Quando há dois dias, pelo final da manhã, se viveu o apagão em Portugal e na Espanha, lembrei-me de um livro.

O incidente foi anunciado como "cyber attack", sinal de guerra, conspiração, falha de satélite, quebra de energia (prolongada) que não deixou de gerar pânico, preocupação, surpresa, consciência de que estamos muito mal habituados nessa garantia de que tudo temos e a todo o tempo nos vemos desarranjados na vida.
A estabilidade da rede elétrica nacional foi vivida como incerta, e há quem afirme que a Inteligência Artificial (IA) já prenuncia novas ocorrências nos próximos anos. Um verdadeiro pandemónio (depois da pandemia que nos atrofiou)!
Leitor atento diria que não precisa das "tecnologias sapientes" que tantos idolatram. Não há razão para espanto, quando, já em 1986, Saramago tinha escrito na sua Jangada de Pedra o seguinte (terceira divisão narrativa, na edição de 1986, páginas 37-38):

Excerto do romance do Nobel português, prenunciador do "apagón" peninsular
O que aconteceu a 28 de abril do ano corrente teve repercussões ibéricas transversais, deixando a península à deriva e com impactos significativos em vários setores (nas casas, nas escolas, nos hospitais, nas empresas, no país, na península). Comunicações, proximidades e imediatismos ficaram comprometidos - certezas, dados adquiridos que deixaram de o ser e revelaram como nos tornamos frágeis e instáveis de um momento para o outro.
Não se separou a península do resto da Europa, como na obra do Nobel português (por isso, não se pode afirmar que se tenha feito jangada), mas parecia termos recuado a um tempo (parecia ser o da pedra) feito de nada, com tudo à mão, mas por funcionar.
Qual personagem romanesca, num fim de dia em que chegava a casa sem energia nem luz, revi-me numa passagem ilustrativa de alguns gestos e instantes já vividos, lidos e relembrados:
Quase quarenta anos depois, a página de um livro deixou de ser ficção. Qualquer semelhança com a realidade não foi pura coincidência nem puro exercício de imaginação. Durou mais do que quinze minutos e foi em abril (que dizem ter águas mil e ficou sem luz)! Não espanta que, como epígrafe do romance saramaguiano e citando Alejo Carpentier, se possa ler e dizer "Todo futuro es fabuloso".