da guerra.
        Hoje o Ser Humano não pode deixar de estar, quase por ironia, agradecido a um partidário inicialmente nazi, o único que tem sepultura em território judeu, pelos mais de mil que ajudou a salvar.

      De oportunista interessado em ganhar dinheiro a herói tomado pela humanidade (sem escolha) ao salvar judeus, Oskar Schindler fica para a memória de muitos como um dos protagonistas da Sétima Arte, num filme que recebeu sete óscares, um deles o de Melhor Filme (1994). E foi tudo, na base inspiradora, tão real!

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Havia melhor

       A propósito do Óscar para melhor filme (não para mim): O Parasita

      Não discuto a nomeação. Todavia, a decisão final é estranha (e não entranha). A expectativa de ver um bom filme, até por já ter vivenciado experiências gratificantes (algumas de uma estética e sensibilidade poéticas marcantes da cinematografia oriental), não é completamente defraudada (por alguns momentos e aspetos conseguidos), mas não marca. Demasiado hollywoodesco ou ocidentalizado, para ser alternativo, diferente.
      A nota cómica inicial da intriga, que demonstra como o oportunismo joga com o parasitismo tecnológico, social, pessoal construído em diferentes campos - num aproveitamento de oportunidades propícias a inteligências nada virtuosas, tanto para pobres como para ricos -, evolui para uma ação mais densa, de uma violência cómico-trágica, numa leitura realista da condição social desesperançada:

Trailer do Óscar de Melhor Filme de Hollywood (Parasitas)

     Bong Joon-Ho, realizador sul-coreano, propõe bons planos, tonalidades diversas para a cor social contrastante, retratos de realidades bem distintas, reflexões acerca dos limites do oportunismo e dos jogos de essência e de aparência (perspetivados na exploração das metáforas das caves e das realidade visíveis no contraste das classes sociais). Máscaras múltiplas, mentiras e segredos são denunciados; a crítica a regimes políticos não deixa de estar presente (com a primeira governanta dos bem-sucedidos Park a explorar esse tópico, numa cena de reação e revolta à pretens(ios)a ascensão da família de Ki-Woo); a janela de oportunidades resulta numa visão muito difusa: da cave dos pobres para o mundo superior dos também desfavorecidos; do salão de uma mansão luxuosa para um jardim, onde a festa resulta em palco de tragédia. Depois, fica o terror que não o é, a "comedy of errors" que deixou de o ser, a liberdade adiada, o desejo de libertação que se vislumbra, mas está ameaçado (se não estiver condenado). Das personagens da história, pouco resta, não havendo nenhuma que tenha impacto, seja na atuação seja na caracterização. Parecem muitas máscaras para alguns rostos, dominadas por um percurso muito disfórico, no qual a hipocrisia, a mentira, a aparência, a ingenuidade, a revolta, a loucura saem como maiores protagonistas. Delas fica a imagem das que vivem presas a uma circunstância, mais para o definitivo do que para o transitório, aparentemente com algum sinal de recuperação / reversão; porém, este último resulta em breve instante inconsistente e inconsequente (se não for mais desfavorável do que o ponto inicial). Que o digam Ki-Woo, a mãe, o pai, ou mesmo os ricos sobreviventes, tão afetados pelo "cheiro" contínuo a pobreza, a decadência, a podridão ou doença humanas. Afinal, a vida acaba por comprometer os planos que se traçam e a que se aspira. Parece, contudo, que também a inexistência destes não propõe melhor resultado: redunda na quebra da ordem, em atos desesperados e na instauração do caos, da desgraça.
     Desigualdades e ironias de vida subsistem. Sugere-se uma liberdade, face a uma justiça que não a acompanha, mas que não deixa de aprisionar o ser humano. A expectativa de um tempo outro traduz-se numa comunicação virtual, em código morse ou outro, sem muita hipótese de vingar - fica-se pelo desejo, pela expressão de uma intemporalidade que não se compatibiliza com o Homem. A pedra da fortuna não deixa de ser pedra (para um ato agressivo) de uma fortuna, uma sorte, um destino com cores de desaire(s). O "Até um dia!" ameaça ser uma eternidade sem qualquer liberdade, apesar da nota de humanidade.

       Um mal-estar, em círculo fechado, num final tão próximo do início que desconcerta e parece não ter conserto. Desconforto, por certo. Preferia um "Joker" ou "Uma Vez em Hollywood", por mais que a diversidade com um sul-coreano seja expressão de outras oportunidades fílmicas (esperemos que não seja nenhum oportunismo de interesses da Academia da Sétima Arte).

sábado, 28 de dezembro de 2019

Dois Papas (ou uma realidade cruzada com ficção)

       Título para um filme da Netflix com alguma inspiração na realidade.

      Histórias do Vaticano e das vivências dos Papas ou a visão crítica do poder institucional pontifício têm sido fonte inspiradora para a produção de longas metragens na Sétima Arte. Dois Papas, pelo brasileiro Fernando Meirelles (que conta com produções como Cidade de Deus e Ensaio Sobre a Cegueira), é mais um desses exemplos, no registo de uma dessacralização e humanização louváveis. Apoiado num roteiro do neozelandês Anthony McCarten (de A Teoria de Tudo), baseado no livro O Papa, o filme propõe uma intriga construída a partir de conversas ficcionalmente verosímeis entre o Papa Emérito Bento XVI e o cardeal de Buenos Aires, Bergoglio - hoje o Papa Francisco.
    Recuando aos tempos da eleição de Ratzinger (2005) e de Bergoglio (2013), há dados de "acontecimentos reais" cruzados com ficcionalidade tão plausível quanto os Papas serem humanos, Joga-se mais com os homens do que com a posição santificada que ocupam - homens que dançam tango, comem pizza, torcem por equipas de futebol e falam sobre os ABBA (quando Bergoglio trauteia 'Dancing Queen'), tudo é verdade tão convincente quando a ficção instaurada. A ser verdade, este conjunto de episódios resulta tão caricato que aproxima e familiariza as personalidades representadas de todos os que as conhece(ra)m e delas têm uma imagem com a qual mais ou menos se identificam.

Montagem de Trailers do filme de Fernando Meirelles (2019)

       O dado mais real é o da renúncia factual de Bento XVI e a ascensão do argentino Jorge Mario Bergoglio a Santo Padre. A ficção mais evidente é a da crítica aos sapatos desatacados de Borgoglio, quando foram os vermelho de Bento XVI mais contundente e veridicamente comentados; a do confronto de duas personagens, entre a mais dogmática e erudita e a mais progressista e pragmática, interpretadas por Anthony Hopkins (Bento XVI) e Jonathan Pryce (Francisco), a espelhar vivências e visões de mundo bem distintas, ainda que complementares e convergentes na resolução de uma crise eclesiástica crescente e resultante de sucessivos escândalos (como é o caso dos abusos sexuais, a corrupção moral e financeira, as relações com regimes ditatoriais, entre outros).
     O sigilo do que se passa na Capela Sistina à hora da eleição cardinalícia é de alguma forma desvelado, numa encenação marcada por rituais e formalidades que pairam em registos dispersos a que ninguém, para além dos purpurados, assistiu, mas que foram ora tornados públicos ora sucessivamente desmentidos. No talvez seja, a fronteira entre o ser e o não ser resulta frágil; no filme, é tratada como uma possibilidade de encenação de jogos de influência. Não bastam as relações do poder político com o religioso (e vice-versa); as ascendências e os influxos internos à instituição da igreja são uma imagem bem evidente do(s) poder(es) convocado(s), distinta do sentido religioso mais espiritualmente virtuoso.

Cena do filme 'Dois Papas' (2019), de Fernando Meirelles

       O espírito final do filme, com ambos os papas em amizade estreita, é o da reconciliação, o do perdão, o do reconhecimento que é mais forte e humano o que (n)os une do que as ideias que (n)os possam separar - se é que estas alguma vez foram assim tão diferentes, a julgar pelo espaço que um Papa dá a outro. Afinal, a confraternização e a celebração de um jogo do mundial são pontes de uma aproximação que se faz noutros capítulos da vida, como nos da fé. É possível que os contrários se atraiam, que os diferentes se juntem e que os opostos busquem plataformas de entendimento.

       Entre as reflexões sérias e as confissões fortes das conversas mantidas, há também espaço para o cómico, o caricato, o inusitado e o inesperado - ingredientes necessários à identidade feliz e inteligente da vida humana.

sábado, 21 de dezembro de 2019

O Irlandês - ou um mafioso nos Estados Unidos da América

    Um pouco na linha de O Padrinho (de Francis Ford Coppola, 1972, 1974, 1990), O Irlandês (Martin Scorsese, 2019) revela-se um retrato de personagem perfilado como mais humano.

    Refiro-me, naturalmente, a Frank Sheeran (Robert De Niro), mais particularmente ao percurso dele no final do filme, se não me ativer ao ponto de arranque da película, que dá lugar a um flashback (por vezes entrecortado por pequenos apontamentos dessa fase final de vida) daquele que se tornou num mercenário sindicalista nos anos sessenta do século passado.
      Numa teia de relações entre a mafia italiana e a ação dos irlandeses no contexto histórico americano do século XX, a personagem passa de simples camionista / transportador de carnes a sindicalista de carreira no mundo do crime organizado - ou, como metaforicamente o assume, como aquele que "pintava paredes e tratava da carpintaria", numa forma disfarçada de dizer que matava e fazia explodir, respetivamente, quem e o que era sinalizado como perigoso para o líder da família Bufalino, isto é, Russel Bufalino (Joe Pesci).
        No perfil de um veterano sobrevivente da Segunda Guerra Mundial e de um homem que quis proteger a família construída, não houve limites para os meios que o levassem a atingir este objetivo: tornou-se num assassino que, na fidelidade para com os Bufalino, acabou por matar um amigo de longa data, Jimmy Hoffa (Al Pacino), líder do sindicato dos camionistas (tão corrupto quanto qualquer outro mafioso da intriga).

Trailer do filme Netflix (2019), realizado por Martin Scorsese

     Enquanto filme do crime organizado na América e num enquadramento histórico associado à ascensão e morte do presidente Kennedy, a intriga inspira-se numa obra de Charles Brandt, datada de 2004 e com o título I heard you paint houses, apoiada no registo biográfico verídico das personagens representadas.
      A perspetiva narrativa do filme identifica-se com a do protagonista que, entre a melancólica revisão do passado e a expectativa de uma morte que vai preparando, termina os seus últimos dias a recuperar o que parece irrecuperável e irremediável: o respeito das filhas que acabaram por o abandonar à velhice isolada e à progressiva limitação de ações / movimentos.
       Uma porta entreaberta fecha o filme. Seja pelo anúncio da morte que está para chegar seja pela ansiada entrada das filhas ao hospital, o que poderia sinalizar um perdão desejado por Frank para os seus atos condenáveis, ditados por um livre arbítrio indesculpável.

      Representações excelentes de Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, um trio de atores que contribui para um retrato de personagens e uma ambiência epocal tão cúmplices com os propósitos criminosos na luta de poder(es) quanto ilustrativos de diálogos entre o enigmático e o sigiloso tornados cómicos. Um filme Netflix a não perder.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Ainda des(cons)truindo mitos

      À nona longa-metragem, Tarantino dá à Sétima Arte um filme com muitos outros dentro.

    Começando pelo fim: após o clássico "The End" e na sequência da apresentação dos créditos fílmicos, numa espécie de making of em registo cómico, surge a personagem central do filme (Rick Dalton, na interpretação feita por Leonardo DiCaprio) a publicitar uma marca de cigarros, até que, repentinamente, o discurso do elogio dá lugar à crítica e à aversão ao produto anunciado. Assim se constrói ilusões, se denuncia como se manipula o público e se dá a ver que a fronteira entre a representação e a realidade pode ser bem expressão do seu contrário. Assim se dá início ao desconcerto.
       A dupla DiCaprio (Rick Dalton) - Brad Pitt (Cliff Booth) assume-se na centralidade de uma intriga focada, respetivamente, na vida de um ator em decadência que luta por manter uma carreira cinematográfica; de um duplo com passado dúbio, tornado assistente de Dalton, por só com este parecer ter emprego. Na vida glamorosa de Hollywood, estes exemplos de anti-heróis parecem evidenciar bem mais as inseguranças e fragilidades humanas do que a realidade fantasiosa e idealizada vendida pelo cinema.
     Começa aqui a quebra de um mito: o de que tudo é bom no brilho da cidade do cinema. Um Dalton com sinais de gaguez, rendido à segurança de uma criança que o acompanha nas gravações de um far-west é um dado apenas; um Booth ensombrado pelo passado, sem nenhum desempenho da sua função (destacando-se por dar comida ao cão ou por desafiar um Bruce Lee fantasioso) é outro; uma Sharon Tate (Margot Robbie), deslumbrada pelos seus desempenhos - que ninguém parece conhecer -, a ressonar no seu sono de ‘bela loura adormecida’ ou a colocar os pés sobre a fila da frente no cinema é mais um; um local que serviu de filmagem para westerns servir de antro de violência, libertinagem desvairada e habitáculo de impuros e rejeitados (metaforizando o habitat dos seguidores de Charles Manson ou de todos aqueles que conseguem, com discursos manipuladores, legitimar o impensável no seio do caos apocalíptico da sociedade em geral) é outro ainda.
     O final da década de sessenta traduz também uma mudança, o fim de um tempo: os acontecimentos do verão de 1969, quando a Família Manson põe fim ao movimento “peace and love” com uma série de assassinatos pela cidade de Los Angeles, espelham essa viragem. O movimento hippie transformado em fonte de serial killers é a fonte para que Tarantino consiga introduzir, na película, o seu estilo excessivo e destrutivo, misturado com o efeito cómico dele resultante; é a oportunidade para destruir o mito da eterna inocência, para questionar o ideal hollywoodesco, ao incorporar em si, o poder influenciador de gerações – e, nestas, não deixam de existir elementos desvairados, desviados e perturbado(re)s.

Trailer do filme de Quentin Tarantino

      Desconstruindo a ilusão e a fantasia, a maior prova de todas dessa intenção é o recurso a atores conceituados que representam personagens que menorizam as estrelas; a aproximação a referências da arte cinéfila, subliminarmente sugerindo atores e filmes das décadas de 50 e 60 do século XX, para não mencionar alguns da carreira do próprio Tarantino; a relativização do trágico ataque à casa Dalton face à socialização dos vizinhos famosos. Em contrapartida, aquelas impõem-se pela reconstrução ficcional de factos da cultura e da vivência norte-americanas: contrariamente ao realmente sucedido, a namorada de Roman Polanski é poupada à morte dos Manson; os Manson morrem, em vez de matar, atacando a casa de Dalton e não a dos Polanski.

     Era uma vez no Oeste (1968)? Não. Era uma vez na América (1986)? Também não. Era uma vez… em Hollywood (2019). Sim, enquanto expressão interfílmica conseguida por Tarantino, trazendo outros filmes para o seu filme ou desmontando e destruindo mitos que (ainda assim) não negam a perceção de Hollywood como espaço de fantasia(s), de alternativa(s), de 'era uma vez' (ou muitas vezes).

sábado, 3 de agosto de 2019

'O Rei Leão'... com reflexão de inclusão?

      O remake de 'O Rei Leão' (2019), dirigido por Jon Favreau, não faz esquecer a versão animada da Walt Disney de 1994.

      A expectativa era naturalmente grande. O resultado final é sempre condicionado pela experiência de quem viu o original (já com um quarto de século, dirigido por Roger Allers e Rob Minkoff, com as melodias de Elton John e Tim Rice). O impacto foi maior então; hoje, é sempre uma versão com um visualismo mais natural / real, numa sincronia de movimentos animais e vozes humanas que captam a atenção do espectador, para além da cor das paisagens, da mensagem da intriga e do registo de vitória e felicidade finais para o que é, e sempre será, uma metáfora do ciclo da vida.

       Trailers (montagem) do remake de Jon Favreau

      Sem o efeito total de surpresa, mantém-se algum do encanto da mensagem: um hino ou a apologia dos valores da vida (feliz). Os conflitos que esta propõe, a morte que a finda ou complementa, o confronto com os medos, a sede de poder, o oportunismo e a hipocrisia que marcam a humanidade estão bem representados nesta história. Nem tudo é o virtuosismo de Simba e Nala, Mufasa e Sarabi; nem só de Pumbas, Timons e Zazus se compõe a comédia e a atitude 'Akuna Matata' (diga-se, os problemas são para esquecer), que nos fazem experienciar instantes de felicidade. Há ainda cicatrizes (como a de Scar) e hienas (mais ou menos perversas e ameaçadoras) que complicam o ciclo da existência.
       No final da película, fica sempre a sensação de que estas últimas eram escusadas. Não se perde o ciclo da virtude (pelo menos, em termos da ficção), mas é caso para perguntar se vale a pena tanta perda e tanta dor decorrentes de forças malévolas como as de Shenzi e Scar, ou do egoísmo e distanciamento que outras hienas exploram de forma hilariante, mas não menos crítica. A lição do altruísmo, da amizade, da solidariedade, do amor e da família compagina-se com a do cinismo, do perigo, da falsidade e da traição, quase como se fossem duas faces de uma só moeda.
     Quando no fim se retoma o início (com a apresentação à comunidade do sucessor de Simba), prevê-se e prenuncia-se um futuro apaziguador, mais justo, mais integrador. A diversidade animal e o equilíbrio natural afirmam a legitimidade do rei, mas é bom lembrar que as hienas não deixam de existir. É certo que afastam "Scar", mas a barriga e o apetite delas não são facilmente saciados. 

       Não sei que inclusão poderão estas hienas ter, senão a da sombra (por mais que dê valor à luz) ou a do mal (por mais que sublinhe a necessidade e a vantagem do bem). Não as desejo, senão bem longe de mim.

terça-feira, 28 de maio de 2019

A Magda anda aí!

         Só para quem via / vê o "Sai de baixo!"

       Anunciado que está o filme baseado numa das mais cómicas séries televisivas da TV Globo (transmitida pela SIC, pelos anos 2000), o encontro com Caco Antibes (Miguel Falabella), Magda (Marisa Orth) e Ribamar (Tom Cavalcante) parece ter sido antecipado. Os insólitos de linguagem de Magda parecem inspirar a foto seguinte:


       Isto de "embriagar" obras é típico de Magda, mulher "impolerada", que quer o "triplex" do que lhe querem dar:

Trailer do filme, realizado por Cris D'Amato (2019)

       Para quem achar que não há comédia que resulte, há que ter calma: não somos deficientes visuais (por isso, não ouvimos nada)!
       "Há males que vão para Belém!"

       No caso da foto reproduzida, é caso para dizer que a obra não sobe, não "sai de baixo"!

sábado, 20 de abril de 2019

Transformar corações (com o livro do Senhor Green)

     Talvez um lema; quiça o objetivo da comédia Green book, vencedora do Óscar de Melhor Filme, Melhor Ator Secundário (Mahershala Ali) e Melhor Argumento Original.

    É, pelo menos, o propósito de uma das personagens - conforme se explicita numa das múltiplas situações, de inspiração factual, retratadas e vividas pelo pianista negro Don Shirley (Mahershala Ali), aquando da sua tourné pelo "Deep South" (Estados Unidos).
   Numa parceria improvável a fazer lembrar Amigos Improváveis (2011), desta feita, o patrão é negro; o empregado, branco. Don Shirley e o seu motorista-segurança Tony Vallelonga (Viggo Mortensen), respetivamente, são antípodas um do outro, quanto à formação, à vida que levam e à posição social que ocupam; contudo, as vivências e as aprendizagens aproximam-nos mais no que têm de semelhante do que nas diferenças que os marcam inicialmente. 
     O empregado branco e o patrão negro são a opção de partida para a desconstrução desejada. A sofisticação e o requinte do segundo contrastam com a limitação superficial e a instintividade do primeiro. Don fica chocado com o linguarejar e a latente discriminação do empregado face aos negros, não obstante a consideração neste observada pelos valores da família, pelo espírito aguerrido e pela irreverência (que acabam por proteger o pianista); Tony reconhece o talento do patrão, bem como a qualidade da sua escrita, acabando por o ajudar nas situações em que, injustamente, a segregação se evidencia, quer entre brancos quer entre negros. Na verdade, o filme aborda não só a desigualdade étnica, baseada essencialmente na questão cor, mas também a diferenciação / representação dos negros entre si - mais especificamente, dos que se encontram relativamente bem posicionados na vida (como Don) e que veem, com distanciamento e rejeição, os que nada têm senão o trabalho forçado, escravo, ou os que se ficam pela camada cultural mais elementar / popular, e vice-versa.
     O roteiro escrito por Farrelly, Brian Hayes Currie e Nick Vallelonga constitui o argumento do filme dirigido por Peter Farrelly, a convocar o livro The Negro Motorist Green Book, abreviada e informalmente conhecido por Green Book - guia turístico para viajantes afroamericanos, redigido por Victor Hugo Green, com o intuito de os auxiliar na procura de dormitórios e restaurantes amigáveis a pessoas de cor, num contexto em que o racismo e o preconceito imperavam no universo americano.

Trailer Oficial de "Green Book - Um Guia para a Vida"

     Entre o cómico de situações e a hipocrisia preconceituosa (nomeadamente a dos brancos que batem palmas ao famoso pianista negro, mas o impedem de frequentar a casa de banho ou de jantar num restaurante para brancos), o filme é uma construção, uma lição de humanidade - uma transformação dos corações e das mentes da década de sessenta nos Estados Unidos da América, inclusivamente os de Tony (que começara por colocar ao lixo dois copos usados por negros) e de Don (que toca para os seus companheiros de cultura negra no registo do jazz).

       A viagem dos protagonistas pelo "Deep South" é o confronto com a segregação dos negros; o regresso ao norte é a afirmação dos valores multiculturais e da integração multiétnica. O final, em época de nevada natalícia, é o sublinhar de um percurso assente nos valores da vida, em qualquer cor; no calor humano, amigo e familiar que permite suplantar diferenças, afastamentos, divisionismos, preconceitos. Mais do que justificados os Óscares!

quinta-feira, 7 de março de 2019

O empréstimo e o imposto (ou vice-versa)

      Assim que revejo a minissérie Os Maias, de João Botelho (2014), lembro o presente.

     Talvez fosse de lembrar o passado. Porém, este tem características tão comuns com o presente que das duas uma: ou Eça era um visionário (antecipando no século XIX os vindouros) ou a realidade atual não consegue escapar ao que o outrora já ditou. E um pouco das duas também não é hipótese a descurar:

Excerto do 'Hotel Central' na minissérie Os Maias
de João Botelho (2014)

     Entre o empréstimo e o imposto se constrói a conversa ficcionada do Hotel Central, onde Cohen (político) é um dos mascarados e ridicularizados queirosianos; entre um e outro tem ainda e factualmente vivido muito português (se não for de dizer todo um país). Talvez desde sempre e por certo a continuar. É o que se me afigura pensar quando ouço um ministro dizer que o empréstimo feito por um banco da nossa praça não será pago com um cêntimo dos contribuintes; que serão os juros e dividendos da banca a fazê-lo daqui a trinta anos, também graças a um fundo de resolução bancária que mais parece um remédio milagreiro capaz de multiplicar milhões.
    Não sei se cá estarei para o ver nessa altura, mas creio que, muito antes, haverá um novo imposto ou uma outra forma sinónima de "contribuir" para este empréstimo bancário. Não dá para acreditar nas certezas ou afirmações de alguns governantes, quando o (des)governo se evidencia, por exemplo, no apagamento de tempo na carreira de profissionais (refiro-me, claro, a nove anos, quatro meses e dois dias - no mínimo; ao tempo de serviço docente que, por ter existido, não se quer ver como tal, a pretexto de uma dádiva de dois anos, nove meses e dezoito dias ou sob o argumento de que outros congelaram o que, agora, os "benfeitores" repõem, em versão compacta).
     O descrédito na palavra e nos atos é uma evidência presente, quanto mais no que venha a suceder daqui a três décadas (talvez não pelos mesmos, mas por outros afins na cor política ou na falta da verdade que, manifesta e retoricamente, é manipulada em detrimento de quem efetivamente trabalha e se vê espoliado de um tempo trabalhado, pago, descontado e que parece ser tratado como se virtual ou ficcionado fosse). 

     Triste de um país que se vê (des)governado assim - não há seguramente crédito no que se diz nem no que se faz (fez e se fará).

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

'Amor de Perdição' em versão muda

      Na procura de materiais que se cruzam com a educação literária.

    Abordar Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, em excertos e na escolha de capítulos avulsos é do pior que um programa de ensino possa propor. Ainda assim, permite uma liberdade (relativa) de ação, confinada apenas por uma gestão que se impõe na articulação / planificação de outros conteúdos.
    A noção da globalidade da intriga desta narrativa passional romântica pode ser conseguida através do visionamento de uma versão fílmica, entre as várias que a obra em particular já inspirou - a de 1943, de António Lopes Ribeiro, a preto e branco, ainda consegue provocar alguns (sor)risos à juventude. Depois virão os propósitos da escrita e do estilo, bem como o foco de análise no registo epistolográfico (citado e marcadamente deítico, nas condições do ato de escrita) que tão relevante se torna para a comunicação dos amantes.
    Foi precisamente na busca de uma dessas versões que me cruzei com um pequeno registo de cinema mudo. Não resisti a estes cerca de dois minutos e meio! Os efeitos expressivos, no mínimo, tornam o drama camiliano numa encenação cómica:

Excerto do programa "Os Anos de Ouro do Cinema Português" 
RTP2

   É verdade que o dramalhão romântico se ajusta a alguma comicidade para os espíritos leitores mais contemporâneos. Pode mesmo dizer-se que esta versão cinematográfica atinge o pleno, com a representação das personagens entre o fantasmagórico e o draconiano.
      Imagino o que seria a totalidade desta película.

     "Adeus! Amor de Perdição. Até à eternidade!"

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Abrir um buraco no céu

       À falta de teto no local do espetáculo, o céu podia ter sido o limite.

Rami Malek numa interpretação grandiosa de Freddie Mercury
     Na versão fílmica de Bohemian Rhapsody, (dirigida por Bryan Singer), Freddie Mercury assim definiu os efeitos da sua participação, com os Queen, no Live Aid do estádio de Wembley (concerto realizado a 13 de julho de 1985, para obter fundos em favor dos famintos de África, precisamente da Etiópia). Não fosse o facto de a ovação dos espectadores ter sido extraordinária (tanto no estádio como em diferentes pontos do mundo, dada a transmissão do espectáculo por satélite), também não foi menor essa partilha de vozes que público e músicos concertaram ao som de 'We are the Champions', 'Radio Ga Ga' ou 'We Will Rock You'. Abriu-se um buraco no céu, mas também se fez que este descesse à terra.
     Com as sonoridades de 'Love of my life', 'Bohemian Rhapsody', 'Hammer to Fall' ou 'Under Pressure' (em dueto com David Bowie), além de muitos outros êxitos do grupo, veem-se, no filme, "quatro desajustados" que dizem "não se encaixar", mas a tocar para o mundo (que não é feito apenas de desajustados e que os "encaixou" para sempre):

Montagem com os trailers oficiais de Bohemian Rhapsody (2018)

     Entre experimentalismos musicais, fusões de géneros, excentricidades versáteis do vocalista, cumplicidades interativas com um público numeroso e diverso, Queen tornou-se numa das melhores bandas de rock do século XX e teve em Freddie Mercury o cantor, o pianista, o compositor - o criativo que se ofereceu para o grupo nos anos setenta e definitivamente o abandonou em 1991 (com a sua morte, um dia depois de ter assumido publicamente que havia contraído SIDA).
     A associação fílmica do concerto a uma espécie de canto do cisne do vocalista, não sendo facto por ainda ter havido muita produção musical após o Live Aid, resulta numa abordagem emotiva distanciada face às vivências factuais do também conhecido Larry Lurex - aliás, muitos outros momentos da trilha cinematográfica configuram essa emotividade construída, nomeadamente, o da relação com a namorada Mary Austin (surgido muito depois de Mercury já se ter celebrizado); o do conhecimento do companheiro John Hutton (ocorrido numa boate e não num festa doméstica); o da suposta separação dos Queen (não tão assumida quanto o filme faz parecer, nem sequer por Mercury ter sido o primeiro do grupo a ingressar em projetos a solo, pois já o baterista Roger Tylor o havia feito primeiro).
     Numa projeção dos êxitos musicais da banda e num registo semibiográfico de Farrokh Bulsara (Mercury), há também na tela apontamentos do tipo documentário (como os do Live Aid), o que faz de Bohemian Rhapsody uma obra interessante, momento de entretenimento e de revisão do percurso ficcionado dos Queen (desde o enraizamento no grupo Smile, quando um operador de malas do aeroporto de Heathrow conhece o guitarrista Brian May e o baterista Roger Taylor) até à construção do álbum de estreia 'Queen' (1973), bem como à gravação do emblemático 'A Night at the Opera' (1975). A par das conquistas e sucessos obtidos pelo mundo, vêm as intrigas na banda entrecruzadas com os dramas de Mercury, pautados entre a excentricidade e a redenção no final da história.

    Um tributo aos Queen e uma homenagem ao percurso de vida desse jovem que, nascido na Tanzânia, contribuiu, nos anos setenta a noventa do século XX, para que fusão de géneros e a criação de sonoridades experimentais fizessem da música expressão nova de uma (outra)"Royal Highness".

sábado, 3 de novembro de 2018

Tristão e Isolda - da lenda ao filme

      Diz-se lenda medieval de origem céltica; firmou-se como uma das histórias universais de amor trágico.

    Surge pelo século IX. As primeiras versões escritas são do século XII, no formato de narrativa em verso, tendo sido história difundida por trovadores e pela realeza francesa (rainha Leonor de Aquitânia) na Europa. Um século depois, foi incorporada no Ciclo Arturiano, com Tristão a assumir-se como um cavaleiro da Távola Redonda. 
    Tristão (James Franco) assiste à destruição da sua família por invasores oriundos da Irlanda, até que um nobre da Cornualha (Lord Marke, interpretado por Rufus Sewell) o protege. O reino é constantemente ameaçado pelo rei irlandês, como forma de impedir o nobre bretão de obter uma união de pares e de reinos capaz de o enfrentar (assegurar a paz das fronteiras irlandesas era um objetivo a cumprir, desde os tempos da expansão romana).
     Entre a Irlanda e a Cornualha, há, contudo, um mar que deu em amar, ou não o cruzasse Tristão, acabando por conhecer Isolda (Sophia Myles), a ela se unindo e dela se afastando até dela se separar com a morte.

Tristão e Isolda - trailer do filme de Kevin Reynolds (2006)

    A intriga fílmica, dirigida por Kevin Reynolds (2006), espelha várias questões da literatura do tempo: a herança, os vestígios e a influência romanas; a questão das relações feudais, dos códigos de honra e de lealdade, bem como da vassalagem e do amor cortês; a condição da mulher no casamento (essencialmente entendido como contrato, negócio); o adultério como consequência ou realidade associada à distorção das regras de casamento; a relação da arte com a vida cortesã (literatura, dança e música), entre outros.
     Se a versão cinéfila é ou não fiel às origens narrativas celtas é questão que, não sendo de menor interesse, não apaga o destaque temático a dar ao herói (homem sem terra, na busca e no distanciamento face ao que mais deseja - Isolda; ser em constante conflito, entre o foro público e o privado, mas sempre fiel tanto ao "senhor" que serve como à "senhor" que ama) e à heroína (mulher entregue a um amor que vai ultrapassar convenções familiares e sociais, para não falar da própria vida).

   Segundo as palavras de uma personagem do filme, o amor de Tristão não destruiu um reino (contrariamente ao assumido no momento da denúncia amorosa), não diminuiu ninguém. É expressão de elevação, de idealização; de amor mais forte do que a vida ou do que a morte.

domingo, 14 de outubro de 2018

Não há três sem quatro

     A contar pelas versões do filme, já não chega dizer que não há duas sem três.

    2018 é o ano para o 'remake' em terceira versão de "A Star is Born", depois do original datado de 1937. Mais de oito décadas passadas, Janet Gaynor dá lugar a Lady Gaga (depois de Judy Garland e Barbra Streisand). Um tanto de musical com um outro tanto de romantismo são ingredientes para misturar e derivar numa receita a ver na tela.

Trailer Oficial de 'A Star Is Born' (remake de 2018)

     A história consabida do músico, em final de carreira, que estimula e vê ascender artisticamente a mulher amada é o pano de fundo melodramático comum para um enredo quase secular, desta feita composto também pelo protagonismo que a música dá a ouvir na banda sonora. Os planos de 'backstage' de alguns dos concertos ou os preparativos para os shows conjugam-se nesse propósito de representar o percurso regressivo de Jack(son) e a ascensão de Ally (essa 'aliada' que se afirmou e se singularizou como estrela). Se a versão de 1976, com o par Barbra Streisand-Kris Kristofferson, tornou Evergreen melodia oscarizada, o mesmo se prenuncia com muitas das canções agora interpretadas pela dupla Lady Gaga-Bradley Cooper. 
      Talvez o dueto de "Shallow" seja um dos casos a considerar:

Montagem imagem-música (VO) para "Shallow" de 'A Star Is Born' (2008)

      SHALLOW

Tell me something, girl
Are you happy in this modern world?
Or do you need more?
Is there something else you’re searching for?

I’m falling
In all the good times
I find myself longing for change
And in the bad times I fear myself

Tell me something, boy
Aren’t you tired trying to fill that void?
Or do you need more?
Ain’t it hard keeping it so hardcore?

I’m off the deep end, watch as I dive in
I’ll never meet the ground
Crash through the surface
Where they can’t hurt us
We’re far from the shallow now

In the sha-ha- sha-ha-ha -llow,
In the sha-ha- sha-ha-ha- llow,
In the sha-ha- sha-ha-llow,
We’re far from the shallow now


    Também a cantiga final da película - "I'll never love again", numa homenagem a Jack(son) Maine (Bradley Cooper) e na interpretação de Ally Maine (Lady Gaga) - cumpre a marca de um fecho arrasador, para uma narrativa emocionalmente crescente, com a dupla romântica a afirmar-se para lá do que a morte possa impor. Uma breve analepse final traduz essa declaração de amor de Jack, num sentimento que se vê ameaçado pela doença, por um ciúme mitigado de incapacidade e perda progressivas, por jogos de interesse colaterais, por (pres)supostas experiências ou representações que o passado não deixa(ou) apagar.
     A música aproximou Jack de Ally (mesmo quando a necessidade do álcool parecia ser maior); pela música ambos sofreram, vivendo (na composição e na voz) numa entrega que nem sempre se revelou harmoniosa, mas fez vingar o que os uniu. O sonho, tornado real,  revelou-se duro, intenso, sofrido, com a "luz" a incandescer o que de mais doloroso e irónico a vida (também) tem.

      Assim nasce(u) uma estrela, dando brilho também a uma outra que a morte não conseguiu apagar.

sexta-feira, 16 de março de 2018

De George a Modigliani, com Souza-Cardoso e Laranjeira pelo meio

     Quando de "George" (que também foi Gi e será Georgina) se passa a Modigliani, Literatura rima com Pintura.

      É nesta expressão interartística que o conto de Maria Judite de Carvalho se afirma, na expressão e na reflexão sobre a vida e os seus diferentes ciclos (nomeadamente, 'as três idades' da Humanidade).
    Ao escultor e pintor italiano (1884-1920), contemporâneo de nomes como Picasso, Amadeu Souza-Cardoso - e, inclusivamente, Manuel Laranjeira -, associam-se, por norma, os quadros de nus femininos com poses estilizadas, pintadas de sensualidade e mistério, além de demonstrativas de pescoços alongados a sustentar rostos tomados pelo respeito, pela serenidade e pela naturalidade figurativa, em associação a uma estética de declarada vanguarda.

Exibição de quadros de Modigliani (1884-1920)

    No seu percurso plástico, são notórias as influências de Cézanne, Renoir, Matisse, Tolouse-Lautrec, Picasso (seu grande rival) e Edvard Munch, além das estéticas do expressionismo e do simbolismo, combinadas na construção de um estilo pessoal que o fez retratar não só conhecidos, amigos mas também anónimos.
     O retrato do artista foi já cinematograficamente pintado (Modigliani - A Paixão Pela Vida, dirigido por Mick Davis) em 2004, numa soberba interpretação de Andy Garcia e na recriação do que seja a alienação face à vida - eventualmente a mais feminina das seduções e paixões do Homem:

Trailer do filme de Mick Davis (2004) sobre a biografia de Modigliani

    A centralidade feminina de Amedeo Mondigliani é revista no mencionado conto de Maria Judite de Carvalho, além dessa construção feita de inconsciente ou subconsciente próprios da deambulação reflexiva, psicológica, mental acerca do que é a vida. O artista italiano explicitou-o quando assumiu que “Aquilo que procuro não é o real nem o irreal, e sim o inconsciente, o mistério do que há de instintivo na raça humana". Conhecido o destino dentro de um sonho, as palavras do pintor assemelham-se às de George, "pintora já com nome nos marchands das grandes cidades da Europa", que prefere a despedida e o esquecimento do passado, para que o presente não fique preso à memória nem à consciência do porvir (por mais imaginativo que seja). Na tela que a memória e a imaginação também são, há traços, contornos, esfumados, imagens de vida. Por isso...

Maria Judite de Carvalho (1921-1998)
      "George fecha os olhos com força e deixa-se embalar por pensamentos mais agradáveis, bem-vindos: a exposição que vai fazer, aquele quadro que vendeu muito bem o mês passado, a próxima viagem aos Estados Unidos, o dinheiro que pôs no banco. O dinheiro no banco, nos bancos, é uma das suas últimas paixões. Ela pensa - sabe? - que com dinheiro ninguém está totalmente só, ninguém é totalmente abandonado. A velha Georgina já o deve ter esquecido."

      É nesta errância e neste son(h)o de George que o estado adulto vive, sem a velhice próxima, porque desta ainda está ("durante quanto tempo?") George livre.

      Na errância de ir mais além e no son(h)o da liberdade vai a Humanidade fazendo caminho, na certeza de um amanhã sempre sujeito a confirmação.

quarta-feira, 14 de março de 2018

"A vida seria trágica se não fosse engraçada"

     Pensamento tão certo para quem, melhor do que ninguém, sabia do que falava.

     Talvez tivesse razões para pensar ou dizer o contrário, mas optou por desfrutar do pouco que a vida lhe deu e do muito que conquistou. Aos dois ou três anos que resistiria juntou mais de cinquenta. Foi uma equação de conquista, na qual o poder da mente se impôs seja pela vontade de sobreviver seja pelos segredos que desvendou para a Humanidade, nos domínios da física, em particular, e da ciência, em geral.
    No mesmo dia em que Stephen Hawking morre, Albert Einstein celebraria 139 anos; na data em que nasceu (8 de janeiro de 1942) tinham passado 300 anos da morte de Galileu Galilei - coincidências ou intervalos de tempo que não deixam de juntar grandes nomes da ciência, para não falar de factos como os da celebração do dia do (3,141592653589793238462643383...).
     Reconhecido pelo trabalho desenvolvido e pela luta na sobrevivência, Stephen William Hawking procurou uma explicação para o Universo; também para a vida, quando lhe foi diagnosticada esclerose lateral amiotrófica (doença incurável e degenerativa motora que o aprisionou a um corpo que progressivamente deixou de controlar). 
     No filme "A Teoria de Tudo" (2014), com a excelente interpretação de Eddie Redmayne no papel do cientista britânico (o que lhe valeu o óscar de melhor ator em 2015), é possível contactar com esse surpreendente percurso, simultaneamente de degenerescência e de superação:

Trailer de 'A Teoria de Tudo', filme de James Marsh (2014)

      Em cerca de duas horas, o espectador, através do papel de uma personagem de ficção, encara o modo como uma personalidade real dos nossos tempos explorou o seu trabalho científico, focando o estudo daquilo que, cada vez mais, lhe restava menos: o tempo. Limitado no corpo, mas com a cabeça no universo, o nada e o tudo se conjugaram até hoje.


    Aos 76 anos, com a mesma idade de Einstein, Hawking deixa-nos com o seu contributo acerca da natureza da gravidade e da origem do universo; da teoria da singularidade do espaço-tempo, aplicando a lógica dos buracos negros a todo o universo; do seu best-seller Uma breve história do tempo (1988); do seu exemplo de vida, inspirador para todos aqueles que reclamam do que a vida lhes não dá ou lhes tira.

     Alguém que quis ser matemático e se tornou um génio da física. RIP.

sábado, 3 de março de 2018

"Sempre é uma companhia"

      Citando o título de um conto de Manuel da Fonseca, publicado em O Fogo e as Cinzas (1951) ou o discurso de uma personagem.

      Em qualquer uma das circunstâncias, a referência à telefonia é um dado, para além da sua perspetivação como uma novidade no tempo da narrativa. Centra-se neste facto o núcleo de uma intriga que, uma vez lida no conto mencionado, sempre me fez lembrar um episódio do filme 'O Costa do Castelo' (1943), dirigido por Arthur Duarte. A velhinha película a preto e branco traz, em registo cómico, o que oito anos depois o conto sugere, num contexto mais marcado pela visão neorrealista e pelo retrato de uma ambiência de desesperança a evoluir para a expectativa da mudança e para a construção da esperança possível.
  Nesta exploração interartística (cinema e literatura), há coincidências a rever, paralelismos a construir, referências culturais a traduzir para qualquer momento que se reveja como crítico face à ausência de sinais de alegria ou de felicidade no seio dos homens.
       Assim, (re)vê-se o segmento fílmico, tomando como pré-tarefa do visionamento a construção de aproximações entre o conto e o que a tela / monitor dão a perceber:

Excerto fílmico de 'O Costa do Castelo' (versão de 1943)

        Entre os tópicos possíveis de abordagem / aproximação, registam-se os seguintes:

      a) centralidade da telefonia na alteração de comportamento das personagens (a partir do jantar de aniversário familiar a dar lugar ao baile / animação / prazer);
    b) o portador da telefonia como introdutor do fator de mudança (apologista da mudança e da tecnologia), num contacto com o mundo e na sugestão da música como fuga harmoniosa para uma realidade alternativa ao vivido;
     c) o ato explicativo associado ao funcionamento do aparelho;
    d) um contexto persecutório (associado à personagem do jovem masculino) numa aproximação, ainda que por razões diferenciadas, ao contexto de produção de O Fogo e as Cinzas (a fuga de alguém a um controlo equiparável à ditadura de Salazar, tal como no ambiente de desfavorecidos tomados pela desesperança, a dar lugar a uma esperança possível);
    e) a data da realização fílmica e a da publicação de O Fogo e as Cinzas (onde se insere "Sempre é uma companhia") compreendidas numa época associada à ditadura e ao controlo despótico de Salazar;
     f) a leitura sociopolítica do excerto fílmico equiparada à abordagem sociopolítica de uma narrativa neorrealista (com foco na questão social, na procura de uma saída feliz para uma realidade adversa).

        Mais haverá por certo, numa sugestão convocada por sinais que um tempo propõe à luz do que um par de obras dispõe e o leitor / espectador (re)compõe.

     Um caso de como as memórias do passado (vivido) se redefinem a cada momento que a motivação (da leitura e das aulas associadas) se impõe.
    

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Da poesia fílmica ao filme poético

      É neste círculo fechado (e mágico) que o espectador se mantém até que a realidade (demasiado real) volta.

      Aos primeiros acordes da banda sonora, há como que uma nota de encantamento a conduzir-nos para um universo de que a música é uma das portas entreabertas (diria mesmo que ela evoca a identidade com um filme a ser recordado e relembrado por uma melodia que, mal se faz ouvir, nos transporta para a presença de "uma princesa sem voz" e de um ente com tanto de feérico como de selvagem, mas bem mais sensível no olhar e no toque do que alguns dos humanos representados).
     Recuada até aos anos sessenta do século XX e ao contexto da guerra fria, a intriga narrativa convoca o registo do fantástico, no qual uma relação amorosa entre uma empregada de limpeza (de um laboratório militar) e um anfíbio (na luta pela sobrevivência) cresce na base do silêncio, do sorriso, do olhar, do toque. É no seio da água que a aproximação se constrói, alimentando essa outra vida que paira sobre a realidade e se afirma como alternativa sensível, sentida e poética, culminando na citação dos versos "Unable to perceive the shape of you, I find you all around me. Your presence fills my eyes with your love".

Trailer do filme de Guillermo del Toro 

     Se "The Shape of the Water" (2017), realizado pelo mexicano Guillermo del Toro, é uma forma de (re)encontro com o universo do fantástico, do mágico e do poético na tela cinematográfica - para fugir à vida, por vezes, dura e crua (diria, demasiado real) -, não deixa de espelhar o que esta nossa vida tem de mais preconceituoso e tomado como marginal: a jovem muda, Elisa Esposito, homónima dessa outra personagem do "My Fair Lady"(Sally Hawkins); o ser (Doug Jones) que, na sua diferença física, se mostra mais homem do que alguns outros que nem merecem ser chamados de tal; o vizinho homossexual Giles (Richard Jenkins), pintor sem sucesso e vítima da vaidade, tornado cúmplice na proteção dada por Elisa à criatura fantástica; o casal negro, com a mulher vítima (Octavia Spencer) de um marido desdenhado e inútil. Não menos marginal é o monstruoso e sádico agente policial Strickland (Michael Shannon), ainda que representativo de uma das forças sociais marcadas por um poder tirano e impiedoso que vemos derrotado às mãos de uma figura estranha e monstruosa com a qual o espectador se identifica pela justiça e pela sensibilidade por ela trazidos à história - afinal, duas condições essenciais de sobrevivência na vida. Aos primeiros dá-se o sentido virtuoso dos que buscam a felicidade, o prazer, a beleza interior e o valor dos justos; ao último, o que há de mais maléfico, para não dizer abjeto.
    Na perspetiva de um narrador que se identifica com a personagem Giles, o universo de fantasia e magia constrói-se na afirmação do amor; na apologia das minorias ou dos desajustados da sociedade, no direito que têm de fazer o seu caminho; na valorização do espetáculo da dança e do cinema musical; na afirmação de que há "guerras frias" bem contemporâneas que não permitem a felicidade ou que sublinham a ideia de que qualquer monstro é mais justo e sensível diante de uma vida composta por perversões.

   Um exemplo de como uma muda e uma criatura-monstro se tornam heróis por aquilo que conseguem conquistar: sentir, amar, viver fora de uma realidade escura, à vista de todos, sem princípios ou valores sociais que dignifiquem o ser humano. Um filme belo sem deixar de ser um belo filme.

sábado, 13 de janeiro de 2018

A História do Porquinho

        Não se trata da história dos três porquinhos para a hora de deitar...

      É antes uma narrativa para acordar e lembrar “A Hora Mais Negra”, com um Porquinho só, como familiar e afetivamente a esposa o tratava. É também assim que Winston Churchill surge aos olhos e ouvidos do espectador cinéfilo, tudo porque um filme dirigido por Joe Wright tanto mostra a personalidade deste líder histórico do século XX como expõe as fragilidades desse homem forte, porque imperfeito, e poderoso, porque soube ser só.

Trailer do filme "A Hora Mais Negra", de Joe Wright (2017)

      É com estes atributos – força, imperfeição, poder, solidão – que o primeiro-ministro inglês de Jorge VI nos é dado a conhecer no contexto da II Guerra Mundial, enfrentando um Hitler e um Mussolini, mais todos aqueles que, no seu país (Reino Unido), o viam como indesejado, irrefletido e tempestuosamente irascível. Além disto, tinha apenas para oferecer sangue, trabalho, lágrimas e suor (o que, seguramente, muitos não queriam), quando um caminho mais fácil (por aparente e enganador que fosse) era percebido como menos penoso.
  Na interpretação de Gary Oldman (recentemente galar-doado com um Globo de Ouro pelo papel desempenhado), a personagem Churchill é secundada por Lily James (a secretária Elizabeth Layton) e Kristin Scott Thomas (no papel da esposa Clementine – Clemmie -, que aceita a figura pública que o marido sempre quis ser), também relevantes na solidificação dos pilares e dos princípios de um homem que se torna uma referência do século XX. Nomeadamente, foi-o para a História enquanto figura de liderança que adotou princípios, defendeu convicções válidas e se revelou grande na ação, estando ao lado e do lado das mudanças que afasta(ra)m o despotismo, o poder autocrático, a tirania e tudo o que desvia a Humanidade de um caminho integrador, inclusivo e tolerante. Em suma, um exemplo para alguns dos que contemporaneamente se encontram no poder.
     Há imperfeições que são menores face à grandiosidade dos valores e princípios por que se luta. Neste sentido, a frase “Quando a juventude nos falha que a sabedoria nos valha” acompanha bem uma personagem que se revela sábia, mesmo quando o medo se impõe ou quando poucos apoios tem para o que há a fazer. Assim se cumpriram os tempos; assim se revê um homem que mudou, porque só os que não mudam é que não fazem nem trazem mudanças.
    Este é um filme largamente argumentativo (até pelos exemplos retóricos de Cícero e Horácio que inspiravam Churchill); persuasivo na construção de identidades e de condução de mentalidades. 

     Um filme educativo, a explorar e com lições de vida merecedoras de discussão - na consciência de que há movimentos de força conjuntos, impositivos, que nem sempre fazem sentido perante o que mais deve dignificar o Homem; na constatação de que um homem pode fazer a diferença por aquilo em que acredita e que, mais cedo ou mais tarde, sai legitimado.