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quinta-feira, 14 de março de 2024

A propósito de uma exposição... o reencontro com História(s)

    O convite foi formulado, imediatamente aceite... e assim voltei a tê-los comigo.

   Na sequência do Dia da Mulher (e porque este deve acontecer todos os dias), a Biblioteca do Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira (AEML) tem o seu espaço ocupado pela presença de uma poeta: Sophia de Mello Breyner Andresen.
    À entrada da escola, nos corredores do edifício, a presença feminina evidencia-se, assim todos possam educar-se com os contributos que muitas mulheres têm deixado, em diversas áreas, para a Humanidade, por razões de abril ou outra que afirme a construção de valores dignos para qualquer ser humano.
     Convidaram-me a partilhar, com alunos de 12º ano, a minha leitura de alguns poemas de Sophia, da minha visão acerca da sua vida e obra. Tarefa difícil, por certo, dada a grandeza de quem foi falado e dado o relevo formativo, poético-literário a salientar para quem ia ouvir. Muitas caras familiares suavizaram o registo, pela lembrança do bem vivido.
    Enquadrada no tema do Plano Anual de Atividades deste ano letivo ("74:24 - o que cabe em 50 anos"), a poesia é tópico de destaque, na expressão comprometida e transfiguradora da sociedade. Se com Antero de Quental a máxima foi "A poesia é a voz da revolução", com a autora de Poesia (1944), Dia do Mar (1947), Coral (1950), Livro Sexto (1962), Grades (1970), O Nome das Coisas (1977), Ilhas (1990), entre muitos outros contributos poéticos, conjugaram-se as forças da terra, da natureza, do mar, da cultura e da erudição para a luz da libertação e da liberdade.
    Sublinhei os traços biográficos da ascendência aristocrática da primeira mulher a receber o maior galardão literário de expressão portuguesa - o Prémio Camões (1999) num puzzle criativo onde generosidade, humildade e sabedoria se refletem em poemas breves com mensagens eternas, como a da entrega e da dádiva poéticas ao leitor:

     EPIDAURO 62

Oiço a voz subir os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha
                                                                   (in Ilhas, 1990)

       Três a cinco versos bastam para trazerem a vida, o(s) tempo(s), a cultura, a pátria, os valores da justiça, da verdade e da dignidade humana à reflexão - motivos mais do que suficientes para que, também, a escritora portuguesa tenha sido reconhecida, no país vizinho, com o Prémio Rainha Sofia (maior galardão para a expressão literária iberoamericana), em 2003.
       2004, 2014, 2024 são datas para Sophia: o da morte, o da trasladação do corpo para o Panteão Nacional, o de celebração de cinquenta anos do 25 de abril - facto histórico que a poeta eternizou em quatro simples versos:

        25 DE ABRIL

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.
                                                             (in O Nome das Coisas, 1977)

Obra de Sophia numa das secções da exposição, na Biblioteca do AEML (foto JR)

    Na versatilidade da obra (em modo lírico, dramático ou narrativo), há imaginário(s) rico(s) portador(es) desses valores que compõem uma ética de apelo ao imaginário, à cultura, à viagem, à descoberta, à origem da luz, do cristalino, da concha, da onda, da força que o ser humano transporta como "O super-homem" (que cada um de nós é no labirinto da vida).
      As flores da celebração eram as da primavera, do jardim, mas também as da liberdade - que se (re)viram nos poemas, no mar, na madrugada (25 de abril) que quebrou a noite e o silêncio (do regime ditatorial). 
      Assim foram evocados os versos da poeta, lidos, partilhados na mensagem de energia, de passagem, de crença e de luta pelo progresso das coisas, de aprendizagem e de vida, sugeridas na diversidade de matizes do coral:

     CORAL

Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.
                                       (in Coral, 1950)

        Do mais que se dissesse e do muito que Sophia viajou (física e espiritualmente), pode dizer-se que Sophia, neste território espinhense tão marcado pelo mar, é personalidade para um roteiro que não pode esquecer esse leito original de vida:

       INSCRIÇÃO

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.
                                        (in Livro Sexto, 1962)

       Se não tiver ficado a vontade de voltar a Sophia (na poesia, no passeio junto à Granja, na visita ao Panteão, na descoberta do Epidauro, na ironia que perpassa em "As Pessoas Sensíveis"), que esta tenha sido a razão para a vivência de uma libertação; de um momento de recordação; de reencontro com um tempo passado, num presente a caminho de futuro. Com História e com o agradecimento à MCB.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Dia Nacional da Cultura Científica

         Poucos minutos, mas para minha memória futura.

       Uma turma de 10º ano, uma lição de Físico-Química A e o motivo do Diretor na sala de aula: um cartaz assinado que havia motivado dois dedos de conversa sobre Rómulo de Carvalho e o Dia Nacional da Cultura Científica, mais uns poemas que importava partilhar. O convite "Queres vir à aula, amanhã?" foi imediatamente aceite.

Saberes que cruzam letras, planetas, forças e número em abraço

        Há 117 anos, nascia aquele que viria a ser professor de físico-química do ensino secundário no Liceu Pedro Nunes, Liceu D. João III (Coimbra) e no Liceu Camões; pedagogo, investigador da história da ciência em Portugal... e poeta, sob o pseudónimo de António Gedeão. Há 25 anos celebra-se o "Dia", inspirado neste professor e divulgador de ciência. Também escritor literário. Razões mais do que suficientes para o homenagear. "Pedra Filosofal", "Lição da Água", "Lágrima de Preta" são das mais reconhecidas produções poéticas.
         Li "Impressão digital".
      A propósito dos "olhos", lembrei Camões e "Se Helena apartar / do campo seus olhos / nascerão abrolhos" - os efeitos do olhar de Helena na natureza são transformadores (sejam olhos verdes da "cor do limão" sejam de outra cor, mas "olhos do meu coração"). Os olhos de Gedeão são outros. Mais próximos dos contemporâneos, por certo, com abordagem e orientação temática bem distintas, sublinhando e definindo o que nos singulariza, o que nos faz ser diferentes, tal como uma "impressão digital".
      O tema da relativização do que se vê, da perceção das coisas, do copo meio cheio / meio vazio, da visão otimista em confronto com a pessimista são lições para a vida, para o crescimento do entendimento do universo. É / são saber(es) que o texto / poema dá, vindo(s) de alguém que se fez Homem da Ciência e das Letras, mostrando que a fronteira entre conhecimentos não faz sentido.
António Gedeão, no Parque dos Poetas (Oeiras)
     Ficou o convite para se deslocarem a Oeiras, ao Parque dos Poetas, e verificarem como uma estátua em honra do poeta António Gedeão não desdiz o físico Rómulo de Carvalho, mais os seus tubos de ensaio. Com física ou química, há lugar para a poesia, nas palavras que se atraem, noutras que se afastam - forças que a física designa de atração e de repulsa. Também há flores e escolhos (que rimam com os camonianos abrolhos); pedras pisadas, gnomos e fadas; moinhos e gigantes.

        Um dia que se marcou pela diferença, nas ciências que se complementam, por cruzarem saberes e darem outro sabor - um halo diferente na vida. Obrigado, AMT.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Vai uma "ghost house"?

      Não se confunda com "guest house".

     O dia é de Halloween, mas não é feriado para ninguém (é de trabalho, trabalho,... e mais trabalho). Nem com feitiços isto lá vai! De bruxas, nada - já não as há como antigamente, que eram mais "descaradas", menos dissimuladas!
       Por isso, com "trick or treat", fiquemos pelo "treat" e uma "ghost house" (melhor, duas). Com a crise da habitação em Portugal, não há como explorar alternativas (que não prejudiquem).

"Ghost House": uma doçura de Halloween vinda diretamente da Pepim (Foto VO)

       Venha o chazinho (de limonete) e viva-se a "doçura" sem travessuras.
       Há quem veja neste dia o antípoda do seguinte:

Comparações falíveis, com dias sem luz, sem vida e sem o princípio da eternidade

       Antes fosse assim! A referencialidade histórica do dia de amanhã em nada se mostra positiva pelo que foi tragicamente vivido, corria o ano 1755 - um dia de má memória.

       Façamos nós os dias ou alguns momentos destes ao prazer de todos, porque, para tragédias, já basta as que existem no mundo e parecem não ter fim.

sábado, 7 de outubro de 2023

Impérios de Guerra (que não são o quinto, definitiva e infelizmente)

      Após o início declarado de mais um conflito na Humanidade.

      A Organização das Nações Unidas (ONU) aponta cerca de 9.700 civis mortos na Ucrânia desde a invasão russa há 21 meses. Hoje, dia 7 de outubro, dá-se mais um passo para repetir o apontamento numa outra guerra, já com muitas histórias e muita perda de vidas.
    A Guerra Israel - Hamas (re)iniciada tem contornos tão intensamente violentos que todos já deviam saber a História e ter aprendido a lição maior: poupar vidas, particularmente a do Homem comum (que somos todos)! Qualquer guerra, em qualquer tempo, ponto geográfico ou na base de qualquer credo (religioso ou outro), é o maior ladrão de vidas. E quem a promove, provoca, perpetra sabe-o, num altar de poder que não considera o sentido prático e comum do que é sofrer. Está(ão) aqui o(s) maior(es) ladrão(ões)

Império de Trevas (ou como o peixe grande e assombroso da guerra se alimenta dos mais pequenos)

      No capítulo V do Sermão do Bom Ladrão, proferido em 1655, na Misericórdia de Lisboa (quando o queria ter feito na Capela Real), Padre António Vieira lembra o seguinte:

    “Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: - Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. - Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?”  

      Nem quatrocentos anos (e pelos vistos não são muitos!) para se continuar a ler tão atuais palavras, que referem cadeias de ladrões tão diferentes e constantes no crime maior à Humanidade. A evolução, se a houve, parece ter ficado na subtileza do furto... que deu frutos. Se Adão se fez ladrão recebeu o inferno; mas há ladrões maiores que, por não serem ou não se acharem Adões, conseguem chegar ou andar pelo(s)paraíso(s) - para além dos fiscais, os de uma Terra que não é de todos (ou que será mais de uns do que de outros).
     Continuo com o exemplo inspirado(r) do “Pai Grande” - ou Payassu, como os índios o designavam -, dos primeiros a reconhecer um sentido de justiça argumentativamente apurado, também o valor da diferença, da tolerância entre os homens e no que os define; e ainda a defesa da miscigenação dos idiomas, numa legitimação tanto do culto "pulcro" como dos registos comuns do "belo" ou do "bonito", para não falar das sonoridades escutadas em todas as cores da sua ação missionária. A aproximação fazia-se também, então, a um Quinto Império (com um Papa "angelicus" e um imperador cristão), abraçando judeus, cristãos, muçulmanos numa espécie de paraíso, a construir em vida entre os homens e não a doutrinar como prémio a alcançar depois da morte (atualidade tão inquestionável).

       É preciso focar a causa e não o efeito. Tem de ser um português a relembrar tal, desde há séculos até ao presente, numa voz que recorde o valor do "abraço"? A cultura da paz é construção de valor difícil, quando devia ser escolha maior de todos os humanos, aproximando-os na comunicação, na comunhão, na união contra o que o ameaça (e não da perdição). Afinal, citando Steinbeck, toda a guerra é um sintoma do fracasso do homem (melhor, de alguns deles) enquanto ser pensante.
 

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Grande Mês!

    Depois de um janeiro que nunca mais acaba(va), começa o mês mais pequeno de todos, mas muito proverbial.

    É o costume: quando se é a menos nalguma coisa, apuram-se outras qualidades.
    Fevereiro é pequeno no número dos dias, mas grande nos provérbios (e nos saberes que se lhe associam):

Se o inverno não faz o seu dever em janeiro, fá-lo em fevereiro.

Quer no começo, quer no fundo, em fevereiro vem o entrudo.

Quando não chove em fevereiro, nem bom prado nem bom centeio.

Os dias bons de janeiro enganam o homem em fevereiro.

O sol de fevereiro matou a mãe ao solheiro.

Neve em fevereiro é mau para o celeiro.

Luar de janeiro faz sair a galinha do poleiro; lá vem fevereiro que leva a galinha e o carneiro.

Lá vem fevereiro, que leva a ovelha e o carneiro.

Janeiro geoso, fevereiro nevado, março frio e ventoso, abril chuvoso e maio pardo fazem o ano abundoso.

Fevereiro quente traz o diabo no ventre.

Fevereiro coxo, em seus dias vinte e oito.

Fevereiro afoga mãe no ribeiro.

Chuva de fevereiro vale por estrume.

Bons dias em janeiro enganam o homem em fevereiro.

Até ao Natal salto de pardal, de Natal a janeiro salto de carneiro e de janeiro a fevereiro salto de outeiro.

Água de fevereiro mata onzeneiro.

      Depois disto, registe-se também que 'fevereiro' vem do latim (februarìu-), «o mês das purificações», de februáre, «purificar; fazer purificação religiosa»). Há quem defenda que era tempo dedicado a "Februus", a quem os romanos dedicavam sacrifícios para compensar / evitar a escassez do ano.
     Ao estudar o calendário egípcio, no qual constavam 365 dias, Júlio César trocou o calendário lunar pelo solar. Janeiro e fevereiro foram colocados no início da contagem e o imperador distribuiu os dez dias de diferença face ao calendário anterior por vários meses. Claro que julho (o mês de 'julius') não podia ser menor do que outros; mas o de César Augusto também não (agosto). Na alternância dos trinta e dos trinta e um dias nos diferentes meses, dois sucessivos ficaram com trinta e um (os imperiais); o mais pequeno ficou fevereiro, que, de quatro em quatro anos, tem vinte e nove dias, por o ano solar ser um pouco maior do que 365 dias.
      As mudanças de calendário, entre os cálculos precisos dos astrónomos (considerados entre dois equinócios solares) e as decisões dos imperadores romanos ou as dos papas, marcaram fevereiro sempre como o segundo mês (introduzido com o inicial janeiro) num arranjo temporal que nunca se revelou equilibrado nas alternâncias ou no número de dias contados. 

    Purificado ou não, este é mês diferente: "dos gatos" como popularmente se diz; pequeno quanto baste para cedo se chegar à primavera, apesar do inverno que faça sentir.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

E assim se falou dela...

     Terminou a semana com as palavras do patrono.

     Adjetivada de "outoniça", a semana culminou com as palavras do patrono (Manuel Laranjeira).
   Na obra Comigo (1912), entre vários poemas reveladores de uma atitude de ensimesmamento e introspeção, busca-se um incessante sentido da existência. Numa visão que busca a ilusão e se confronta com a consciência trágica e definitiva da existência, resta a jornada, o percurso, o caminho, a viagem - palavras que marcaram a mensagem transmitida, na qual se cruzaram conhecidos e alguns ainda por conhecer, todos unidos num momento e numa iniciativa singulares.
    No dialogismo das cartas, assistiu-se à encenação de um Laranjeira e de um Unamuno, numa prova de amizade (pessoal, intercultural e interlinguística). Foi uma oportunidade de encontro e um momento de partilha de leituras, de reflexões e de versos para a vida.
      Falou-se dela... dessa jornada...

Montagem com poema de Manuel Laranjeira e música de Debussy (Filme VO)

     Foi uma atividade para (re)lembrar, na Biblioteca Escolar, com trabalhos produzidos pelos alunos, uma exposição sobre o autor de Às Feras (1905), com e para lá dos textos.
    A vida é uma jornada, uma lição composta de bons e maus instantes, mas, acima de tudo, de caminho, de jornada.

     Em dia de nuvem, sombra, chuva e trovejo, não se deixou de falar de sol e de como neste há calor, há esperança (porque tudo é passagem) e deve ser dado tempo a que estes últimos se (nos) revelem.

domingo, 16 de outubro de 2022

Citando Agustina, a propósito de ontem

     Muito se tem falado de Agustina Bessa-Luís e do centenário do seu nascimento.

   Quando em 1995 lia Os Meninos de Ouro, fazia-o na descoberta não da exemplaridade de uma personagem masculina, mas de um menino do Douro cujo percurso servia para traçar não o papel forte que poderia (ou, em certa medida, viria a) ter, mas a limitação, a fraqueza, a raiz arrancada à força da natureza, da terra, do Norte e das grandes famílias rurais nortenhas.
     Publicado em 1983, o foco romanesco começa por estar depositado em José Matildes, um político do período pós-revolucionário, evocando semelhanças com a figura de Francisco Sá-Carneiro; com o sentido messiânico de que a figura se viria a revestir; com uma vida a espelhar dificuldades relacionais e sentimentais. Contudo, é a afirmação do feminino que se virá a assumir no romance, roubando-se ao (anti)herói o protagonismo narrativo. Assim se salienta Rosamaria, figura duriense trocada no casamento, por não ser prefigurada como a grande mulher que se diz estar por trás de um grande homem. A força desta última vinga e assenta num orgulho firmado na seriedade e na luta enquanto razões de existência e de identidade construídas na interioridade humana.
     Este lado matricial da obra de agustina traduz o sublinhar de uma energia, de uma força, de uma fonte, de uma geografia e de uma terra (todas femininas) que veem na Natureza (genesíaca e venusiana) valor maior. Residem aqui a importância e a coerência da epígrafe a abrir a obra: "A Natureza, ela mesma é a doença, e só ela sabe o que é a doença" (Paracelso), recuperando-se com ela o princípio decisivo de toda a cura, encontrada no interior da própria Natureza.
     Neste arrazoado, lembro-me de ter sublinhado, logo nas primeiras páginas, o seguinte:

    "Diferente do que pensam os economistas, uma área produtiva não se destina apenas a ser rentável; sobretudo é uma área onde a vida se condensa e se transmite. Representa uma condi-ção histórica que se reflecte e se repercute, pondo a tónica principal não no lucro, mas sobretudo na circulação da energia, que implica o lucro também, mas que acentua a persuasão da inteligência, do investimento moral."

      Numa espécie de hino à terra e à natureza, finda o romance com uma referência a 

   "... um lírio azul, planta endémica e maravilhosa. (...) Penso nela como sendo um olhar que a terra ergue das suas profundezas e que nos empresta para que os segredos novos nos sejam apontados. Pois é a terra quem nos persuade aos caminhos que ela tem ainda invioláveis. Um lírio azul que parece perdido nas alturas roqueiras é talvez mais do que a Iris boissieri; é um olhar que nos vigia, passe a candura poética."

    Hoje cito-a, porque há pensamentos que, entre os valores ecológicos, telúricos e panteístas (com algum paganismo genesíaco e venusiano) da escrita literária, deviam ser relembrados na vida de todos nós, para que à nobre "raça humana" não falte a "Velha amiga que é a terra" nem a interioridade que nos define - a natureza humana ou da humanidade.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Espírito novo (apesar do cinza)

     Há dias para tudo, nomeadamente para recriar versos (que já tiveram reversos).

     Com maior ou menor esperança, as palavras espelham um estado de espírito que, ora fechado, ora aberto, nem sempre traduz o que é celebrado. Valha o dia de sol claro, limpo, a convidar à festa da liberdade, da vida e, de novo, com esperança.

            ACINZENTADA MEMÓRIA

Monumento ao 25 de abril, Espinho (Foto VO)
Do cravo em pedra,
sem a rubra cor,
apagou-se o sangue,
secou o vigor?

Da revolução,
a memória fica,
lembrando a canção...,
o povo que grita...,

a arma a dar flor...
Renovado o tempo,
nascida a manhã,
no sopro do vento,

a sã liberdade
vive-se na cidade.

Em dia cinzento,
vejo um monumento:
voam as gaivotas
só no pensamento.

No duro betão,
há ondas de mar
plantadas no chão,
subidas ao ar.

Qual fénix em cinzas,
Esperança, vinhas...
Fica. A vida alindas.

     Hoje, mais do que a liberdade do dia, importa a esperança de sempre.

     Chamo-a, porque a caixa de Pandora não pode manter-se fechada.

domingo, 17 de abril de 2022

Um grande ovo de Páscoa cracoviano

       Sucedem-se as Páscoas, ano após ano, e os ovos.

      Entre as várias explicações para o ovo e para o coelhinho da Páscoa (que não "foi com o Pai Natal, no comboio ao circo"), a multiplicidade dá para todos os gostos - os mais religiosos, tradicionais, simbólicos, culturais, regionais e até os mais fantasiosos.
       Encontrei uns bem artísticos em Cracóvia, no conhecido Mercado de Páscoa, realizado anualmente na praça central da Cidade Velha, Rynek Główny (praça principal de Kraków). Em cerca de dez dias, as festividades da Semana Santa concretizam-se na exposição de ovos gigantes decorados e na confeção das tradicionais "palms" artesanais de flores e plantas secas, para serem abençoadas no Domingo de Ramos - informações colhidas e vividas em memórias de viagens bem passadas. O colorido da praça é festivo. Os ovos, dispostos em vários pontos da praça, são atração visual assegurada, numa composição e num enfeite de versatilidade cromática notáveis.

Um ovo cracoviano à altura de um ser humano (Foto VO)

      A presença do ovo, desde a Antiguidade persa, traz consigo a perceção do símbolo do renascimento. De regiões como a Ucrânia (muito antes da chegada do cristianismo) ou a China, vem a leitura do alimento e da origem da vida - e, por extensão, da criação do mundo - até à comemoração do fim do inverno. Daí o entendimento do "Páscoa" como "passagem".
       Dos ovos de galinha (cozidos) pintados à mão (que persistem) aos de chocolate (mais recentes e comerciais), muitos séculos aprimoraram o que pôde ter sido a celebração de uma passagem mais familiar e doméstica até se chegar aos requintes da doçaria e pastelaria francesas, sem esquecer que Eduardo I de Inglaterra banhava ovos em ouro para presentear os seus súbditos favoritos - uma espécie de inspiração para o que Peter Carl Fabergé viria a produzir com os valiosíssimos Ovos Fabergé.
      Numa perspetiva mais literária, sustentada no que o escrito e um trabalho humanista permite ver, dir-se-ia que a origem panteísta dos credos é aquela que se funda e remete para um passado quando podiam ser vistos, nos campos, em época primaveril, muitos coelhos e lebres. Um mito popular referenciado pelo alemão Georg Franck von Franckenau, no século XVII (cerca de 1670), na obra Disputatione Ordinaria Disquirens de Ovis Paschalibus, ganha dimensão criativa e literária ao ser traduzido, na escrita, pela figura de uma Lebre de Páscoa, a trazer prendas para os mais novos que melhor se comportaram. Da Alemanha para o Reino Unido e daqui para os Estados Unidos, dissemina-se um universo entendível à libertação das agruras do inverno, à passagem e aos ritos primaveris, numa acomodação ética e moral conjugada com a ressurreição da natureza. A isto mesmo o cristianismo se havia já ajustado, numa visão libertadora e configuradora de outras passagens (histórico-filosóficas, éticas e religiosas).

       E com mais esta curiosidade, passemos a um novo ciclo: o da primavera que chegou e prepara a vinda do verão. Pelo menos, com a mudança da hora, os dias parecem mais alegres e luminosos (ou luminosos e alegres). Por ora, uma boa Páscoa para todos.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Tempo de palíndromo

       A data é palíndroma: 22-20-2022.

      Do grego 'palíndromos', diz-se que é aquilo que corre em sentido inverso. Num processo de leitura, diz-se que se trata da palavra, do grupo de palavras, do verso ou número que se lê da mesma maneira da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda (ex.: 'sopapos' é um palíndromo, tal como a expressão 'amor a roma').
Imagem mais quiasmática, mas com alguma coisa palíndroma 
  Há exemplos para todos os gostos e alguns bem mais extensos, nomeada-mente no registo do português do Bra-sil: 'Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos!'. 
  Desconsiderados, na escrita, os espa-ços, sinais de pon-tuação ou de acen-tuação, bem como outros de natureza gráfica, há palíndromos tematicamente muito variados: os de teor mais desportivo ('Anotaram a data da maratona'), os comestíveis e alimentícios ('ovo'), os culinários ('Eva, asse essa ave!'), os zoológicos ('arara'), os da escrita ('ata', 'Rota de redator'), os mais relacionais social e afetivamente ('ama', 'aia'), os espaciais ('salas', 'A rua Laura', 'A sacada da casa'), os auditivos e universais ('Som, só com o cosmos!'), os temporais ('Adias a data da saída', 'Após a sopa'), os de indumentária ('saias'), os vazios ('oco'), os onomásticos ('Ana'), os pronominais ('ele', 'esse'), os apelativos ('Ajudem Edu já!), os poéticos ('Ame o poema'), os dramáticos ('Amar dá drama'), os mamíferos ('mamam'), os ossados ('osso'), os agressivos ('socos', 'Ódio do doido'), os estéticos ('Ser belo: lebres'), os aniquiladores ('matam'),  os cómicos ('rir', 'Irene ri'), os libertos ('Livre do poder vil'), os tirânicos ('Ana Rita, a tirana'), os abandonados ('sós'), os ilegais ('A Daniela ama a lei? Nada!'), os dependentes ('A gorda ama a droga'), os dermatológicos ('Ele padece da pele'), os vencidos ('A torre da derrota'), os educativos ('Aula é a lua'), os internacionais ('o céu sueco', 'dogma I am god'), os profissionais ('O Cid é médico'), os mais ginastas ('Roda esse corpo, processe a dor!'), os míticos ('O mito é ótimo'), os que voam ('asa') e até os que voltam a ler ('reler') e a viver ('reviver').
   Sator arepo tenet opera rotas é apontado como o palíndromo conhecido mais antigo, redigido em latim ('lavrador diligente conhece a rota do arado') - um enunciado a traduzir uma sabedoria de vida (de quem e para quem lavra, e não só).

    Se aos números palíndromos se atribui popularmente a designação de 'capicua' (do catalão 'cap' <cabeça> e 'cua' <cauda>), hoje estamos numa delas. Tudo uma questão de combinação, do verso e seu inverso. E já, agora, registe-se que não deixamos de ter um ambigrama (com os números a refletirem o seu contrário na leitura vertical ou, como se costuma dizer, 'de pernas para o ar').

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Leonardo

      Começou bem o ano televisivo, com uma série sobre um grande para a Humanidade!

    O título disse tudo: "Leonardo". Sim, o que nasceu em Florença, em Vinci (comuna italiana, na Toscana). Daí, Leonardo Da Vinci. 

Leonardo (centro), Caterina (esquerda) e o investigador da polícia (direita) - imagem representativa da série

    Em duas semanas foi exibida, na RTP1, uma série datada de 2021, com realização em países europeus como a Itália, o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Espanha, bem como nos Estados Unidos da América. Enquanto figura das mais importantes no Alto Renascimento (nas áreas das artes e das ciências), Da Vinci foi apresentado com algumas fragilidades e pontos críticos no seu percurso biográfico; foram identificadas as suas influências, as suas invenções, sem esquecer o relevo de muitas das suas obras-primas. Encarado como o próprio arquétipo do Homem do Renascimento, foi retratado como polímata, dotado de talentos diversos e obcecado pela perfeição.

Encontro pessoal com a estátua de Leonardo da Vinci, em Milão

      Na representação desta figura, o ator Aidan Turner deu corpo a um protagonista histórico, numa intriga criada por Frank Spotnitz e Steve Thompson. 

Trailer oficial da série televisiva exibida na RTP1

     O ponto de partida foi localizado na cidade de Milão, em 1506, quando Leonardo da Vinci foi preso por ser falsamente acusado de envenenar Caterina de Cremona. Entre intrigas palacianas e detetivescas, houve toda uma analepse para recuperar a juventude (quando aprendiz no estúdio de Andrea del Verrocchio, onde conheceu Caterina) e a infância (quando abandonado pelo pai); refez-se todo um percurso de vida, pautado por descobertas, desistências, frustrações e conquistas, ganhos e perdas, amores e desamores, rivalidades, enganos e desenganos, com a entrega fiel ao que escolheu como família, paixão e projeto de vida.

   Na contracena, Matilda De Angelis (Caterina), Alessandro Sperduti (Tommaso Marsini, o companheiro de artes) e Carlos Cuevas (o amante Salai) enquadraram a vivência marcante desse artista e cientista, explorando a dimensão emotiva, pintada de várias tonalidades, na genialidade do autor de "Mona Lisa (ou Gioconda)" e "A Última Ceia".

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Sobre Arte e o Museu do Prado

     Depois de assistir a um documentário de 2019 intitulado "O Museu do Prado" (TVCine Edition), apetece lá voltar.

       Apresentado por Jeremy Irons e dirigido por Valeria Parisi, trata-se de uma produção para televisão a assinalar a primeira viagem cinematográfica pelas salas, histórias e emoções de um dos museus mais visitados do mundo. Nele encontram-se obras de arte magníficas, contando a história de Espanha desde os Trastâmaras aos Habsburgo, bem como do continente europeu que esteve sob a alçada do império de Carlos V.
Entrada lateral do Museu (estátua de Velázquez)
    Do Salão dos Reinos de Filipe IV (bisneto de Carlos V) ao grande e complexo edifício que abriu as portas madrilenas à arte (primeiro, por mandado de Carlos III de Bourbon, no século XVIII, ao arquiteto Juan de Villanueva; depois reto-mado, após as invasões francesas, por Fernando VII e Isabel de Bragança), destaque para a pintura de Ticiano, Rubens, El Greco, Velázquez, Goya, Dalí - espelhos de tempo e de histórias a (re)descobrir e a (re)viver.
      Aquando dos duzentos anos de abertura ao público (1819-2019), as fachadas principal e lateral do museu estavam em restauro. No interior, eram tantos os espaços e as obras que o tempo esgotou-se na infinitude de pontos de interesse, dos mais antigos aos mais contemporâneos.
      Rever alguns deles neste registo fílmico foi uma boa recordação, por certo. Ainda assim, as cores e as dimensões do autêntico estão para lá do que o ecrã televisivo permite.
     Termina o documentário com uma citação das palavras de Pablo Picasso, diretor do Museu do Prado, em 1936:

"A Arte limpa a alma...

... da poeira da vida quotidiana".

     Lembro-me de ter percorrido alguns dos corredores e das secções do grandioso museu, e ficar com a sensação de que precisava de mais do que dois dias para apreciar tanta herança cultural.

     Entre tantos registos, trouxe este:

"Deposição da Cruz", pintura flamenga (Van der Wayden)

      Um quadro que desafia as linhas da moldura, o espaço da imagem (explorando um efeito claustrofóbico), a própria pintura (apresentando-se com tridimensionalidade, quase como se fosse uma escultura, na composição para lá das linhas convencionais, dos limites retangulares singulares e das linearizações estáticas). Um episódio religioso, bíblico, convoca a reflexão sobre a morte, quase numa coreografia dos corpos inanimados / desfalecidos, sem esquecer o pormenor de uma caveira (ao fundo, aos pés) a impor-se face à grandiosidade das figuras representadas.

        Acho que estou a precisar de um bom banho (de cultura)!

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

"Não há guitarras nem cantar de amigo..."

      Não começa da melhor forma o ano, para a música portuguesa (e do mundo).

    Anunciada a morte de Carlos do Carmo, não se pode dizer que seja uma surpresa, dada toda a preparação da despedida artística em novembro passado, em concertos no Porto e em Lisboa. Feito o agradecimento público a quem o acompanhou como cantor, chegava o tempo de um afastamento e uma preparação para a hora que hoje se cumpriu. 58 anos de carreira sóbria, rigorosa e consolidada; 81 de idade são sinais de um percurso humano cuja previsibilidade pode ser confirmada, mas nunca desejada.
    Dizem que foi o renovador do fado. Fosse este último interpretado mais ou menos como canção, teve sempre a sonoridade rítmica, vocal e instrumental típica que identificou Carlos do Carmo como fadista de renome. Também com a sua ação persistente, em muito contribuiu para que o fado conquistasse a categoria de Património Cultural e Imaterial da Humanidade pela UNESCO (numa declaração aprovada em novembro de 2011, no VI Comité Intergovernamental, em Bali, na Indonésia).
    Aqui fica um registo do que foram as minhas primeiras memórias para esse grande intérprete nacional (e não só). Foi a experiência de um Festival da Canção Português, todo cantado por Carlos do Carmo. Algumas das cantigas concorrentes, não tendo vencido, acabaram por se tornar músicas para todo o tempo, em várias versões (o caso de "No Teu Poema", "Estrela da Tarde"). A vencedora, "Uma Flor de Verde Pinho", contava com a participação de Manuel Alegre (autor da letra) e José Niza (composição musical), versando já sentidos, símbolos e referências da cultura, história e literatura portuguesas (com as "flores de verde pino", de D. Dinis; os amores de Pedro e Inês; o "fogo amor" camoniano; o mar da diáspora nacional):

Versão de "Uma Flor de Verde Pinho" (no Festival RTP da Canção)

UMA FLOR DE VERDE PINHO

Eu podia chamar-te pátria minha 
Dar-te o mais lindo nome português 
Podia dar-te um nome de rainha 
Que este amor é de Pedro por Inês. 

Mas não há forma não há verso não há leito 
Para este fogo amor para este rio. 
Como dizer um coração fora do peito? 
Meu amor transbordou. E eu sem navio. 

Gostar de ti é um poema que não digo 
Que não há taça amor para este vinho 
Não há guitarras nem cantar de amigo 
Não há flor, não há flor de verde pinho. 

Não há barco nem trigo, não há trevo 
Não há palavras para dizer esta canção. 
Gostar de ti é um poema que não escrevo. 
Que há um rio sem leito. E eu sem coração.

       Assim se representou Portugal na Eurovisão, em Haia (Holanda), em 1976:

      Versão de "Uma Flor de Verde Pinho" (no Festival da Eurovisão, em Haia)

     Recentemente galardoado com o Grammy Latino de Carreira (2014), a Rádio Comercial prestou-lhe uma merecidíssima homenagem, convocando várias vozes nacionais de diferentes gerações para cantar um dos seus fados mais populares, dedicado à cidade que o viu nascer e morrer: "Lisboa, menina e moça".

      Homenagem a Carlos do Carmo (numa feliz iniciativa da Rádio Comercial)

     À hora da morte, sublinhados os valores profissionais e humanos, fica o sentido de uma grande perda coletiva perante um caminho artístico e humano bem cumpridos e largamente reconhecidos.
     

segunda-feira, 6 de julho de 2020

(Mais) Um romano para o mundo, com " O Amor a Portugal"

          Começou o dia com o anúncio da morte de Ennio Morricone.

      Não se pode dizer que seja inesperado, para quem já tinha 91 anos, mas a juventude e a força reveladas um ano antes, no concerto do Altice Arena (Portugal), faziam prever que ainda havia resistência suficiente para construir novas melodias ou conduzir outros espetáculos.
     Falar de Ennio Morricone é sinónimo, entre outras coisas, de música no cinema. O compositor e maestro italiano, nascido e falecido na sua cidade natal (Roma), é uma figura mundialmente conhecida, pela projeção que teve, e ainda tem, com as bandas sonoras de filmes como Era uma vez na América (1984), A Missão (1986) ou Cinema Paraíso (1989), só para citar alguns dos títulos mais sonantes.
       Dizer que ele deixou música para a vida é afirmação demasiado simplista, porque foram / são várias as melodias que estão gravadas na mente: das mais de quatrocentas partituras que compôs para cinema e televisão, há ainda a acrescentar mais de uma centena de obras clássicas. 
      As cinematográficas são, efetivamente, as de maior projeção. São mais do que reconhecíveis sonoridades como...

Banda sonora de "Era uma vez na América" (1984)

          ... ou...

Interpretação de uma das músicas de Ennio Morricone, 
no filme Cinema Paraíso (1989)

      A sua primeira indicação para Óscar ocorreu em 1979, pela banda sonora de Days of Heaven (Terrence Malick, 1978); a segunda, por A Missão (Rolland Joffé, 1986); outras se seguiram, até que, em 2007, recebe, a título honorífico e pelos contributos na música da Sétima Arte, o Óscar Honorário. Em fevereiro de 2016, finalmente, acaba por ganhar seu primeiro Óscar competitivo, por The Hateful Eight (Quentin Tarantino).
        A ligação do compositor a Portugal, para além dos espetáculos cá conduzidos, faz-se também com a voz de Dulce Pontes. Com o álbum Focus (2003), materializou-se uma colaboração da cantora portuguesa com o maestro italiano: ela a cantar alguns dos clássicos dele, que se tornou seu admirador na voz.
         E entre os clássicos, apareciam alguns originais - um deles intitulado "O Amor a Portugal":

Versão orquestral de "O Amor a Portugal", de Ennio Morricone

O AMOR A PORTUGAL 

O dia há de nascer
Rasgar a escuridão
Fazer o sonho amanhecer
Ao som da canção e então

O amor há de vencer
E a alma libertar
Mil fogos ardem sem se ver
Na luz do nosso olhar
Na luz do nosso olhar

Um dia há de se ouvir
O cântico final
Porque afinal falta cumprir
O amor a Portugal
O amor a Portugal

        Se a música é símbolo de harmonia, Ennio Morricone muito contribuiu para ela(s). RIP.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Mais um dia... para os tricaidecafóbicos ou de outras fobias afins.

          Nova sexta-feira 13, ora pois então.


   Reza a tradição que é dia de azar, conforme já se explicou em apontamentos anteriores. Vários factos, mais ou menos supersticiosos, mais ou menos históricos assim o entendem.
      No Tarot, a carta do arcano maior número treze, é verdade, representa a Morte. Contudo, entendida esta última como fim de um ciclo não significa, definitivamente, o fim de tudo. Simboliza não a perda da vida, mas uma transformação de relevo, uma fase de desprendimento a dar lugar ao renascimento. Como uma forma de libertação (de desapego ao que possa representar a crise, o negativo), é uma "morte" ansiada.
     A imagem de um esqueleto a manejar a foice sobre um campo de pessoas, por mais assustadora que pareça, traz consigo a leitura da passagem, do transitório para uma nova etapa. Em hora de mudança, é tempo de superação.
     Associar isto tudo a uma sexta-feira é razão para, pelo menos, suspirar pela mudança: a do fim de semana que se anuncia. Nem pela parascavedecatriafobia nem pela frigatriscaidecafobia.

    Não sou, de facto, tricaidecafóbico. Sou pela leitura da mudança. Venha ela! Afinal, prefiro uma sexta-feira 13 a qualquer segunda-feira de outro número que seja.

domingo, 24 de novembro de 2019

Pontapés e futebol

         Só se fala do homem pelo grande feito futebolístico.

        Depois de conquistar a taça final dos Libertadores - principal campeonato de futebol da América do Sul, frente à equipa argentina do River Plate -, bem como o campeonato brasileirão, o Flamengo treinado por Jorge Jesus é equipa celebrada; Jesus, treinador endeusado.
      Na carreira ascendente ainda em terras lusas, a qualidade do treino não correspondeu à dos discursos. De tão comentado que foi pelo que dizia (mais propriamente pelos erros de fala cometidos), Jorge Jesus chegou a afirmar "Não sou Eça de Queirós" (como se alguma vez o tivesse de ser, para evitar tanto pontapé na correção da língua). Pelo que proferiu hoje, talvez devesse acrescentar que (também) não é Pedro Nunes ou, na forma alatinada, Petrus Nonius.
        É verdade que chegou ao Brasil, viu e venceu, qual Júlio César, mas não terá sido, seguramente, com cálculos matemáticos (muito menos os associados às medições do nónio):

Jorge Jesus, matematicamente falando

       Afirma-se como o catedrático do futebol. Na língua e na matemática está a precisar de aulas de apoio. Dezassete em dezasseis?! Dezassete mais dez (perdendo ou ganhando, tanto dá) resulta em dezasseis?!... E, portanto,... cerca de treze segundos de Matemática pura e... não percebi!

       Com exemplos destes, sublinham-se as múltiplas inteligências - nem todos temos as mesmas nem estão elas desenvolvidas da mesma forma. Jorge Jesus é grande no treino e na gestão desportiva, mas na língua e no cálculo..., portanto,... estou sem palavras!

quinta-feira, 18 de abril de 2019

De Shakespeare a Mendelssohn

      Tempo de música (alemã) e literatura (inglesa) em português.

      SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO: o título é shakespeariano, o de uma comédia cujo início foi inspirador para um espetáculo que, não sendo teatral, se tornou música (a partir da composição do alemão Felix Mendelsshon), canto e leitura expressiva. Da combinação resultou um concerto de sonho numa noite de primavera, sem enganos, sem equívocos ou erros interpretativos, sem o registo hilariante da “comedy of errors”; antes com a melodiosa harmonia de instrumentos de sopro, cordas e percussão, a enlevar o auditório com as reconhecidas ‘Abertura’ e ‘Marcha Nupcial’, entre outras. Foi ontem, no Coliseu do Porto, em harmonia, em melodia e a convocar essa fronteira entre o sonho ou a ilusão (dos efeitos emotivos nos espectadores) e a realidade (do que foi dado a ver na execução). 
     Numa parceria com o Centro Cul-tural de Belém e a Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissio-nal, o ‘Festival Dias da Música’ veio ao Porto, tendo o espe-táculo decorrido de um grande estágio de orquestra, orien-tado pelo maestro Cesário Costa e aberto a alunos de música de Conservatórios Oficiais, de Escolas Profissionais e de Ensino Particular e Cooperativo de todo o país. Com a orquestra (setenta músicos), cerca de noventa vozes fizeram-se ouvir: as do Coro Lira, do Coro dos Meninos Cantores da Trofa, do Coro da Academia de Música de Espinho e as das solistas Ana Maria Pinto e Patrícia Quinta. 
    No seio de tantas estrelas, a jovem promissora Catarina Farias fez-se ouvir com a penetrante sonoridade do seu oboé. 
     Um casamento feliz a três: canto, execução musical, mais a leitura expressiva de Pedro Penim, como narrador, a evocar alguns segmentos traduzidos (por Maria João da Rocha Afonso e Diana Afonso) desse texto dramático inglês. Ficou, assim, enquadrada a progressão de trechos musicais e cantos com a obra literária dos finais do século XVI, recuperando esse 'drama' no qual Egeu pretende casar a filha Hérmia com Demétrio, o qual, por sua vez, ama Helena (amiga de Hérmia). Apaixonada que é a primeira por Lisandro e sem direito a escolha, segundo as leis de Atenas, é a partir de Hérmia que se revelam os primeiros desconcertos no amor (cruzados nos universos da corte, do bosque e da representação dos populares). Fugidos os amantes para um bosque (reino fantástico onde Titânia, rainha das fadas, também está em conflito com o esposo Oberon, rei dos elfos), há feitiços e peripécias dramáticas, nomeadamente as vivenciadas com os “mechanicals”, a ensaiarem, no bosque, uma peça para o casamento dos duques Teseu e Hipólita. Como “All’s well that ends well”, é o amor que acaba por prevalecer.

'Festival Dias da Música' - foto do Coliseu do Porto

     Tal como no final da obra shakespeariana – quando Oberon apela para a música como indicador de recomposição da harmonia e fim do “jangling” (fim das confusões na intriga dramática) -, também os que foram à cidade invicta encontraram na música uma porta de luz, saindo encantados nessa ilusão ou nesse sonho de que há mais para além de um mundo por vezes demasiado duro de real. Tempo, música, companhia e poesia para a vida.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Pelo andar da carruagem

       Pelo jeito que a coisa vai...

     Expressões sinónimas, por certo; mas com o termo "carruagem" há uma identidade da primeira com este blogue que a segunda expressão não tem. 
      Por mais impressiva que seja a situação, deve ser o resultado de uma visita ao Museu Nacional dos Coches (em Belém), depois de ter visto tanta carruagem, coche, berlinda, coupé, sege, liteira, cadeirinha, vitória, phaeton, landau, clarence, charabã, milords, caleça, carrinha, mala-posta... uma vasta coleção de viaturas hipomóveis usada em cortejos de gala ou eventos sociais relacionados com a arte da cavalaria e jogos equestres.
     Muitos foram os exemplares observados neste novo edifício aberto ao público há cerca de três anos, segundo o projeto arquitetado pelo brasileiro Paulo Mendes da Rocha (prémio Pritzker em 2006) em parceria com o arquiteto português Ricardo Bak Gordon.
      Enquanto a guia explicava, apaixonadamente, as características de cada um dos coches expostos e a evolução ocorrida nos transportes ao longo dos séculos, surgia a indicação do significado original da expressão "Pelo andar da carruagem": à medida que a carruagem se aproximava, os observadores locais deduziam acerca da importância, da posição ou da origem social de quem ia dentro dessa carruagem. Seja pelos materiais de construção seja pela quantidade de cavalos que a puxavam, a carruagem era um indicador de quem nela se transportava (rei, rainha, príncipes, nobre, patriarca,...).

Dos sécs. XVI ao XVIII - coches para todo o gosto (Foto VO)

      O acervo museológico contempla dos coches mais antigos do mundo, como o de Filipe II (III de Espanha) ao fundo da foto, aquando da sua viagem de Madrid para Lisboa, em 1619. A designação do transporte ('kocsi' ou 'koci') está relacionada com a cidade húngara de Kotze, origem da construção dos primeiros modelos, posteriormente exportados para Itália, bem como para todas as cortes europeias.
     O nome do Mâgnimo associa-se a vários modelos aparatosos, um dos quais no primeiro plano da foto supra à direita (Coche da Coroa). Este meio de transporte, embora destinado à realeza e às classes aristocratas, teve os seus exemplares mais faustosos usados em momentos solenes da corte, como casamentos reais, batismos de príncipes, aclamação de novos monarcas, embaixadas ao estrangeiro, deslocação de altos dignitários eclesiásticos, receção de soberanos ou figuras de alto prestígio no estrangeiro. Alguns serviram mesmo para um evento singular.

     Coche dos Oceanos - ao centro da foto, 
ladeado à esquerda pelo Coche do Embaixador 
e à direita pelo Coche da Coroação de Lisboa (Foto VO)

    O Coche dos Oceanos é uma das coqueluches do museu, pela espetacularidade ostentatória e faustosa joanina. Restaurado pela Fundação Ricardo Espírito Santo, é um dos três coches do conjunto de quinze que compunham a embaixada enviada por D. João V ao Papa Clemente XI, em Roma (um pouco à imitação do que D. Manuel I fizera ao Papa Leão X, em 1514). A oito de julho de 1716, D. Rodrigo Anes de Sá e Menezes (Marquês de Fontes) fez a sua entrada pública em Roma, antecedido de um magnífico cortejo que espantou não só a população romana como os reis da Europa, que não se atreveram, nos anos seguintes, a repetir o feito. O próprio D. João V mandou que os três coches, construídos em Itália, viessem de barco para Portugal, de forma a que os olhos reais pudessem confirmar a magnificência dos veículos tão comentada em Roma.

Coche da Mesa ou da Troca das Princesas (Foto VO)

    Também dos tempos joaninos é o Coche da Mesa ou o da célebre troca das princesas, junto à fronteira do Caia, a 19 de Janeiro 1729 (de Portugal saía, para Espanha, a princesa Maria Bárbara de Bragança, filha de D. João V, para casar com o príncipe D. Fernando, futuro rei Fernando VI, de Espanha; chegava a Portugal a princesa Mariana Vitoria, filha de Filipe V, para casar com aquele que viria a ser o nosso rei D. José I) - episódio de que se faz uma narração caricatural no segmento XXII de Memorial do Convento, de José Saramago (MC, 17ª ed., Lisboa, Ed. Caminho):

     «Porém, ainda se encontram famílias felizes. A real de Espanha é uma. A de Portugal é outra. Casam-se filhos daquela com filhos desta, da banda deles vem Mariana Vitória, da banda nossa vai Maria Bárbara, os noivos são o José de cá e o Fernando de lá, respetivamente, como se costuma dizer. Não são combinações do pé para a mão, os casamentos estão feitos desde mil setecentos e vinte e cinco. Maria Bárbara tem dezassete anos feitos, cara de lua cheia, bexigosa como foi dito, mas é uma boa rapariga, musical a quanto pode chegar uma princesa, pelo menos não caíram em cesto roto as lições do seu mestre Domenico Scarlatti, que com ela seguirá para Madrid, donde não volta. […] virá Mariana Vitória, uma garotinha de onze anos, que, apesar de pouca idade, já tem uma dolorosa experiência de vida, basta dizer que esteve para casar-se com Luís XV de França e foi por ele repudiada, palavra que parece excessiva e nada diplomática, mas que outra se há de usar se uma criança, na tenra idade de quatro anos, vai viver para a corte francesa a fim de se educar para o dito casamento, e dois anos depois é mandada para casa porque de repente deu a febre ao prometido, ou aos interesses de quem o orientava, de ter rapidamente herdeiros a coroa, necessidade que a pobrezinha, por inabilitação fisiológica, não poderia satisfazer antes de decorridos uns oito anos. Veio devolvida a coitada, magrinha e delicada, um pisco a comer, com o mal inventado pretexto de visitar os pais, rei Filipe, rainha Isabel, e pronto, ficou em Madrid, à espera de que lhe arranjassem noivo menos apressado, calhou ser o nosso José, agora com quinze anos, a fazer.» (pág. 297)
...


     «... quando D. João V atravessou o rio, no dia oito de Janeiro, para principiar a sua grande viagem, havia em Aldegalega, à sua espera, para cima de duzentas viaturas, entre estufas, caleças, seges de campo, galeras, carromatos, andas, uns que tinham vindo de Paris, outros feitos de propósito em Lisboa para a ocasião, sem falar nos coches reais, com as douradas frescas, os veludos renovados, as borlas e sanefas penteadas. Da real cavalariça, só em bestas, eram quase duas mil, não se incluindo nelas os cavalos da guarda do corpo e os dos regimentos da tropa que acompanham o cortejo. (...) João Elvas só vê cavalos, gente e viaturas, não sabe quem está dentro ou quem vai fora, mas a nós não nos custa nada imaginar que ao lado dele se foi sentar um fidalgo caridoso e amigo de bem~fazer, que os há e como esse fidalgo é daqueles que tudo sabem de corte e cargo ouçamo-lo com atenção, Olha, João Elvas, depois do tenente e dos trombetas e atabaleiros que já passaram, (...) vem agora o aposentador da corte com os seus subalternos, é ele quem tem a responsabilidade dos cómodos, aqueles seis a cavalo são correios de gabinete, levam e trazem as informações e as ordens, agora passa a berlinda com os confessores do rei, do príncipe e do infante, (...) depois aparece a berlinda com os moços do guarda-roupa (...) e outra vez não te espantes com essas duas berlindas cheias de clérigos e padres da Companhia de Jesus (...), aí tens a berlinda do estribeiro-mor, as três que vêm atrás são do corregedor da corte e dos fidalgos da casa de el-rei, segue-se a estufa do estribeiro-mor, depois os coches dos camaristas dos infantes, e agora atenção, agora é que começa a valer a pena, estes coches e estufas vazios que passam são os coches e estufas de respeito das reais pessoas, a seguir, a cavalo aparece o estribeiro-mor, enfim, chegou o momento, põe o joelho em terra, João Elvas, que estão passando el-rei e o príncipe D. José, e o infante D. António (...), e agora podes-te levantar, já passaram, já lá vão, iam também seis moços de estribeira, a cavalo, estas quatro estufas, aqui, levam a câmara de sua majestade, depois vem a sege do cirurgião (...), daí para trás é que já não há muito que ver, seis seges de reserva, sete cavalos de mão, a guarda de cavalaria com o seu capitão, e mais vinte e cinco seges que são do barbeiro de el-rei, dos copeiros, dos moços de câmara, dos arquitectos, dos capelães, dos médicos, dos boticários, dos oficiais de secretaria, dos reposteiros, dos alfaiates, das lavadeiras, do cozinheiro-mor, e do menor, e mais e mais, duas galeras que levam o guarda-roupa de el-rei e do príncipe, e, a fechar, vinte e seis cavalos de mão (...)» (pág. 300-303)

...

     «Caía a noite quando as primeiras viaturas da comitiva de D. Maria Ana começaram a entrar em Vendas Novas, mais parecendo um exército em debandada do que um cortejo real. As cavalgaduras, derreadas, mal podiam arrastar as berlindas e os coches, algumas iam-se abaixo das mãos e morriam ali mesmo, presas aos arreios. (...) Foi uma noite de grande desastre. Quisera a rainha seguir para Évora nessa mesma madrugada, mas foi-lhe representado o perigo da empresa, além de virem atrasadas muitas carruagens, o que resultaria em prejuízo da dignidade do cortejo.» (pág. 306-7)

    Depois, com o século XIX, são tantas as variedades de transporte urbano (basta lembrar a diversidade representada nos romances queirosianos, cruzando as ruas lisboetas) que uma ala do museu é praticamente ocupada com os modelos que a aristocracia, os burgueses e classe média mostravam à sociedade. Fico-me pela malaposta (dos inícios do século XIX), a poder dizer que é o transporte público mais remoto, dado o limite de transporte de dezasseis pessoas, entre a primeira e a segunda classes. Ao povo, restava-lhe o tejadilho, junto com as malas do correio (sem cinto de segurança e sem seguro, não obstante as quedas frequentes no trajeto).

     Num quatro rodas, com motor a gasóleo e muitos cavalos, fez-se o regresso a casa em cerca de quatro horas (saber que há pouco mais de um século, sem a hipótese do comboio, a viagem Lisboa-Porto ocupava mais de dia e meio).