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quarta-feira, 9 de julho de 2025

Mostra-me os teus Lusíadas - momento de (re)encontro(s)

      Um evento feito de duas palavras.

    Na verdade, houve muitas mais, mas o Sr. Comissário Nacional para a Comemoração dos 500 anos do nascimento de Camões marcou o seu discurso por duas: "Parabéns" e "Obrigado".
      O agradecimento começou quando, na abertura do evento, reparei na presença de várias gerações no Auditório Maria Ricardo - crianças pequenas, jovens, pais, educadoras, professores, avós -, todos em torno de uma atividade promovida pela Coordenação da Biblioteca do Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira (AEML), em articulação com o Departamento de Línguas e o grupo disciplinar de Português: "Mostra-me os teus Lusíadas" (perdoada, claro, a deturpação do título, a bem de uma oralidade mais fluida, natural, tornada escrita).
    Na senda das atividades  promovidas a propósito do ano quingentésimo do nascimento do épico português, o AEML fecha um ciclo, com a recolha de edições da epopeia quinhentista Os Lusíadas e o propósito de encontrar a mais antiga. Entre vários formatos e edições de diversas datas, não se chegou à original (de 1572); conseguiu-se recuar até ao ano 1870, com uma edição de bolso, não maior do que a palma da mão, surpreendentemente composta de finas e pequenas páginas onde cabiam 1102 estâncias (para 8816 versos) distribuídas por dez cantos. Caso para dizer que "Mostra-me os teus Lusíadas" quase precisava do complemento lupa para a devida leitura.

Bem andei com os meus Os Lusíadas à mostra, com muitas notas minhas (como aluno e professor), 
mas era apenas uma edição do século passado (1978). Havia vários exemplares datados do século XIX!

      O Auditório Maria Ricardo (inicialmente) e a Biblioteca da escola-sede do agrupamento (aquando da divulgação de prémios, generosamente patrocinados pela Porto Editora e pelo Grupo Solverde) foram os locais de (re)encontro, onde se acolheu uma exposição de livros e se recebeu o grupo de convidados e participantes, numa oportunidade para lembrar diferentes gerações de que, para lá dos planos da História de Portugal, da viagem marítima até à Índia e dos episódios mitológicos, há mais um (o quarto) com versos épicos camonianos a sublinhar a universalidade, intemporalidade e a contemporaneidade do pensamento do autor. 

     Biblioteca da EBSML, local da entrega de prémios e da exposição de edições de Os Lusíadas.

    Daí relembrar-se a reflexão final do Canto I, tão ajustada aos tempos modernos e à humilde constatação da fragilidade da condição humana perante a grandiosidade das forças que a dominam:

105 (...)
Oh! Grandes e gravíssimos perigos,
Oh! Caminho de vida nunca certo,
Que, aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!

106 
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

     Daí evocar-se o Canto VII, naquele momento em que Paulo da Gama se prepara para explicar ao Catual o significado dos símbolos da bandeira nacional nas naus: surge o pedido de auxílio do poeta às ninfas (mais uma invocação, para que se cumpra grandioso relato), imediatamente seguido de um lamento por quem tem obra feita e não se vê reconhecido pelo que faz (seja pelo esforço desproporcionado para se fazer notar seja pelas invejas movidas contra quem trabalha):

78 
 (...)                           ... Mas, ó cego,
Eu, que cometo, insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.

     No seio do sentido eufórico e grandioso da epopeia, não deixam de se ler notas críticas, disfóricas de uma época em extensão contínua, quase profética para a atual. No mar da vida, os ventos contrários surgem tão inesperados quanto certos, restando à humanidade remar "em fraco batel" contra marés adversas e provar a sua tenacidade, para a sobrevivência; para a luta por uma sociedade mais humanizad(or)a, justa, menos tomada por jogos de interesse, manipulações, maniqueísmos ou invejas.
     De tudo isto e muito mais trata Camões na sua epopeia, tão diversa, inspirada e experimentada (com "saber de experiência feito").
    Pelo exposto, o AEML mereceu os parabéns: pelas iniciativas levadas a cabo; pelos produtos conseguidos (mais icónicos, mais escritos, mais manuais, mais digitais, mais simbólicos); por ter feito da celebração ação, divulgando e reconhecendo obra; por saber que ainda muito há a partilhar do poeta universal português. Razões, portanto, para mais evocações e comemorações, com as lições intemporais colhidas dos textos, numa leitura atenta, focada num tempo que se (re)visita e, nalguns casos, parece manter-se pela pertinência e atualidade das questões, dos tópicos e dos problemas vividos, transeculares.
  Agradeceu-se, também, a presença amiga e já familiar do Sr. Comissário Nacional, o Professor José Augusto Cardoso Bernardes, ao dar maior dignidade - com o seu estímulo, a sua acessibilidade, douta simplicidade e afabilidade no saber e no trato - a um momento de reconhecimento do que se faz bem e em honra de quem deu a ler e a ouvir grandiosa epopeia ao mundo. 
   Gratidão ainda por se ter contado com a música e o canto de membros do Bando do Surunyo (com a voz encantadora de uma ex-aluna e a companhia harmoniosa, simpática e colaborante de uma instrumentista), que mais abrilhantaram a tarde deste dia, numa ambiência memorável, festiva, musical, poética - pelas palavras camonianas, pelas sonoridades criadas, pela animação vivenciada, pela presença de muitos e pelos gestos que engrandecem o ser humano (a partir do exemplo dos grandes, clássicos ou contemporâneos).

    Caminhe-se rumo ao seiscentésimo ano, evocando e reencontrando, a cada dia, mês, ano, a grandiosidade de quem simboliza a língua, a identidade nacional e o sentido universal de mensagem(ns) humanas e humanistas.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Nem com Shakespeare isto lá vai...

  O fundo escuro com o texto a branco fez-me lembrar a comédia Twelfth Night.


   Já que do dramaturgo quinhentista / seiscentista inglês se trata, evoque-se a máxima "There is no darkness but ignorance" (Ato IV, cena II), proferida pelo bobo Feste, reforçando a metáfora da ignorância como escuridão.
     Tudo a propósito de uma série documental que tem vindo a passar na RTP2, sobre a vida e obra de William Shakespeare, na perspetiva de muitos estudiosos, investigadores, atores, especialistas na obra produzida e encenada.
       Logo a abrir o programa televisivo, lê-se:

Genialidade só no autor / escritor. Quanto ao resto,... (Foto VO)

     No melhor pano, a nódoa. Gosto do programa, do tema, do autor, da obra, mas no que toca a ascender, fiquemo-nos pela ASCENSÃO (e não o que aparece grafado). Na escuridão da imagem, a ignorância ortográfica.
       Algum conhecimento etimológico faria luz ortográfica: "ascensus" do latim está para ascenso, tal como "ascensio, onis" está para ascensão. Na família de palavras, a aproximação (orto)gráfica é evidente.

     A verdade é que Shakespeare é um dos maiores da literatura. Ascendeu por certo. Evidentíssima ascensão.

domingo, 8 de junho de 2025

Eruditismos... (credo!)

    ..., já que não se trata de erudição!

    Perdoe-me o leitor por iniciar este apontamento (quase escrevia 'post') com um termo que, não estando dicionarizado, é o que me apetece escrever de momento, para reagir negativamente a algo que uma amiga me endereçou e para me referir à pretensa erudição de alguém que se encontrava a apresentar um livro, junto de um público tão sorridente, seleto e entusiasmado.
     O orador lembrou(-se) de tanta coisa interessante! Contudo, esqueceu-se de distinguir duas palavras bem diferentes na língua: folhear e desfolhar.

Como diria o abade Remédios, "não havia necessidade" 
(vídeo partilhado pela AC, com o devido agradecimento)

     Diz o senhor apresentador que "desfolhava" (por duas vezes, uma delas ainda que involuntária) o livro. E, assim, só por milagre não destruiu o livro! Isto de tirar ou arrancar as folhas dos livros, das revistas ou dos jornais não está com nada, muito menos quando, pelos vistos, se cruzam tantas comparações de qualidade (no âmbito da arquitetura, história, música, culinária). Já a imagem de marca da apresentação não tem salvação possível.
     Foi, portanto, um momento em ato de incultura linguística / lexical, no mínimo.

Siga-se a dica esclarecedora, com imagem, para se aprender melhor.

    Fico na expectativa de que a Livraria Lello não tenha uma baixa significativa no seu acervo bibliográfico, caso haja mais apresentações destas, com livros desfolhados. Protejam-nos! São um bem precioso, pelo saber que transmitem. Ninguém os deve desfolhar. 

   Folheemos os livros. Não há palimpsestos que resistam, nem intertextos ou intratextos, se persistirmos em os desfolhar.

sábado, 31 de maio de 2025

Pediram-me para ler...

       ... e não me fiz rogado.

     Aquando da apresentação de VINTE SONETOS e outros poemas, de Manuel Maria, no Auditório da Biblioteca Municipal de Gondomar, durante a tarde de hoje, li dois dos textos poéticos compilados na obra. Tinham-me pedido um, mas, como ando um insubordinado e insubmisso, decidi abusar e dobrei a parada.
     Contrariei, inclusive, a ordem do título, iniciando pelo único dístico presente na secção (segunda) intitulada "outros poemas". Enquanto leitor de Sophia, relembrei o facto de os poemas mais curtos da nossa poeta apresentarem uma profundidade de pensamento evidente, uma sabedoria que nos toca com as palavras mais singelas - lições de vida traduzidas em cerca de dois a quatro versos. Fica, portanto, provado que a escolha não teve nada a ver com preguiça minha, mas com um capital de leitura que, de uma forma ou outra, se vai cruzando com outras oportunidades trazidas pelo próprio ato de ler.
      Também disso o Manuel Maria é capaz, pelo que, ao folhear o livro, na página 33, encontrei o texto
 
Vídeo e áudio do poema "Há tantas coisas tristes...", de Manuel Maria (maio 2025)

     A seleção reflete, por um lado, a tónica de um sentimento emergente de um mundo que nos vai deixando sinais fortes dos perigos e das ameaças que, longe ou perto, nos colocam em aviso constante e na razão da crescente consciência de que nenhuma guerra dignifica o ser humano; por outro lado, assume uma estratégia, na qual o fingimento recobre uma forma de sobrevivência, enquanto ingrediente necessário à vida e ao ato criativo, fictivo, poético, recuperando Pessoa e a génese criadora de quem "chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente" (como se lê em "Autopsicografia"). A nota de negatividade presente ao longo dos catorze versos decassilábicos, não pela forma, mas pelo conteúdo, é típica de um Manuel Laranjeira, que me persegue (n)a vida e que, na polaridade negativa, não deixa de a representar como húmus a alimentar e a valorizar o seu contrário, num caminho de idealização a fazer, a perseguir, a cumprir.
      Por extensão, e numa relação intratextual com a obra hoje dada a ler (desta feita com a parte correspondente aos "Vinte Sonetos"), reencontro novas e coincidentes dissonâncias, em versos a espelhar um sujeito poético atormentado, revoltado, caraterizado por uma disforia exógena a dominá-lo endogenamente (pág. 27):

Poema "Ingratidão" de Manuel Maria (vídeo e áudio por Vítor Oliveira)

      Eis as palavras, os versos de um sujeito poético que o Manuel Maria compôs à imagem e semelhança de um estado de espírito que vive instantes, que tem momentos feitos de opostos complementares, que busca identidades e que encontra palavras num exercício de escrita dominador: ao mesmo tempo "(a minha) cruz" e também "a luz". Na dualidade da dor rimada com amor, resulta uma tensão declarada na expressão poética, visível também ora na forma perfeita e convencionada do soneto italianizante ora na liberdade versificatória moderna (ambas usadas na publicação hoje publicitada), orientadas para Amor - Tempo - Arte. 

Obra poética de Manuel Maria, dedicada "A todos os que, na leitura e na escrita, se sentem com alma de poeta".

    Estas são as linhas com que, acronimicamente, o sujeito poético (também o poeta,... também o Manel) se ATA(m): na multiconfiguração e plurivalência do Amor; na inexorável, mas profícua passagem do Tempo; na exploração e na entrega à Arte (da palavra alada).

      De novo, relembrando Sophia e "Epidauro 62", ecoam versos: "Oiço a voz subir os últimos degraus / Oiço a palavra alada impessoal / Que reconheço por não ser já minha". A apresentação feita por Ana Maria Cardoso e a estratégia feliz da leitura a várias vozes amigas resultaram, sobretudo, em "partilha poética", em leituras e interpretações de muitos, conduzidas por esse fio de Ariadne a permitir o (re)encontro com a escrita e a leitura, num coro pintado de vozes, tons e cores a matizar uma co-autoria polifónica a diferentes tempos.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Literatura a antecipar a realidade

   Quando há dois dias, pelo final da manhã, se viveu o apagão em Portugal e na Espanha, lembrei-me de um livro.

    O incidente foi anunciado como "cyber attack", sinal de guerra, conspiração, falha de satélite, quebra de energia (prolongada) que não deixou de gerar pânico, preocupação, surpresa, consciência de que estamos muito mal habituados nessa garantia de que tudo temos e a todo o tempo nos vemos desarranjados na vida.
   A estabilidade da rede elétrica nacional foi vivida como incerta, e há quem afirme que a Inteligência Artificial (IA) já prenuncia novas ocorrências nos próximos anos. Um verdadeiro pandemónio (depois da pandemia que nos atrofiou)!
    Leitor atento diria que não precisa das "tecnologias sapientes" que tantos idolatram. Não há razão para espanto, quando, já em 1986, Saramago tinha escrito na sua Jangada de Pedra o seguinte (terceira divisão narrativa, na edição de 1986, páginas 37-38):

Excerto do romance do Nobel português, prenunciador do "apagón" peninsular

     O que aconteceu a 28 de abril do ano corrente teve repercussões ibéricas transversais, deixando a península à deriva e com impactos significativos em vários setores (nas casas, nas escolas, nos hospitais, nas empresas, no país, na península). Comunicações, proximidades e imediatismos ficaram comprometidos - certezas, dados adquiridos que deixaram de o ser e revelaram como nos tornamos frágeis e instáveis de um momento para o outro.
     Não se separou a península do resto da Europa, como na obra do Nobel português (por isso, não se pode afirmar que se tenha feito jangada), mas parecia termos recuado a um tempo (parecia ser o da pedra) feito de nada, com tudo à mão, mas por funcionar.
     Qual personagem romanesca, num fim de dia em que chegava a casa sem energia nem luz, revi-me numa passagem ilustrativa de alguns gestos e instantes já vividos, lidos e relembrados:
 
Mais um excerto do romance saramaguiano, prenunciador do "negrum" e da retoma da normalidade

     Quase quarenta anos depois, a página de um livro deixou de ser ficção. Qualquer semelhança com a realidade não foi pura coincidência nem puro exercício de imaginação. Durou mais do que quinze minutos e foi em abril (que dizem ter águas mil e ficou sem luz)! Não espanta que, como epígrafe do romance saramaguiano e citando Alejo Carpentier, se possa ler e dizer "Todo futuro es fabuloso".

sábado, 15 de março de 2025

Fim de 'A Obra ao Negro'

    Aquele momento em que terminas um romance que te acompanhou anos.

   Foram quase dez. Diria que foi um arrastar de tempo para a leitura quanto o foi para a génese do romance (a bem da verdade nem tanto, já que este ocupou mais de trinta anos de escrita - entre 1934 e 1968 -, segundo a autora).
    Por isso, entre as várias reflexões lidas, a que mais me chamou a atenção, pela oportunidade e pela identidade, foi aquela do protagonista Zenão, no final do seu percurso, a assumir, perante o seu mestre, que

  "O homem é uma empresa que tem contra si o tempo, a necessidade, a sorte, a imbecil e sempre crescente primazia do número (...) Os homens hão de matar o homem."

   Nunca nada tão pertinente e coincidente com os tempos hodiernos, apesar de a réplica ser de personagem antiga, feita de traços que, em muito, relembram o pensamento de Erasmo de Roterdão, Leonardo Da Vinci, Paracelso, Copérnico, Giordano Bruno - homens perseguidos que marcaram a Humanidade e que, desde o final da Idade Média até ao Renascimento, sublinharam um sentido de liberdade, de saber e de espírito crítico que só alguns outros, livres, isentos e descomprometidos do poder ou do lugar que ocupam, poderiam compreender.
    Num imaginário de ideal humanista, Zenão, um clérigo tornado filósofo, médico e alquimista, partilha muito do seu conhecimento num percurso de vida errante, com as suas atividades científicas, as suas publicações, bem como o seu espírito crítico a desafiarem o poder da Igreja. Sob nome falso, desenvolve o que o preconceito, o ocultismo e os poderes legitimados do tempo não permitiram. Nas conquistas que faz e no reconhecimento que tem, perde a possibilidade de prosseguir, por efeito colateral de um escândalo, a ponto de ser preso, julgado pela Inquisição e condenado à fogueira.
     Nas três partes da obra romanesca (A vida errante; A vida imóvel; A prisão), Marguerite Yourcenar constrói Zenão (Sebastião Théus) como homem curioso, inteligente; ser que procura, mas não pode apresentar a verdade que domina entre os seus contemporâneos; filósofo que assume a liberdade (se esta existir, quando alguém se encontra natural ou contextualmente condicionado) de decidir o momento e o local do fim (enquanto porta a abrir-se para a inconsciência, afastada dessa consciência marcada por ostracismos, injustiças e perseguições). 

     Segundo tratados alquímicos, A Obra ao Negro é expressão para a fase de separação e dissolução, que era, diz-se, a parte mais difícil da Grande Obra. Com o romance, resulta em título para também indiciar experiências audaciosas, encaradas por muitos como excessivas sobre a própria matéria, as provações do espírito quando o propósito é o de livrar o mundo de rotinas estéreis, de ideias feitas e repetidamente inúteis, com o intuito de se alcançar o bem comum.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Tudo por causa de um saco

    Tempos houve em que reflexão análoga poderia ser sobre os jornais.

    Diários, vespertinos, semanais ou de outra periodicidade, muitos, depois de lidos, acabavam no lixo, mais ou menos imediatamente após reutilização (enquanto papel de embrulho, por exemplo, para não falar do envolvimento do tacho de comida nos piqueniques).
     Hoje, o tópico tem mais a ver com sacos. 
    Sempre que se vai às compras, depois do carrego dos sacos e da arrumação dos bens adquiridos, lá se colocam os ditos num maior, à espera de se lhes dar (novo) futuro.
     Com a festa de ontem, acabei por estar a arrumar sacos: uns para depositar lixo, outros para prendas a dar, alguns para reservar ou mesmo preservar. Entre estes últimos, estão os mais singulares; pode até dizer-se os mais bonitos, para não falar dos mais cultos.
    Sim, há sacos muito cultos. Basta ir à livraria Bertrand, comprar uns livros e... vem logo a vontade de regressar a casa com um saco distinto:

Sem puxar o saco à Bertrand, a venda deste saco é muito apelativa (Foto VO)

     Tenho um alusivo a Pessoa, com versos, pensamentos e imagens que nos fazem admirar a escrita... e o saco.

      Não foi tempo de colocar a viola ao saco, nem de deixar cair o tema em saco roto. Espero não ter enchido o saco ao leitor, mas hoje deu-me para isto - trivialidades -, por ter recebido uma prenda num saco de que gostei.

sábado, 16 de março de 2024

"Todas as palavras de amor"

      Eis o verso a abrir um dos poemas antologiados em As Palavras do Amor.

    Trata-se de uma compilação poética "de novos poetas de Espinho", conforme se lê na capa da publicação promovida pela Câmara Municipal local e a colaboração da 'elefante editores'. É a segunda edição de um concurso de escrita, bastante participado por alunos de instituições escolares do concelho, nomeadamente, o Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira, o Agrupamento de Escolas Manuel Gomes de Almeida e o Externato Oliveira Martins.
    Mais de sessenta jovens escritores, entre os onze e os dezassete anos, expressaram-se acerca de um sentimento universal, a marcar pessoas, tempos, espaços, seres vivos; feito do seu bem e do seu contrário, dos dilemas e das interrogações provocados; das definições a encontrar; de cores e matizes a combinar.
     Em oitenta e cinco páginas, uma resta em branco, para preencher, não com o vazio, mas com o pleno agradecimento a todos os que incentivaram e acompanharam esta aventura de escrita poética, particularmente a dos "novos poetas" que houve oportunidade de aplaudir, numa cerimónia levada a cabo pela Divisão de Educação e Cultura do município. 
      Nas palavras da Sr.ª Presidente da Câmara (e Vereadora da Educação), é uma iniciativa a repetir, dada a evolução, desde o ano letivo passado, no número de versos produzidos, na qualidade da produção e no número de participantes no concurso. Foi bem sublinhada a gratidão aos professores de Português, alguns dos quais assistiram à sessão oficial de lançamento do livro, no auditório António Gaio do Centro Multimeios de Espinho.
     Ouviu-se poesia, logo no início da cerimónia, com os versos iniciais de alguns textos do ano letivo 2022-2023:

Vídeo de apresentação  (exibição na segunda edição do concurso poético)

      Dele e do presente, ficam o orgulho e a satisfação de mais de dois terços dos títulos serem da autoria de estudantes do Agrupamento de Escolas Dr. Manuel Laranjeira (AEML). Prosseguiu-se com poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen, uma conversa entre jurados e a oferta de livros aos agraciados com a publicação dos seus textos. Findou o evento com a fantástica participação musical de alunos da Academia de Música de Espinho.

    Um fim de tarde que juntou pais e mães, alunos, professores, num sentido de comunidade e comunhão que reconhece o contributo de muitos, particularmente daqueles que, nestes momentos, são um motor (muitas vezes invisível) de energia inesgotável. Obrigado aos professores de Português do AEML, que agenciaram o projeto junto dos respetivos aprendentes; particularmente a quem lidera este grupo disciplinar e também merece palavras de amor, ao assumir-se como interlocutora e colaboradora constante com os promotores da atividade (MTM).

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Gaivotas em terra

      Ei-las todas alinhadas ao sabor do vento (que não muda nem para).

    Assim as encontrei, ao sair de casa, plantadas na relva que ladeia o "mamarracho" cá do sítio.

Gaivotas em terra... de Espinho (Foto VO)

     Lá diz o povo: "Gaivotas em terra, tempestade no mar". Sim, este anda muito agitado, altivo, tal como o mundo. Até as aves marinhas procuram repouso à espera de melhores dias. Acrescente-se, contudo, que as expressões idiomáticas e os provérbios são frequentemente redutores e culturalmente relativos. Isto é evidente quando na terra a acalmia é só para alguns e a agitação também não é para todos.
    Não é ocasião para lembrar que "uma gaivota voava, voava" (lá chegará!). É momento para deixar a tempestade amainar. Há tempos assim. Deixá-los passar. Hão de mudar.
     Gostava de ser uma destas gaivotas, em sossego. Ter tempo para reler Gaivotas em Terra, obra que David Mourão-Ferreira produziu na estreia da sua ficção narrativa (1959) e com a qual foi galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa. Há nela uma novela intitulada "E aos costumes disse nada" (adaptada, em 1982, ao cinema como "Sem Sombra de Pecado", por José Fonseca e Costa), com um toque de escrita a lembrar prosa queirosiana, um retrato de época e de um país com muitas "tempestades":

       "E os tempos iam maus: quase toda a Europa estava em guerra, quase todo o mundo estava em guerra. Dos meus camaradas do COM, a maior parte tinha sido destacada para os Açores: alguns outros para lôbregas unidades fronteiriças. Eu - talvez graças a influências do meu pai - fora dos raros privilegiados a ficar numa guarnição de Lisboa." 
in "E aos costumes disse nada", de Gaivotas em Terra, Presença, [1959] 1998

     Neste segmento narrativo convergem várias metáforas: as da família, do quartel, da cidade, da guerra (e da sua linguagem), da terra a conviver com o grotesco, com a máscara, com uma formalidade aparente; a contrastar com a antítese e a duplicidade de comportamentos. Transparece uma sociedade que pouco tem de liberdade, na teia do "ser" e do "parecer", à espera de uma outra "tempestade", mais libertadora e geradora de condições de vida mais dignas.
     Pensamentos e reflexões feitos de uma atualidade que cansa (porque há quem teime em não aprender ou se renda ao que não é dever nem poder).
       
      Não sei se estas são as gaivotas que voam, que aspiram ao alto, à mudança; parece-me que não trazem "o céu de Lisboa". Andam mais perto, ameaçadoras. Talvez em qualquer lugar, a qualquer instante, espalhando excrementos corrosivos que importa limpar de imediato (como a "cegueira", as invejas e outros males do mundo). Com Zeca Afonso, o digo: "não há só gaivotas em terra quando um Homem se põe a pensar".

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Dois anos depois

       Há quem lembre a obra feita.

       Uma grandiosa, outra inspirada e inspiradora, uma terceira que delas foi leitor.
       Correndo pelo Facebook, (re)encontro-me com o tempo e as lembranças:

Um apontamento do "Farol das Letras" no Facebook (com agradecimento ao MM)

       Passaram dois anos (quem diria!) de um dia feliz. Outros houve (os imediatamente anteriores) dedicados à leitura, à escrita e à amizade. Revejo o escrito, que resultou de um desafio enorme; que ousei aceitar e produzir, na senda de uma figura intelectual grandiosa, de uma profecia ansiada e da explicação de um império a realizar; que procurei fazer corresponder à confiança depositada e à consciência de uma responsabilidade assumida na força da fraterna amizade e identidade

       Na base, o pensamento e a obra de uma personalidade; no motivo, a ficção partilhada em espírito de fraternidade; na apresentação, um adjetivo exagerado (diria) para uma reconhecida e vivida realidade. Sem perdição.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Um pensador... com sangue português.

       Fecha-se a leitura de um romance de escrita nacional.

     Abre-se o conhecimento a uma personalidade seiscentista que os séculos teimam em não desvelar a larga escala. É ela a protagonista da narrativa, do início ao fim (da infância à morte).
      Assim termina o romance:

      "As ideias que deixara registadas em papel, as ideias que plantara no espírito de tantos e tantos homens, essas ideias ficariam, floresceriam, perdurariam e espalhar-se-iam por toda a humanidade. Ele morria, mas viveria nelas. Desaparecia como homem, é certo, mas o seu espírito eram as suas ideias, e se essas sobreviviam então ele de certo modo também sobreviveria, e o que era isso senão a verdadeira imortalidade?"

        Palavras para um denominador comum: Bento de Espinosa. 
    Criado na comunidade luso-judaica de Amesterdão, depois de a família ter abandonado Portugal pela ação da Inquisição, Espinosa veio a desenvolver ideias altamente controversas a respeito da autenticidade da Bíblia Hebraica e da natureza do Divino, podendo afirmar-se que foi uma racionalista muito além da dominante cartesiana da época, se não, no limite, um panteísta, ao tomar Deus pela natureza, não os diferenciando: "Se o mundo é regido por leis naturais e tudo o que ele contém é natural, então Deus é natural." (pág. 504)
       Eis um filósofo que José Rodrigues dos Santos nos dá a conhecer em O Segredo de Espinosa, obra ficcional narrativa, publicada neste ano de 2023 e inspirada em acontecimentos verídicos feitos de perseguição, de busca de verdade, de pensamento teológico, político e ético sustentado no racionalismo  do século XVII, com ingredientes que ultrapassaram o modelo de Descartes e cativaram todos os que estavam para lá do convencionalismo do tempo, ainda que de liberalismo conturbado.

        Há um tanto de Espinosa no heterónimo pessoano Caeiro, o "guardador de rebanhos" que joga com o conceito do pensador. Também o primeiro o foi, enquanto um dos grandes filósofos de todos os tempos para o autor e jornalista português. Na opinião deste, três povos podem reclamar Espinosa como um dos seus maiores: o neerlandês, o judeu e o português.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Nem joker nem póquer

       Assistir a concursos televisivos nem sempre se revela um ato muito instrutivo ou esclarecedor.

   Assim o escrevo por, na emissão de hoje do Joker (na RTP1), não ter encontrado informação completamente correta nem título de obra adequado. Nada incomum!
     Sempre aprendi que, na escrita manual, os títulos de livros se sublinham (ou se colocam em itálico, na redação digital); aspas são para títulos de partes / segmentos dos mesmos (por exemplo, subtítulos, episódios, capítulos, entre outros). Consequentemente, Os Maias é um romance queirosiano onde se encontra o "Episódio do Hotel Central" ou, então, Amor de Perdição é uma novela camiliana composta por vinte capítulos, além da "Introdução" e da "Conclusão".
        Pior do que isto é errar o próprio título, conforme se lê na foto seguinte:

Estamos a precisar de ler melhor Os Lusíadas, certo? (Foto VO)

      Camões escreveu Os Lusíadas (com o determinante a integrar o título) e, portanto, não se pode referenciar a epopeia quinhentista como "Lusíadas", mas, sim, "Os Lusíadas", se com aspas se quer sinalizar o título.
     Quando se deveria ter escrito que, em "Os Lusíadas" (sem aglutinação da preposição 'em' e do determinante 'os'), há um deus que se opõe à navegação dos portugueses, já agora registe-se que este último não foi o único. Só o terá sido no universo dos quatro deuses mencionados na questão lançada ou no destaque que, no Canto I, no "Consílio dos Deuses do Olimpo" se dá à voz de um, apesar de o narrador explicitar a dissonância "Quando os Deuses, por ordem respondendo / Na sentença um do outro difiria" (I - 30, vv 2-3). Prova maior da falha do "único" está uns cantos mais adiante: acrescente-se a Baco (protagonista da oponência à causa lusa) o deus Neptuno, Éolo e outras divindades marinhas que, no episódio da "Tempestade" (canto VI), convergem na decisão de dificultar a vida aos nautas, antes de estes cumprirem o objetivo de chegar à Índia.

       Em suma, leia-se melhor a obra épica camoniana e daí decorra, no mínimo, a capacidade de identificar convenientemente o título e a de não tirar conclusões apressadas e inconsistentes.

terça-feira, 28 de março de 2023

Uma dramatização de 'Uma História do João Ratão'

     Depois da apresentação do livro, projetou-se a representação, hoje levada a cabo.

     Leu-se, releu-se e tornou-se mais presente (isto é, representou-se). Assim foi, com a presença das autoras Maria Clara Miguel e Maria Dolores Garrido:

Uma dramatização de uma obra que foi apresentada há dois meses na EB de Guetim.

       Em pouco tempo se fez muito, numa das iniciativas que animaram a Semana da Leitura numa das escolas do AEML.
    Educadoras, professoras e alunos(as) motivados e animados recriaram um texto que, da tradição, ganhou temáticas novas pela escrita das autoras (um ato I com explicação para o João Ratão ser glutão; um ato II conforme a tradição; um ato III que reforça a lição); se concretizou em ato de representação, dando continuidade à expressão artística e dramática, em sede de inovação.

     Nas palavras de uma das autoras, "foi uma manhã muito bonita". E a alegria de todos aconteceu. Isto é escola.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Foi a vez do João Ratão...

      Diz o título que é "Uma história..."

     As autoras dizem que é uma peça de teatro "cheiinha de música e de cor". Eu digo que é um teatriiiiiinho bem sério, pelo que lembra, diverte e ensina.


Publicitação de Uma história do João Ratão, de Maria Clara Miguel e Maria Dolores Garrido

    Primeiro, porque protagoniza o João Ratão e secundariza a Carochinha (o preconceito do género dominante é de problematizar, mesmo quando se apresenta ao contrário); depois, mostra que nem tudo o que parece é (não é de esquecer que o aumentativo 'Ratão' está mais para a fraqueza, como o diminutivo do 'Quinzinho' está mais para o espertalhão, numa contradição de opostos); também procura mostrar o que faz o João Ratão cair no caldeirão, ou melhor, aponta a razão para este ser tão glutão na tradicional versão da história; por fim, recria, positivamente, um final que não era muito feliz e procura espreitar o "happy end" que a "História da Carochinha" não tem.
     Aprende-se que há sempre um motivo para o que se é (personagem ou pessoa); que temos de dar volta às coisas, para que não persista o "...Triste vida a minha!..."; que não tem de haver um final trágico na vida, desde que façamos por isso; que o passado pode ajudar a explicar o presente e evitar um futuro nefasto.
Breve dramatização de "Uma história do João Ratão" (Clube de Teatro da ESG)

     Há um rio e uma ponte a simbolizar passagem, o desvelamento do(s) mistério(s), um modo de ver as coisas que pode mudar - pois nem tudo é estável, imutável, definitivo. E não há como procurar ter outras perceções e perspetivas, para se poder ver o lado bom das coisas.
      Assim se dá a ler Uma história do João Ratão, que tem ainda um Burrico Tonico bem castiço e um Mocho Julião, um frade conviva e conciliador. Porque "quem canta seus males espanta", também há uns grilos cantantes que nos lembram melodias de infância com letras e ritmos muito contemporâneos, para encantamento do leitor e/ou do espectador.
      Ora, foi esta a receção deste pequeno grande livro, aquando da apresentação da obra nas Escolas Básicas de Anta e de Guetim, bem como na Escola Básica Integrada Sá Couto: momentos para almofadinha no chão, conversinha com a Maria Clara Miguel, um videozinho "fixe", um "ganda rap" e até uma leitura expressiva dramatizada, tal como o texto dramático o sugere / potencia.

     Um teatrinho para grandes e pequenos - já que isto de literatura infantil tem muito que se lhe diga!

domingo, 16 de outubro de 2022

Citando Agustina, a propósito de ontem

     Muito se tem falado de Agustina Bessa-Luís e do centenário do seu nascimento.

   Quando em 1995 lia Os Meninos de Ouro, fazia-o na descoberta não da exemplaridade de uma personagem masculina, mas de um menino do Douro cujo percurso servia para traçar não o papel forte que poderia (ou, em certa medida, viria a) ter, mas a limitação, a fraqueza, a raiz arrancada à força da natureza, da terra, do Norte e das grandes famílias rurais nortenhas.
     Publicado em 1983, o foco romanesco começa por estar depositado em José Matildes, um político do período pós-revolucionário, evocando semelhanças com a figura de Francisco Sá-Carneiro; com o sentido messiânico de que a figura se viria a revestir; com uma vida a espelhar dificuldades relacionais e sentimentais. Contudo, é a afirmação do feminino que se virá a assumir no romance, roubando-se ao (anti)herói o protagonismo narrativo. Assim se salienta Rosamaria, figura duriense trocada no casamento, por não ser prefigurada como a grande mulher que se diz estar por trás de um grande homem. A força desta última vinga e assenta num orgulho firmado na seriedade e na luta enquanto razões de existência e de identidade construídas na interioridade humana.
     Este lado matricial da obra de agustina traduz o sublinhar de uma energia, de uma força, de uma fonte, de uma geografia e de uma terra (todas femininas) que veem na Natureza (genesíaca e venusiana) valor maior. Residem aqui a importância e a coerência da epígrafe a abrir a obra: "A Natureza, ela mesma é a doença, e só ela sabe o que é a doença" (Paracelso), recuperando-se com ela o princípio decisivo de toda a cura, encontrada no interior da própria Natureza.
     Neste arrazoado, lembro-me de ter sublinhado, logo nas primeiras páginas, o seguinte:

    "Diferente do que pensam os economistas, uma área produtiva não se destina apenas a ser rentável; sobretudo é uma área onde a vida se condensa e se transmite. Representa uma condi-ção histórica que se reflecte e se repercute, pondo a tónica principal não no lucro, mas sobretudo na circulação da energia, que implica o lucro também, mas que acentua a persuasão da inteligência, do investimento moral."

      Numa espécie de hino à terra e à natureza, finda o romance com uma referência a 

   "... um lírio azul, planta endémica e maravilhosa. (...) Penso nela como sendo um olhar que a terra ergue das suas profundezas e que nos empresta para que os segredos novos nos sejam apontados. Pois é a terra quem nos persuade aos caminhos que ela tem ainda invioláveis. Um lírio azul que parece perdido nas alturas roqueiras é talvez mais do que a Iris boissieri; é um olhar que nos vigia, passe a candura poética."

    Hoje cito-a, porque há pensamentos que, entre os valores ecológicos, telúricos e panteístas (com algum paganismo genesíaco e venusiano) da escrita literária, deviam ser relembrados na vida de todos nós, para que à nobre "raça humana" não falte a "Velha amiga que é a terra" nem a interioridade que nos define - a natureza humana ou da humanidade.

domingo, 7 de agosto de 2022

O elogio (que foi o) de ser filho da mãe

      As palavras têm muito que se lhe diga... e muito para contar.

    Nem tudo o que parece é, por certo. Se o que é tomado por insulto começou por ser elogio, razões houve para que o uso assim o determinasse.
    Conta-o e esclarece-o Sérgio Luís de Carvalho, na base do aconselhamento de um livro (Elogio da Palavra, de Lamberto Maffei) e na explicação que dá a propósito da expressão "filho da mãe":

História do Filho da Mãe (ou de como do elogio se faz insulto)

    Quem diria que, não obstante a condição de bastardia, estaríamos a referenciar relações em que realeza e espiritualidade se cruzaram. Longe desses universos (dos tempos de D. João V e das suas  frequentes paixões freiráticas), atualmente estamos mais para a expressão do insulto, do ofensivo (que uns focam no filho e outros na mãe, para não falar nos que se sentem ofendidos por ela e por si mesmos, alegando ainda assim a defesa apenas da primeira). Um outro claro caso de deriva, variação, evolução na língua, portanto.

      Prova de que as palavras, em particular, e a língua, em geral, são fruto da circunstância de quem a(s) usa, a quem a(s) dirige, quando e onde a(s) utiliza, com a intenção visada. Fale-se de pragmática e, inclusivamente, de pragmática histórica, marcando a variação temporal dos usos.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Uma série para as segundas

       À segunda-feira, na RTP1, garantem-se noites de qualidade televisiva.

      Por algumas semanas (oito), enquanto durar a série O Nome da Rosa, baseada no romance de Umberto Eco (1980), haverá a oportunidade de acompanhar o percurso de Adso (de Melk) e Guilherme (de Baskerville) - personagens que vivenciam uma série de crimes num mosteiro beneditino do norte italiano, em plena época da Baixa Idade Média.
       Se a versão fílmica de Jean Jacques Annaud (1986) projetou a obra a ponto de a tornar um clássico (cruzando romance investigativo com ação detetivesca, fanatismo religioso, luta pelo poder e pelo acesso ao saber, confronto do sagrado com o profano, erotismo, crime e violência em contexto medieval), a série da RAI FICTION (2019) adiciona aos ingredientes anteriores o pormenor, os grandes planos e a qualidade de imagem, a par da brilhante atuação do protagonista (John Turturro) e da realização de Giacomo Battiato.

O 'quarteto' maravilha da série, sem Jorge de Burgos: 
da esquerda para a direita, Bernardo Gui, o ganancioso Abade, William de Baskerville e Adso de Melk

      Tal como na obra de Eco, Adso apresenta-se como narrador, um monge já idoso a rememorar o percurso feito, enquanto jovem, junto do afável, sensato, perspicaz e enigmático mestre Guilherme de Baskerville (John Turturro), um monge franciscano com a argúcia típica dos bons detetives aliada a uma fé cristã humanista. Assim se reconstrói o experienciado na base da memória e do que ela possa recuperar, passado muito tempo:

      "No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto a Deus e o dever do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único evento imodificável do qual se pode confirmar a incontrovertível verdade. Mas 
videmus nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de cara a cara, manifesta-se deixando às vezes rastros (ai, quão ilegíveis) no erro do mundo, tanto que precisamos calculá-lo, soletrando os verdadeiros sinais, mesmo lá onde nos parecem obscuros e quase entremeados por uma vontade totalmente voltada para o mal.
    Chegando ao fim desta minha vida de pecador, enquanto, encanecido, envelheço como o mundo, à espera de perder-me no abismo sem fundo da divindade silenciosa e deserta, participando da luz inconversível das inteligências angélicas, já entrevado com meu corpo pesado e doente nesta cela do caro mosteiro de Melk, apresto-me a deixar sobre este pergaminho o testemunho dos eventos miríficos e formidáveis a que na juventude me foi dado assistir, repetindo verbatim quanto vi e ouvi, sem me aventurar a tirar disso um desenho, como a deixar aos que virão (se o Anticristo não os preceder) signos de signos, para que sobre eles se exercite a prece da decifração.
   Conceda-me o Senhor a graça de ser testemunha transparente dos acontecimentos que tiveram lugar na abadia da qual é bem e piedoso se cale também afinal o nome, ao findar do ano do Senhor de 1327 em que o imperador Ludovico entrou na Itália para reconstituir a dignidade do sagrado império romano, segundo os desígnios do Altíssimo e a confusão do infame usurpador simoníaco e heresiarca que em Avignon lançou vergonha ao santo nome do apóstolo (falo da alma pecadora de Jacques de Cahors, que os ímpios honraram como João XXII).
     Quem sabe, para compreender melhor os acontecimentos em que me achei envolvido, é bom que eu recorde o que andava acontecendo naquele pedaço de século, do modo como o compreendi então, vivendo-o, e do modo como o rememoro agora, enriquecido de outras narrativas que ouvi depois - se é que a minha memória estará em condições de reatar os fios de tantos e tão confusos eventos."

Trailer oficial da série televisiva, realizada por Giacomo Battiato

       Mestre e pupilo veem-se, então, envolvidos numa série de assassinatos, que, para muitos, é obra demoníaca; todavia, e afinal, nada mais é do que fruto de uma mente perversa, que exerce influência no mosteiro (em particular, na sua biblioteca). Na perversão e depravação de quem não olha a meios para atingir fins, a "cegueira" pelo poder não é muito distinta da hipocrisia e da egolatria fundamentalista do inquisidor Bernardo Gui (Rupert Everett), que faz questão de punir qualquer suspeito de heresia (nomeadamente William de Baskerville).

    O nome da Rosa -  título simbólico que, na época medieval, expressava o enorme poder das palavras. Daí a centralidade de uma biblioteca na história e o universo das obras proibidas pela Igreja (nomeadamente, A Comédia, de Aristóteles), que Jorge de Burgos pretende dominar. Uma metáfora e reflexão para o poder e controlo no acesso à informação; para a transição de mundividências (do pensamento obscuro, místico e pretensamente religioso medieval para um raciocínio mais esclarecido, renascentista, humanista); para o tempo que tudo leva, dele restando apenas as palavras, os nomes (porque, da rosa de outrora, fica apenas o nome).

sábado, 1 de janeiro de 2022

Primeiro filme do ano com uma das Brontë

     O ano 2022 entrou e foi tempo para relembrar a obra-prima de Charlotte Brontë.

   Na lista da Netflix figurava o título Jane Eyre - homónimo do romance da literatura romântica inglesa (vitoriana) na linha da narrativa pessoal, isto é, da evolução de uma personagem chamada Jane Eyre. Foi esta a escolha para abrir o ano em modo cinema televisivo.
   Pode mesmo falar-se, a partir da narrativa em que o filme se baseia, de uma busca de "personal fulfillment" no percurso de uma personagem desde os seis aos vinte / trinta anos. A obra assenta na estrutura básica de uma viagem, referenciando cinco espaços perfeitamente distintos da zona de Yorkshire, a corresponder a fases distintas da vida da protagonista: Gateshead (criança), Lowood (menina e adolescente), Thornfield (jovem precetora da protegida de Rochester, Adele Varens), Marsh ou Moor End (mulher em processo de resolução) e Ferndean (mulher assumidamente adulta, autónoma).
    A representação fílmica, numa versão de 2011, reflete esse percurso de afirmação da narrativa em primeira pessoa. Provam-no os grandes planos iniciais focados em Jane, num enredo protagonizado por Mia Wasikowska (Jane Eyre) e Michael Fassbender (Edward Rochester):

Trailer da versão fílmica de 2011, realizada por Cary Joji Fukunaga

    Sem a natural obediência à obra de Brontë (nalguns dos seus pormenores) - conforme à expressão própria de cada uma das peças de arte -, não deixa de se rever na produção fílmica a afirmação do feminino que Jane Eyre simboliza face ao mundo e poder dominador masculinos, de Edward Rochester (que cai do cavalo; se vê impedido de se regenerar, de recompor a sua felicidade com um segundo casamento; acaba cego, depois de ver a sua casa destruída), do Sr. Brocklehurst (encarado na sua frigidez, no diabolismo punitivo, na orientação religiosa do metodismo) ou de St. John (a quem Jane muito quer apenas como irmão e, por isso, o recusa, quando ela é pedida em casamento). Confronta-se razão (o mundo realista do comportamento e das convenções sociais) com o sentimento (o mundo sentimental da consciência passional). Explora-se a dimensão do romance gótico (na apresentação da 'red room', em Gateshead; no aparecimento progressivo de Rochester, no primeiro encontro em Thornfield; a existência de Bertha Mason, no sótão; os incêndios e a destruição de Thornfield). Recria-se a imagética da cor e dos elementos naturais da água, do fogo e do ar.

     Termina o filme com a recuperação da relação Jane-Rochester; a obra, com uma afirmação associada à fé e ao espírito de St. John (a expressão da espiritualidade romântica). Sem o romantismo oitocentista, também é preciso ter fé que este ano venha a ser melhor do que o anterior. No início, entre a fé e a esperança - é o que nos resta  considerar para o caminho a fazer.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Histórias de fadas com verdade(s) para crianças e adultos

     Sentidos pedagógicos de muitos livros para crianças residem na mensagem para todas as idades.

    Tive já oportunidade de referir como a literatura para jovens e crianças é frequentemente associada ao mundo adulto. Senti-o na mensagem lida de As Fadas do Bosque das Cores e das Estórias - um livro que mostra como um mundo dividido às cores é seguramente mais pobre do que o profuso colorido do bosque; como o diferente também atrai e se descobre; como as fadas também são humanas na(s) aprendizagem(ns); como ler e ouvir histórias é oportunidade para criar laços, partilhar, comunicar / comungar valores.

As Fadas do Bosque..., de Dolores Garrido - I 

     Se, no início, está tudo ordeiramente arrumado num conformismo sem aventura, tudo muda, a determinada altura, abrindo-se novas perspetivas - é tempo de (re)aprender. Até porque grupo formado não quer ver ninguém afastado, mesmo quem, às vezes, na cor diferente que tem, se quer afirmar pela individualidade a que tem direito:

As Fadas do Bosque..., de Dolores Garrido - II

   Em cerca de sessenta páginas, valoriza-se a diversidade, a inclusão, a memória, a preservação, as mudanças do(s) e no(s) tempo(s), o sentido da descoberta e da alegria. Lembra-se que tudo o que é bom não apaga o seu reverso:

As Fadas do Bosque..., de Dolores Garrido - III

    Porém, tudo pode dar lugar a um novo ciclo:

As Fadas do Bosque..., de Dolores Garrido - IV

As Fadas do Bosque..., de Dolores Garrido - V

    Tal como as árvores que da raiz e do rebento chegam, por renovação, à alta copa, o significado da amizade ganha contornos mais amplos, múltiplos, diferenciados, caso se queira fazer desta procura, aproximação, vivência plural, em visão e acolhimento multicolor num só arco (de renovadas e diferentes íris) e num só bosque (a que todos pertencemos).

As Fadas do Bosque..., com ilustrações de Cristina Pinto - VI

     Em tempos de tolerância, diversidade e inclusão em constante (re)construção, o arco-íris do "vermelho lá vai violeta" (vermelho-laranja-amarelo-verde-azul-anil-violeta) recria-se num bosque cheio de letras, artes e cores: o castanho-amarelo-azul-verde-vermelho-rosa-roxo das sete fadas, que revelam a magia de aprender com e quais seres humanos.

sábado, 4 de dezembro de 2021

Com um bosque por cima das cabeças...

       Foi, assim, a tarde de hoje, num lugar de arte e onde tudo pode ser possível.

     No Lugar do Desenho, de Júlio Resende, aconteceu a apresentação de As Fadas do Bosque das Cores e das Estórias, de Maria Dolores Garrido, livro com ilustrações de Cristina Pinto, publicado sob a chancela da Editorial Novembro.
      Se a editora se designa Novembro, o certo é que já estamos em dezembro - um mês no qual muita coisa acontece, inclusive um bosque a pairar por cima das nossas cabeças, tal como uma foto do evento o dá a ver:

A mesa da apresentação: representante da Fundação, representante da editora, 
Dolores Garrido, Idalina Ferreira, Cristina Pinto (Foto VO)

     Um projeto de Cristina Pinto para marcar o momento com a fantasia e a magia necessárias ao universo criado no livro de Dolores Garrido: o de um bosque onde a alegria e a felicidade são trazidas pelos meninos; onde a magia se faz sem varinhas de condão; onde as árvores mais bonitas não são de uma só cor; onde a vida é feita da graça e do seu contrário. Na descoberta desse bosque, abrem-se os horizontes do cuidado, da solidariedade, da diversidade, da união que não esquece a liberdade e a individualidade e se constrói a cada reconciliação. 
A obra apresentada como "um dos livros mais bonitos da editora"
      Assim se compõe a paleta de cores da amizade, num livro feito de palavras "bem juntinhas aos desenhos / pra tudo melhor contar". E também há música, e dança, e festa, e voz(es).
      A da avó e da narradora é uma delas. Efeitos de voz e/ou de oralidade são explorados (rimas, ritmo, interjei-ções, entoação, sonori-dades, expressões colo-quiais) no texto escrito, num jogo em que o diálogo entre o ler e o ouvir ler se fundem. Daí também a exploração de efeitos fónico-rítmicos, fono-icónicos e/ou onomatopaicos, exercícios de dicção, matizes semânticos e metafóricos de palavras que começam a ser sugeridos e explorados face a um público que está em fase de aquisição de língua e linguagens, de exploração de um potencial que abre portas ao lúdico, ao sonho, à magia, à imaginação, ao possível que sensibiliza e que traduz o universo dos afetos e das emoções espontâneas e expressivas, tão próprias da literatura infantil ou para as crianças.
      Enquanto literatura que propicia a modelização do mundo, a construção de universos simbólicos e de crenças / valores / comportamentos, as fadinhas de todas as cores estão para este livro como o imaginário e o encantatório estão para qualquer ser humano: tão possível, tão próximo, tão acessível às crianças como aos adultos. Afinal de contas, literatura infantil é, acima de tudo literatura - não fosse o facto de muitos contos ditos infantis terem sido narrativas de adultos e para adultos ou, mesmo, a fronteira da literatura infantil e a adulta se encontrar muito esbatida entre clássicos como As Viagens de Gulliver (Jonathan Swift), Rob Roy (Walter Scott), Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll), Os três Mosqueteiros (Alexandre Dumas), Moby Dick (Herman Melville). Mais do que o público leitor e a sua idade, valem os argumentos de se estar perante uma produção que relativiza a realidade (explorando a dimensão do sonho, do imaginário, do fantástico e do maravilhoso, do possível); que explora uma semiose de pluricódigos (dos mais gráficos aos mais simbólicos, passando pelos diversos sentidos físicos a culminar na construção de um universo ficcional, criativo e sugestivo); que ultrapassa o sentido de expectativas dos seus leitores (buscando o âmbito dos afetos, da sensibilidade e dos valores sociais).
       As ilustrações que acompanham frequentemente a linguagem verbal das obras para crianças são o indicador maior dessa bitextualidade e dessa codificação estética que destacam a universalidade expressiva feita de emoções, de sentidos, de manifestações que a arte conjunta ou interartística oferece. Cristina Pinto em muito contribuiu para a beleza da obra hoje apresentada - pela cor, pelo traço, pelo toque de dramatização, de jogo, de diversão, de infância (re)vivida.
       De tudo isto, numa comunicação tão acessível quanto clara (típica de quem muito sabe e partilha), falou Idalina Ferreira na apresentação deste livro com uma imagem e uma linguagem próprias de criança, mas com uma mensagem tão digna e ajustada à vida de adultos.

O momento 'giroflé, giroflá' (Foto VO)

       De toda esta tarde, fica aquele instante do "Fui ao jardim da Celeste / giroflé, giroflá..." que deixou de ser cantado pela fada verde (ou por quem a representou ao vivo, em diferentes gerações) e passou a ser ouvido na voz de uma criança que, entre o público, se deixou encantar pelo momento e foi replicando a cantilena, na sua vozinha cadenciada. Fez os adultos sorrirem e acreditarem no bom que a vida, apesar das adversidades, (também ou ainda) tem.