segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Por uma madrugada (pois quem canta...)

     Por músicas que, na nossa língua, marcaram e se fizeram pela diferença.

     Lembro-me que, pelos nove anos, houve uma canção que me chamou a atenção, ainda com os acordes de um hino à liberdade e à força das palavras e da(s) vontade(s).



        MADRUGADA

Dos que morreram sem saber porquê 
Dos que teimaram em silêncio e frio
Da força nascida no medo
E a raiva à solta manhã cedo
Fazem-se as margens do meu rio.


Das cicatrizes do meu chão antigo
E da memória do meu sangue em fogo
Na escuridão a abrir em cor
Do braço dado e a arma flor
Fazem-se as margens do meu povo

Canta-se a gente que a si mesma se descobre
E acorda vozes, arraiais
Canta-se a terra que a si mesma se devolve
Que o canto assim nunca é demais

Em cada veia o sangue espera a vez
Em cada fala se persegue o dia
E assim se aprendem as marés
Assim se cresce e ganha pé
Rompe a canção que não havia

Acordem luzes nos umbrais que a tarde cega
Acordem vozes, arraiais
Cantem despertos na manhã que a noite entrega
Que o canto assim nunca é demais

Cantem marés por essas praias de sargaços
Acordem vozes, arraiais
Corram descalços rente ao cais, abram abraços
Que o canto assim nunca é demais
O canto assim nunca é demais


     A letra e a música de José Luís Tinoco tornaram-se um incitamento à mudança, à madrugada que 1975 ainda representava e trazia consigo a luz, a felicidade, o canto (mesmo que conservados por um húmus feito de resistência, luta, medo que se quis superado).

     Ao fim de um dia de cansaço(s) e de um desgaste que vai minando tudo e todos, desejo (o tempo de) uma destas madrugadas.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Cesário Verde: tanta poesia para tão curta vida

      Nasceu hoje quem, com 31 anos apenas, desaparecia do real quotidiano que captou com a impressão que deixou.

      De Cesário Verde diz-se que foi poeta realista, naturalista, parnasiano, impressionista, de um romantismo que se redefine e se deixa marcar por tendências finisseculares. Tudo isto terá sido, não se tendo filiado a nenhuma escola literária. Entre a iniciativa, a observação, a criação individual e os moldes estéticos que concorriam no último quartel do século XIX, ganharam a poesia (no conteúdo e na forma) e os poetas que, no século seguinte, acabariam por reconhecer a mestria e a herança do "pintor de palavras" ou do "escritor do real pintado com impressões".

Declamação de "Num bairro moderno", de Cesário Verde.

    Cidade, campo, reflexão social, sensações, percepções impressivas, deambulação, evasão e transfiguração são termos que concorrem para a leitura de uma poesia marcada pela extensão do verso, pela narratividade e pelo descritivismo, num sentido ecfrástico da representação real e da reconstrução / refiguração verbal.
        Seja por efeito do sol, da poeira, das emanações seja pela associação a histórias e tempos evocados, os versos de Cesário resistem à doença, à asfixia, à peste; ao retrato humano degradante que se impõe na cidade e se revê no campo, por mais salutar que este último ainda possa apresentar-se aos que o procuram.

       Deambular, evadir, transfigurar... de momento, só se for com a chuva que pinga na alma.

Pelo nascimento de um cativo do amor, da vida e dos sentidos

       A oitenta e quatro anos de um nascimento.

       O nascimento em Lisboa (1927) deu vida a um peregrino do mundo sempre fiel à cidade onde também morreu (1996).
      Outra das fidelidades foi a da escrita, a das letras que usou, trabalhou em várias vertentes (jornalismo, tradução, teatro, romance, poesia). 
      De resto, tudo deixou ou convidou a deixar - "Deixa ficar a flor, a morte na gaveta, o tempo no degrau" -, num experimentado culto à vida, aos sentidos, ao amor (os seus temas validos e aos quais se manteve sedutoramente cativo).


Soneto do Cativo


Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;


o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;


se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;


não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!
                                                                                    David Mourão-Ferreira, in Obra Poética

     Num poema de amor, num convite à vida e para a vida, nada melhor do que lembrar o nascimento do seu criador.

    Um exemplo intelectual, de homem cuja vontade merece ser lida: "Que fique só da minha vida / um monumento de palavras / mas não de prata nem de cinza / Antes de lava, antes de nada".

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Eu estruturo, tu estruturas, ele estrutura... nós estruturamos

      Na nossa cabeça está o que precisa de ser explicitado; e, se não está, interessa criar o acesso para tal.

Q: Colega, podia explicar-me o que é a estrutura argumental? Qual é a relação com funções sintácticas? Ou tem mais a ver com Semântica?

R: A noção de estrutura argumental prende-se com a natureza relacional, semântica e lógica que certas classes de palavras revelam, nomeadamente a dos verbos (entre outras).
   Trata-se de uma noção que ganha relevo com a reintrodução do significado enquanto elemento fundamental na análise dos fenómenos gramaticais (tendência linguística assinalada desde o último quartel do século XX, mas que teve a sua génese em textos pioneiros que remontam à década de 90 do século XIX - como, por exemplo, os clássicos “Sobre o Significado e a Referência” e “Sobre o Conceito e o Objecto”, de Frege) e que permite construir uma interface entre sintaxe e semântica.
    Ao nível da análise de frases, com a 'estrutura argumental' redefine-se a estrutura básica destas: não se focaliza a relação sintagmática configurada pelas funções do sujeito e do predicado (ou SN + SV), caracterizada por marcas formais, mas a relação semântica mantida entre o verbo e os seus argumentos. Ou seja, o núcleo verbal assume a propriedade de seleccionar um determinado número de argumentos (configurados como sintagmas nominais, adjectivais, adverbiais ou preposicionais) que saturam o significado daquele. A título de exemplo, pode dizer-se que ‘morrer’ requer um argumento (algo / alguém morre); o verbo ‘ouvir’, dois (alguém ouve alguma coisa); e ‘prometer’, três (alguém promete algo a alguém). Acresce a isto o facto de os verbos, segundo a sua natureza semântica (isto é, segundo o tipo de situações denotado: acções, processos ou estados), determinarem os papéis semânticos ou temáticos dos argumentos seleccionados. Genericamente, o verbo de acção ‘prender’ selecciona um agente e um paciente:

(i) A polícia[Ag] prendeu o assaltante.[Pac] 
(ii) O assaltante[Pac] foi preso pela polícia.[Ag] 

   Verbos que denotam processos, como ‘entristecer’, requerem os papéis de experienciador e de instrumento ou força:

(iii) Os pais[Exp] entristeciam com a pouca sorte dos filhos.[Inst] 
(iv) A pouca sorte dos filhos[Inst] entristecia os pais.[Exp]
      Pelos exemplos dados, é possível verificar como um mesmo esquema semântico (agente / paciente, em i e ii; experienciador / instrumento, em iii e iv) pode dar lugar a formas de organização sintáctica distintas, nas quais os argumentos e os papéis semânticos associados desempenham funções sintácticas diferentes (ex.: o 'agente' ora aparece como sujeito sintáctico, em i, ora é configurado como complemento agente da passiva, em ii; o 'paciente' assume quer a posição de complemento directo, em i, quer a de sujeito sintáctico, em ii; o 'experienciador' é sujeito sintáctico em iii, mas complemento directo em iv, enquanto o 'instrumento' toma a posição de complemento oblíquo em iii e a de sujeito em iv). 
    Resumidamente e focalizando o que há de comum, conclui-se que a sintaxe em interface com a semântica encara o verbo como elemento central, nuclear da frase; responsável pela distribuição de papéis temáticos ou semânticos, bem como pela constituição dos lugares vazios que completam o seu sentido na frase. Sobre o esquema semântico construído irão actuar as regras da sintaxe, dando a forma de função sintáctica aos argumentos seleccionados.
    Nesta perspectiva, como que se constrói um primado universal semântico sobre o sintáctico, o que, aliás, se compagina com as noções de enquadramento, de quadros de referência, de conhecimentos de mundo, de imagens, de esquemas de organização mental, todos eles prévios às actividades desenvolvidas para compreender, interpretar, identificar e analisar usos de língua; o mesmo pode acontecer para se etiquetar os constituintes da estrutura frásica.
    Daí, por exemplo, a vantagem de se trabalhar exercícios apoiados na formulação de instruções gramaticais que coloquem, junto a cada verbo, as palavras ou os grupos que fazem parte da sua valência significativa (lugares vazios ou argumentos); que reconheçam a distinção entre grupos de palavras seleccionados pelos verbos (os designados ‘complementos’) e outros que se revelam opcionais (os modificadores); que distingam diferentes significados para uma mesma forma verbal, segundo a estrutura argumental considerada. Veja-se o caso do verbo ‘tratar’, significando, respectivamente, submeter ou proceder, numa valência tripla (ex.: alguém1 tratar algo / alguém2 de determinada forma3); abordar ou expor (ex.: alguém1 tratar algo2) e, ainda, cuidar (ex.: alguém1 tratar alguém2), numa valência dupla.
      Vai nesta linha a proposta de sistematização seguidamente apresentada:

in LP - 9º ano (Preparação para o Exame Nacional)
Porto, Edições Asa, págs. 124-125

    Esta inter-relação da sintaxe-semântica resulta num contributo fundamental de conversão da reflexão gramatical tanto numa estratégia geral de abordagem relativa à organização do pensamento lógico como num meio de adquirir estratégias orientadoras para a comunicação verbal.


      Eis o exemplo de um conceito que creio ser estruturante para o trabalho da gramática, mas que não necessita de ser explicitado (em termos de metalinguagem) na sala de aula. A estrutura e o mecanismo lógico implicados são, contudo, operacionalmente válidos e estrategicamente lógicos tanto no ensino como na aprendizagem da(s) língua(s).

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Na idade dos porquês!

    Já lá vão uns anos... quase vinte...

     Na altura (corria o ano de 1992), a voz da escocesa Annie Lennox fazia o furor das discotecas e da rádio, em ritmo de 'slow' ou balada.

Vídeo oficial de "Why"

      WHY

    How many times do I have to try to tell you
   That I'm sorry for the things I've done
   

    But when I start to try to tell you
   That's when you have to tell me
   Hey, this kind of trouble's only just begun
    I tell myself too many times
   Why don't you ever learn to keep your big mouth shut
   That's why it hurts so bad to hear the words
   That keep on falling from your mouth
   Falling from your mouth
   Falling from your mouth
   Tell me...
   Why
   Why
   I may be mad
   I may be blind
   I may be viciously unkind
   But I can still read what you're thinking
   
   And I've heard it said too many times
   That you'd be better off
   Besides...
   Why can't you see this boat is sinking
   Let's go down to the water's edge
   And we can cast away those doubts
   Some things are better left unsaid
   But they still turn me inside out
   Turning inside out turning inside out
   Tell me...
    Why... Tell me...
    Why...

    This is the book I never read
    These are the words I never said
    This is the path I'll never tread
    These are the dreams I'll dream instead
    This is the joy that's seldom spread
    These are the tears...
    The tears we shed
    This is the fear
    This is the dread
    These are the contents of my head
    And these are the years that we have spent
    And this is what they represent
    And this is how I feel
    Do you know how I feel?
    'Cause I don't think you know how I feel
    I don't think you know what I feel
    I don't think you know what I feel
    You don't know what I feel


     Hoje letra e melodia fazem parte de uma memória que alguém me fez (re)lembrar. Seja em versão discográfica e vídeo (com todas as técnicas de apuro) seja ao vivo (com a emoção do que é cantado e por quem canta), esta é das mais bonitas melodias de sempre:

Versão ao vivo, com tradução da letra da canção "Why"

    Um sussurro que, de tão intenso, se ajusta aos sentimentos que cada um só (não) tem: "You don't know what I feel!". 

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Da arte e dos artistas para haver sempre cor...

       Porque há contextos de formação nos quais se vão colocando dúvidas pertinentes...

      Felizmente, há momentos em que a procura de formação vai correspondendo a necessidades que não são formatadas senão pela vontade de saber mais.

    Q: Gostava que me explicasse um pouco do que entende por função sintáctica interna e, nomeadamente, me esclarecesse por que motivo em 'artista plástico' estamos perante o complemento de nome com o adjectivo 'plástico'.

     R:  Uma função sintáctica interna corresponde, em termos de hierarquia e dependência, a um encaixe de uma função no interior de uma outra superordenada. Por exemplo, um grupo nominal pode apresentar uma expansão (que dele depende), ora determinando-o ora especificando-o. Tal expansão assumirá uma função interna relativamente à que é exercida pelo grupo nominal e/ou pelo seu núcleo (nome) em questão.
    Considere-se o caso de grupo nominal (i), entretanto expandido por quantificação e/ou determinação (ii), bem como por especificação / restrição (iii), acabando por se constituit como segmento sintáctico de uma frase complexa (iv):

(i) Os jovens
(ii) Todos os nossos jovens
(iii) Todos os nossos jovens, que revelam uma atitude trabalhadora,...
(iv) Todos os nossos jovens, que revelam uma atitude trabalhadora, aspiram a uma proposta de emprego.

     O grupo em questão na sua configuração expandida (iv) desempenha a função sintáctica de [sujeito] (v), tendo este último, no seu interior, uma outra função: a de <modificador não restritivo> (vi).

(v) [Todos os nossos jovens, que revelam uma atitude trabalhadora,] aspiram a uma pro-
      posta de emprego.
(vi) [Todos os nossos jovens <, que revelam uma atitude trabalhadora,>] aspiram a uma 
      proposta de emprego.

      Uma outra função interna pode ser detectada no grupo preposicional 'a uma proposta de emprego', que funciona como complemento oblíquo do verbo 'aspirar' - em (vi). Este é acompanhado por uma preposição ('a') mais um grupo nominal ('uma proposta de emprego') cujo núcleo é 'proposta'. Por este último ser um nome derivado de verbo transitivo (propor > proposta), segue-se-lhe um complemento de nome ('de emprego') - uma função sintáctica interna (dependente) do nome configurado no [complemento oblíquo]. À semelhança do verbo 'propor', que seleciona complementos (alguém propõe alguma coisa), também o nome dele derivado faz a mesma seleção:

(vii) Todos os nossos jovens, que revelam uma atitude trabalhadora, aspiram [a uma proposta de emprego].

    Tive já a oportunidade de referir uma tipologia com os nomes que seleccionam complementos de nome, e 'proposta' cabe nela (tratando-se de um nome deverbal, isto é, formado a partir de verbo transitivo eventivo).
     O caso de 'artista plástico' (sinónimo de 'artista de pintura') cabe na situação dos nomes derivados de outros (artista < arte; porteiro < porta), estando ligados a profissões. A expansão destes nomes derivados (não os derivantes) com a sequência 'de+ N' ou adjectivo equivalente faz-se na posição de complemento (cf. Gramática da Língua Portuguesa, coordenada por Mira Mateus, no capítulo "Categorias sintácticas" da autoria de Ana Maria Brito - Lisboa, Editorial Caminho, página 331). Daí a consideração deste caso numa sistematização que pode encontrar no manual Com Textos - 10º ano (Asa Editores), encontrando-se sublinhados os complementos de nome devidos:


    ... vale a pena partilhar mais umas reflexões acerca da língua e do modo como ela se encontra disposta nas suas funções sintácticas.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Um ideal em verso popular

      Palavras sábias de um homem humilde já aqui lembrado.

      Há 112 anos nascia quem assim escreveu: António Aleixo.

        A ninguém faltava o pão,
      se este dever se cumprisse:
      - ganharmos em relação
      com o que se produzisse.


in "Novas Quadras" de
Este livro que vos deixo, 5ª ed., Loulé,
ed. de Vitalino Martins Aleixo, 1979, pág. 46

      Hoje seria um bom princípio aplicar esta lição...
      ontem foi, amanhã será... uma boa orientação,
      composta de vital emoção e necessária razão.

      Um ideal de mundo mais justo (e possível) à espera do tempo que o Homem (ainda) não vi(ve)u.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

'Auto da Barca do Inferno' encenado por António Feio

      Uma manhã no Teatro do Campo Alegre, com um texto vicentino de grande actualidade.

     Numa adaptação de Patrícia Castanheira e com a produção de Cultural Kids, Gil Vicente regressa, em palco, a um público que bem o conhece: alunos de 9º ano que lêem o Auto da Barca do Inferno (1517).
Imagem alusiva à corte vicentina
     Um texto de passado é tornado bem presente, captando-se a atenção dos jovens pelo recurso às novas tecnologias. Com elas se funde a representação, numa exploração da noção de perspectiva, de captação de diferentes planos - inclusive o dos bastidores, dados a conhecer numa espécie de visita virtual guiada por um diálogo ficcionado entre o dramaturgo e o filho, Luís Vicente.
   Dos conceitos associados à abordagem do texto dramá-tico, do percurso biobibliográfico vicentino, dos adereços, dos ensaios, dos actores e das actrizes, tudo se fala numa espécie de introdução à peça.
   Depois, o texto em acção: do quadro inicial do Diabo e do companheiro ao final com os Quatro Cavaleiros, sucedem-se as várias personagens julgadas após a morte. Fidalgo, Onzeneiro, Joane, Sapateiro... todos desfilam num balanço de vida a castigar (muitos) ou a premiar (poucos, e alguns de forma politicamente correcta).
      Interessante é o enquadramento que antecede o julgamento no juízo final: a passagem da vida para morte. Aos olhos do espectador uma simples movimentação de estrados, jogos de música e de luz permitem visionar a transição entre o que motivou a morte e o julgamento que se impõe na presença ora do diabo (alegoria do mal) ora do anjo (alegoria do bem).


Imagem alusiva à vida terrena do Onzeneiro
(colhendo a onzena)
  
Imagem alusiva à morte do Onzeneiro  
  Uns simples estrados, dispostos diferentemente para cada quadro, permitem ainda a sugestão do cais, a separação entre o plano da vida terrena (inferior) e o da vida após a morte. Sem barcas, está lá o rio (símbolo da passagem) e os espaços laterais cénicos destinados a cada um dos avaliadores.
    O cómico existe (no cumprimento dessa máxima vicentina do 'ridendo castigat mores'), sem que se caia no excesso, no ridículo, no inusitado.



      O aproveitamento pedagógico-didáctico da representação é evidente, sem que se coloque em desprimor o texto de autor e o espírito moralizador que a ele preside.

     Um momento bem passado, pela qualidade de representação e da encenação de António Feio (que vem ao nosso encontro num registo vídeo que testemunha a sua vontade de, ainda, 'mudar uma cena'). Um óptimo exemplo de equilíbrio entre a (re)criação artística e a fidelidade ao espírito intemporal da obra. Mesmo quando se assume que Gil Vicente é o 'pai do teatro português' (asserção questionável, tendo em conta as realizações teatrais que o antecederam), o mal torna-se menor, dada a qualidade literária que este autor quinhentista conseguiu impor aos textos produzidos para uma corte que não deixava de ser alvo de algumas das suas críticas.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Um hífen que se vai...

     Entre muitas generalizações críticas ("já não há tracinhos"... ao que chega um hífen) e algumas questões dúbias, nada como introduzir faseadamente algumas práticas.
        
     Na discussão do Acordo Ortográfico, chegou a vez do hífen.

Q: Agora já não há tracinho no 'hei-de'? Mas porquê?

R: Segundo o acordo, nem no antigo 'hei-de' nem nas restantes formas que 'haver de' o apresentavam ('hás-de', há-de', 'hão-de'). 
   Na verdade, considerando a construção de 'haver de + Verbo [infinitivo]' (uma das mais produtivas para dar expressão ao futuro intencional, aquele que dá conta do firme propósito de concretizar / realizar uma situação), a forma infinitiva não apresentava o hífen, o mesmo sucedendo com a forma conjugada na primeira e na segunda pessoas do plural ('havemos de + V'; 'haveis de + V', respectivamente).
   Neste sentido, não me repugna o segundo ponto da base XVII:
____________________________

«BASE XVII: DO HÍFEN NA ÊNCLISE, NA TMESE E COM O VERBO HAVER
1Emprega-se o hífen na ênclise (ex.: amá-lo, dá-se, deixa-o, partir-lhe) e na tmese (ex.: amá-lo-ei, enviar-lhe-emos)
2Não se emprega o hífen nas ligações da preposição 'de' às formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver: hei de, hás de, hão de, etc.»

____________________________

   Não se depreende daqui, como já ouvi também dizer, que o futuro "já não tem tracinho". Basta pensar no contexto da tmese (elemento gramatical intercalado ou encaixado numa forma verbal) para se verificar a falsidade da conclusão: 
. comprarei o livro > comprá-lo-ei; 
. venderemos o livro ao cliente> vender-lho-emos.

    O caso do 'haver de + V' é, na verdade, um exemplo que me oferece sinais de consenso, por mais estranho que graficamente ele possa parecer a quem muito se habituou a hifenizá-lo.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Honra à vida e a um poema... de um aquariano.

       George Agostinho Baptista da Silva ou, simplesmente, Agostinho da Silva.

       Nascido a 13 de Fevereiro de 1906, no Porto, veio a morrer 88 anos depois, a 3 de Abril de 1994, em Lisboa. Um percurso de vida feito da Filologia, da História e da Filosofia que o tornaram reconhecido em vários pontos da língua portuguesa e não só.
    Tido como um dos grandes filósofos portugueses, Agostinho da Silva deixou toda uma obra e um pensamento que interessa redescobrir pelo humanismo, pela humanidade e pelos valores fraternalmente partilhados nos pensamentos:

As liberdades essenciais são três: 
liberdade de cultura, liberdade de organização social, liberdade económica. 
Pela liberdade de cultura, o homem poderá desenvolver ao máximo 
o seu espírito crítico e criador; 
ninguém lhe fechará nenhum domínio, 
ninguém impedirá que transmita aos outros o que tiver aprendido ou pensado. 
Pela liberdade de organização social, o homem intervém 
no arranjo da sua vida em sociedade, 
administrando e guiando, em sistemas cada vez mais perfeitos 
à medida que a sua cultura se for alargando;
 para o bom governante, cada cidadão não é uma cabeça de rebanho; 
é como que o aluno de uma escola de humanidade: 
tem de se educar para o melhor dos regimes, através dos regimes possíveis. 
Pela liberdade económica, o homem assegura o necessário 
para que o seu espírito se liberte de preocupações materiais e possa dedicar-se 
ao que existe de mais belo e de mais amplo; 
nenhum homem deve ser explorado por outro homem; 
ninguém deve, pela posse dos meios de produção e de transporte, que permitem explorar, 
pôr em perigo a sua liberdade de Espírito ou a liberdade de Espírito dos outros. 
No Reino Divino, na organização humana mais perfeita, 
não haverá nenhuma restrição de cultura, 
nenhuma coacção de governo, 
nenhuma propriedade. 

A tudo isto se poderá chegar gradualmente e pelo esforço fraterno de todos. 

in Textos e Ensaios Filosóficos (2005)

       Fica ainda um testemunho do pensador, numa entrevista televisiva com Alice Cruz (realizada por 1990), sobre a solidão (ou o diálogo da pessoa consigo mesma, na esteira de Vergílio Ferreira), a tolerância (ou melhor, a aceitação e a captação), o trabalho (que contradiz o pessoano 'Elogio da Preguiça') mais a poesia (que sai e, depois, mais nada).



       E o demais... histórias.

      É pela notoriedade e pela simplicidade de homens como este que interessa (re)construir referenciais que têm vindo a perder-se. Caso para dizer, e tudo o mais são histórias.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Nascer e morrer na apreensão de um real com futuro

     Duas datas: 1896 e 1954. Um só homem: Vertov. Um só dia: 12 de Fevereiro.

     Dziga Vertov, pseudónimo de Denis Arkadyevich Kaufman, teve um só dia na data do nascimento e da morte. Os restantes, para lá do natural crescimento e da progressiva formação, viveu-os essencialmente no domínio das artes: estudou música no Conservatório; escreveu vários poemas, dissertações e novelas de ficção científica; ajudou a construir a noção de 'cinema-verdade' (que seria expressão comum na cinematografia cerca de cinquenta anos mais tarde).
   Assumindo-se como um futurista, ficou reconhecido essencialmente pela realização de filmes e documentários - desenvolvida em Moscovo -, a partir das influências de Mikhail Koltzov e do trabalho como editor no Comité de Cinema de Moscovo (papel que exerceu até 1919).
   Com a sua teoria do "olho cinematográfico", Vertov cria na possibilidade de ajudar o homem contemporâneo a transformar-se em algo superior, ajustado a um tempo de mudanças e de preponderância da força da máquina.
    Numa tomada de consciência e numa espécie de regresso às origens, 'Kino-Glaz' (1924) desafia o tempo, revê o caminho das máquinas na sociedade - um tema em que o homem sai, por comparação, desfavorecido.

 
Excerto-montagem de Kino-Glaz (1924), na cena da padaria e do pão.

      A sua obra-prima, 'O Homem da Câmara de Filmar' (1929), fica na história como o seu último filme mudo, pleno de visualismo poético.

       No tempo da afirmação tecnológica, da máquina, da euforia fabril e da força dinâmica, compõe-se o gosto superior dos percursos erráticos da electricidade em detrimento aos da pressa das pessoas em acção.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Consultório aberto com vontade de fechar para obras

     De volta à questão dos modificadores e sua integração no predicado.

Q: Na frase "Logo que anoiteceu, os pescadores saíram para o mar", qual é o predicado? E 'logo que anoiteceu' que função sintáctica tem?

R: Retomando apontamentos já produzidos, digo que, nesta frase, o predicado é 'Logo que anoiteceu, saíram para o mar' (entendido este último - o predicado, não o mar - como o grupo verbal constituído pelo núcleo mais os complementos por este requeridos, além dos respectivos modificadores).
    Esquematicamente, daria conta das funções sintácticas presentes na frase do seguinte modo:
   
    SUJEITO (simples): Os pescadores

    PREDICADO:  a) Núcleo verbal: saíram
                        b) Complemento oblíquo: para o mar
                        c) Modificador: Logo que anoiteceu

     A subordinada adverbial temporal é, portanto, um adjunto do predicado.
    Ressalvaria o facto de nem todos os modificadores (nomeadamente, os que se situam ao nível da frase, não do predicado) integrarem o predicado. É o caso dos que revelam o posicionamento do enunciador face àquilo que é enunciado (portanto, mais relacionado com questões de modalidade).
     No caso do enunciado que propõe, o modificador integra o predicado, independentemente da posição que tenha na frase (princípio, meio ou final). O que isto revela é apenas o factor de mobilidade. Entre os testes que revelam essa integração estão os seguintes:

1) a possibilidade de integrar a resposta focalizada na acção representada pelo verbo 'sair':
    - O que fizeram os pescadores?
    - Saíram para o mar logo que anoiteceu.

2) a possibilidade de integrar uma questão cuja resposta focalize o sujeito sintáctico:
    - Quem é que saiu para o mar logo que amanheceu?
    - Os pescadores.

3) a possibilidade de integrar uma questão do tipo sim / não, podendo a resposta negativa dar lugar a reformulação:
    - Foi logo que amanheceu que os pescadores saíram para o mar?
    - Sim, foi. / Não, foi mais tarde.
                      Não, foi assim que todos os pescadores chegaram.
                      Não, foi muito antes.

     Acerca dos modificadores ao nível da frase e dos que se situam ao nível do predicado, diria que já muito foi escrito. Com eles já deu a "carruagem muitas voltinhas" (espero que não descarrile). Qualquer dia, vai ter de se preparar para novos apeadeiros ou, como dizem os nossos irmãos brasileiros, para novas paradas.

Confiar... sem fiar... e mais um '-ar'

      Reproduzo parte de um comentário feito anteriormente, ao qual respondo tardiamente, dados os afazeres de que nunca me livro (espero que o meu prezado leitor me perdoe, por esta demora).

       Q: Boa tarde, professor.
    (...) Sou professor de língua portuguesa no Brasil e trabalho em escolas de preparação para concursos públicos. Desde já, manifesto minha admiração por este sítio inovador e instrutivo.
     Em tempo, gostaria de ler suas análises acerca do processo de formação das palavras DESFIAR e ENCORAJAR, porquanto da finalização de gramática normativa na qual pretendo unir informações dos melhores mestres.
     Muito obrigado pela atenção desprendida!

      R: Para começar, uma palavra de agradecimento para a gentil apreciação feita ao sítio.
     Quanto à proposta formulada, começo por referir que a palavra 'desfiar' tem como base 'fiar', à qual se acrescentou o prefixo 'des-' ([des[fiar]]). Entre a base (verbal) e a palavra derivada (verbo), há uma relação de significado assente na ideia de oposição / separação, dado que 'desfiar' implica separar, desfazer (um tecido) em fios.
       O caso de 'encorajar', após consulta de vários dicionários, permite-me referir que apenas o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa o aponta como um caso de empréstimo (via francês: encourager). Outros, nomeadamente o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001: 1401), da responsabilidade da Academia de Lisboa e da Fundação Calouste Gulbenkian, indicam tratar-se de um verbo formado a partir do nome 'coragem' ([en[coragem]ar]).
      Segundo a primeira hipótese, tratar-se-ia de um caso de empréstimo, isto é, transferência de uma palavra de uma língua para outra, acompanhada de um processo de 'aportuguesamento' (combinando o som original da base [Ʒ] com a terminação da primeira conjugação) no acolhimento do novo termo - a terminação em '-ar', sublinhe-se, apresenta alguma regularidade, sistematicidade e produtividade no Português, a julgar por verbos mais recentes como 'printar', 'deletar', 'eucaliptizar', entre outros.
      Com a segunda hipótese, maioritariamente atestada, verifica-se o processo de parassíntese: a base nominal 'coragem' (graficamente marcada com 'g', mas fonologicamente representada por [Ʒ]) deriva para uma forma verbal, pela junção simultânea do prefixo 'en-' e dos sufixos gramaticais '-[[a]r] (a vogal temática mais o sufixo verbal do infinitivo). Neste caso, 'encorajar' é um verbo denominal, à semelhança de muitas outras palavras formadas parassinteticamente.

     Sem a mestria dos melhores, fico-me por um contributo que merece apenas o que nele se queira ver. O que nele (re)vejo é o resultado de leituras que vou integrando e me vão ajudando a perceber algo mais sobre a língua que uso e ensino (na esperança de que o vá fazendo bem).

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Não estou a ver bem...

      Isto é o que se chama falta de visão. Mais um mau exemplo.

      Uma aluna endereçou-me uma pérola na nossa língua, reconhecendo que ela sabe escrever bem melhor; melhor dizendo, que escreve muito bem:_____________________________________________

     «Informamos que o òculo graduado realizado na Mais Opticax a 12.01.2011 jà se encontra pronto, disponìvel para levantamento.    
   Aguardamos a sua visita. 

    Se adquíriu Armação + Lentes:

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   Com os melhores cumprimentos,


      Mais Optica Parque Nascente»
_______________________________________________________
         Mesmo com publicidade estrategicamente pensada para marcar a diferença, não há óculos nem oculista que resistam.
       Para além de alguma inadequação na ortografia, na selecção lexical e na construção sintáctica, alguém não aprendeu, alguém não escreveu bem, outro alguém não reviu e muitos devem estar a pensar que não estão a ver (bem) tudo isto e estão a precisar de óculos. Eu até estou a necessitar de afinar os meus. O certo é que já sei onde não vou fazê-lo.
         Quem trata tão mal a língua, suspeito que não faça nada de muito diferente com os olhos.

     Espero que aluno meu ou aluna minha, no futuro, construa, redija anúncios mais conformes às regras ortográficas mais básicas.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

São três, mas não da vida airada

      Mais um dia para mais um ano...

      Foi recente a descoberta de que uma colega e uma aluna celebram comigo mais um aniversário. Dado ser a versão masculina dos três, coloco-me entre elas, aquarianas de gema como eu (estará no meio a virtude?).

   O nosso símbolo é o aguadouro, ainda que, com Gémeos e Balança, sejamos um signo do Ar.
      Como décimo primeiro signo astrológico do zodíaco, o número é lido, no Tarot e nas cartas dos arcanos maiores, como o domínio da Justiça. Seja esta equilibrada seja esta aplicada com discernimento, racionalidade e objectividade, será sempre exemplo a seguir, cruzado com o passado (e o balanço dos erros cometidos) mais o futuro (e a atenção a visões de perspectivas distintas). 
      Segundo Caio Higino, autor da Roma Antiga e da obra Astronomica, Aquário podia ser Ganimedes, um rapaz muito belo levado por Júpiter para o Olimpo, para se tornar criado dos deuses (razão pela qual carrega um pote que derrama água); Deucalião, cujo reinado foi invadido de tanta chuva que resultou num dilúvio; Cécrope, que comemorava a ancestralidade da raça e utilizava água na prática de sacrifícios aos deuses (antes do conhecimento do vinho).
     Seja lá quem tiver sido, agora também há três conhecidos a partilhar o signo (espero que não sejamos criados de ninguém, embora às vezes pareça... só que não de deuses; que não metamos água, quanta a do reinado de Deucalião; que possamos celebrar com alguma coisa mais substancial do que simples líquido).



O meu bolo de aniversário 
oferecido pela turma do 11º2
              AQUÁRIO

      Feito de sim e de não,
      de brisa, vento ou furacão,
      de fogo, cinza, silêncio ou paixão,
      de tormentosa bonança em cenários de tensão.

      Busco o novo, canso-me do comum, anseio pela ilusão
      num tempo preenchido pela impressão
      de uns ponteiros de relógio correndo de estação em estação,
      em inevitável e desgastante aceleração.
      
      Perdendo e ganhando na vida, fico sem conclusão,
      partindo numa viagem para o mundo inteiro, sem destino ou chão:
      no terror, na felicidade, na ventura, na pressão,
      vejo-me força de pensamento; materialidade sem realização... 
      E no instante em que surge o desassossego, a preocupação,
      não vivo limites nem fronteiras - Não!
      
      Se me isolo, fico na angústia, no malogro e na pesada frustração, 
      por mais que nisto ninguém veja qualquer sentido ou razão.
      Não me quero único entre muitos; na Humanidade não sou excepção...
      Do tempo não guardo passado; do presente, tenho a sensação
      de que não basta para a satisfação 
      nem para a dispersiva vontade de limar a imperfeição;
      do futuro, procuro distrair-me, não sem inquietação. 

      Diferente?... Talvez no pensado e no realizado;
      na afirmação do físico que enleou a mente. 
      Na derradeira hora, na da derradeira passagem,
      que o espírito se vingue dessa matéria em contínuo curso decadente,
      que, afinal, viveu por ter coração e se sentir grão de areia num mar de tanta gente.

Gondomar, 
em dia de aniversário

      Entre o que sou ou o que se assume ser, fica o sentido das palavras (quem sabe?) à espera de alguém, de um retrato, de um aquariano que confirme ou infirme a descrição. 

      Por ora, direi que estou bem acompanhado na celebração.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Do homem no Porto nascido

      212 anos passaram desde o nascimento do autor de Frei Luís de Sousa.

      Ainda há pouco tempo me cruzei com a casa na qual se encontra assinalado o seu nascimento - na cidade invicta, aquela onde lutou pela causa liberal.
Casa na Rua Dr. Barbosa de Castro (Porto)
     Esta é a casa-natal para o introdutor do Romantismo em Portugal, aquele que no saber e no sabor dos discursos do seu tempo já dizia:

«Se na nossa cidade
há muito quem troque o b por v,
há pouco quem troque 
a liberdade pela servidão.»

      Na defesa pela liberdade (dos valores maiores entre os românticos), na apologia do sentimento, há o cíclico retorno que devolve o Homem a uma espécie de saudosismo voltado para a infância ou para um tempo em que o bom não está corrompido. E, assim, o "eu" se confronta com o que foi e o que é.


Quando Eu Sonhava

Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar...
Para quê? - Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava - mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia ...

in Folhas Caídas (1853)

      Um pequeno poema sem fim, pela circularidade para que remete, qual mito de/para um eterno retorno.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Das pequenas coisas que fazem os dias diferentes

     Com o convite para ler Álvaro de Campos a uma turma de 12º ano...

     Ler é uma das actividades mais comuns para quem dá aulas de Português. Porém, quando uma amiga nos pede para partilhar essa experiência com alunos, a responsabilidade é bem maior. Não defraudar expectativas, dar voz a um texto que não é nosso, querer motivar os alunos para a música que a poesia sempre foi são desafios que tudo pode comprometer.
Capa de uma separata  com o poema "Tabacaria"
    "Ode Triunfal" e "Tabacaria" - poemas em dois registos tão distintos, tal qual actor que, no mesmo palco, tem de rir e de chorar; de mostrar e de esconder; de gritar e de sussurrar.
    Se no final da primeira composição poética pode já anunciar-se o tom da segunda, é nesta última que um balanço existencial (entre o pessimismo e a desilusão, a falha e o desalento, a angústia e a desesperança) se revela mais humano.


      "Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta"
in "Tabacaria", 15 de Janeiro de 1928 


      Na primeira, o ideal da tecnologia, do dinamismo é expressão para a crença e a afirmação do tecnicismo, no qual a moralidade (bem e mal) não existe. Daí os versos tão actuais de quem quer (ser) a máquina:

      "A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
       Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
       Agressões políticas nas ruas,
       (...)
      Notícias desmentidas dos jornais,
      Artigos políticos insinceramente sinceros,
      Notícias passez-à-la-caisse, grandes crimes -
      Duas colunas deles passando para a segunda página!"


in "Ode Triunfal", Londres, Junho de 1914
  
     Num tempo feito de celeridades, de objectivos "cegos" à humanidade que nos distingue de máquinas, de rebanhos que não são pensamentos (para contrariar Caeiro), de industrializações tais que tudo reduzem a números, a gráficos e a comparações insensatas,...

     ... viveu-se o prazer de um instante multiplicado em lembranças, (re)encontros, partilhas e afectos - a felicidade mágica de silêncios, sorrisos, sensações que os versos e a boa escrita conseguem dar, numa alternativa ao tempo físico que tritura o ser, sem lhe dar o tempo necessário para crescer.