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sábado, 22 de março de 2025

Onze anos depois

     Regresso a Cabanas de Viriato e ao palacete, hoje museu, de Aristides Sousa Mendes.

   Já muito escrevi acerca de uma das personalidades mais relevantes da História de Portugal do século XX, internacionalmente reconhecida como um "Justo entre as Nações", mas que ainda muitos teimam ver apagada, na permanência de uma condição que a jornalista Diana Andringa apelidou de "O Cônsul Injustiçado".
   Volto ao tema, pela visita hoje levada a cabo à casa que vi já bem degradada e, presentemente, se dá a ver restaurada, acolhendo o Museu Aristides de Sousa Mendes. Não fossem os sinais interiores (denunciadores da injustiça, da perseguição, da miséria para que foi conduzido), dir-se-ia que, pelo exterior, um libertador do sofrimento e da desgraça está mais do que enaltecido. Não será nunca o caso.
    Guiados por um familiar seu, foram cerca de quarenta participantes a partilhar uma oportunidade de aproximação / identificação com uma causa que devia ser a de todos os homens: generosidade e grandeza de alma ao serviço do salvamento de povos ostracizados, conduzidos, por uns loucos despóticos do tempo, para um fim indigno.

Contrastes que o tempo produziu (montagem fotos VO)

   Muito trabalho foi já desenvolvido para um conhecimento mais efetivo do que representou, no seu tempo, este diplomata português, cujo desejo acabou por ser o de "ficar do lado de Deus contra os homens, em vez de ficar com os homens contra Deus". Num espírito de desobediência consciente, enfrentou e desafiou ordens expressas do ditador António de Oliveira Salazar (contrariando a famigerada Circular 14) e, durante três dias e três noites, concedeu milhares de vistos de entrada em Portugal, para refugiados de várias nacionalidades interessados em fugir de França e de outros países europeus (invadida pelo regime nazi). 
  Pagou caro por isso, e tal é comprovado de várias formas - uma delas, talvez a mais leve, por ter entregado um sobretudo (recentemente readquirido pela fundação para o museu) como forma de pagamento de uma despesa feita para poder alimentar a família.

Uma das salas do museu (primeiro andar) homenageando o Cônsul de Bordéus

   Num mundo que vivia e se digladiava com fortes armas, dizimando seres, Aristides Sousa Mendes empunhou um carimbo, para salvar milhares.

   Perante o vivido no museu e o restauro evidenciado no palacete, falta o passo de divulgação, de requalificação e de revalorização nacional merecidas de um dos seus maiores no período da Segunda Guerra Mundial; alguém que se interrogou sobre a vivência de um tempo tomado de desumanidade e loucura: "que mundo é este em que é preciso ser louco para fazer o que é certo?" Lembrá-lo será sempre pouco para o bem que fez.

domingo, 16 de março de 2025

200 anos de Camilo

     Não é estranha condição humana; é certeza de todos.

    Por barroco que seja o tópico da morte predita a partir do nascimento e da vida (como o sugere a rima do setecentista Francisco de Pina e Melo intitulada "A um berço com feitio de uma tumba"), o tema hoje é o nascimento de um oitocentista, um romântico, ainda que ilustrado com fotos da morte.
    Celebra-se o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, esse escritor que, na intensidade da polémica, do sentimento e da escrita, levou ao limite e ao extremo a decisão do fim.
    Cumprido o desejo da sepultura no cemitério da Lapa, conforme testamentado numa das suas cartas a um amigo (João Freitas Fortuna, que detinha uma tipografia, onde algumas das obras camilianas foram impressas), a evidência dessa intenção satisfeita permanece ao olhar de todos, entre seis gavetões de sepulturas alinhadas num jazigo de família (que não a sua na vida, mas a escolhida na morte):

Um gavetão no cemitério mais romântico nacional tem os restos mortais de Camilo, 
junto de três outros suicidas (Foto VO)

     Em 15 de julho de 1889, na busca da cura para a cegueira, numa das muitas cartas que escritas pela mão de Ana Plácido a Freitas Fortuna, Camilo assume essa vontade:

    «Começo a experimentar uma espécie de affecto posthumo ao meu cadáver. Tão pouco me apreciei na vida, tão pouco cabedal fis da minha saúde, que já agora me quer parecer que este amor ao que nada vale é retribuição devida a esta matéria que me hade sobreviver alguns annos, aviventada pela engrenagem da putrefacção. Deste desejo extraordinario mas não excepcional, resultou dizer-lhe eu, meu querido amigo, quer fallando quer escrevendo, que aspirava fervorosamente ser sepultado no seu jazigo da Lapa. …. vontade que me domina há ano e meio… O meu querido Freitas acceitou com ternura fraternal a offerta do meu cadáver, e d’esta arte, permittindo que eu fizesse parte da sua família extincta, quis continuar alem da vida a tarefa sacratíssima da sua dedicação incomparável.»

      No dia seguinte à morte do autor de Amor de Perdição (1862), a 2 de junho de 1890, o Governador Civil de Braga autoriza que o cadáver seja transportado de S. Miguel de Seide para a Igreja da Lapa, no Porto. Aqui se encontra sepultado no cemitério privativo da Venerável Irmandade, no jazigo de família desse dedicado amigo, a quem por escrito recomendou «que nenhuma força ou consideração o demova de conservar-lhe as cinzas perpectuamente na sua Capella».

      Sirva este apontamento para falar da vida, celebrada, na arte, num cemitério, tomado como museu a céu aberto. Dê-se a prova de como não há Panteão, por merecido que seja, para acolher quem nele não quis permanecer.

sábado, 15 de março de 2025

Fim de 'A Obra ao Negro'

    Aquele momento em que terminas um romance que te acompanhou anos.

   Foram quase dez. Diria que foi um arrastar de tempo para a leitura quanto o foi para a génese do romance (a bem da verdade nem tanto, já que este ocupou mais de trinta anos de escrita - entre 1934 e 1968 -, segundo a autora).
    Por isso, entre as várias reflexões lidas, a que mais me chamou a atenção, pela oportunidade e pela identidade, foi aquela do protagonista Zenão, no final do seu percurso, a assumir, perante o seu mestre, que

  "O homem é uma empresa que tem contra si o tempo, a necessidade, a sorte, a imbecil e sempre crescente primazia do número (...) Os homens hão de matar o homem."

   Nunca nada tão pertinente e coincidente com os tempos hodiernos, apesar de a réplica ser de personagem antiga, feita de traços que, em muito, relembram o pensamento de Erasmo de Roterdão, Leonardo Da Vinci, Paracelso, Copérnico, Giordano Bruno - homens perseguidos que marcaram a Humanidade e que, desde o final da Idade Média até ao Renascimento, sublinharam um sentido de liberdade, de saber e de espírito crítico que só alguns outros, livres, isentos e descomprometidos do poder ou do lugar que ocupam, poderiam compreender.
    Num imaginário de ideal humanista, Zenão, um clérigo tornado filósofo, médico e alquimista, partilha muito do seu conhecimento num percurso de vida errante, com as suas atividades científicas, as suas publicações, bem como o seu espírito crítico a desafiarem o poder da Igreja. Sob nome falso, desenvolve o que o preconceito, o ocultismo e os poderes legitimados do tempo não permitiram. Nas conquistas que faz e no reconhecimento que tem, perde a possibilidade de prosseguir, por efeito colateral de um escândalo, a ponto de ser preso, julgado pela Inquisição e condenado à fogueira.
     Nas três partes da obra romanesca (A vida errante; A vida imóvel; A prisão), Marguerite Yourcenar constrói Zenão (Sebastião Théus) como homem curioso, inteligente; ser que procura, mas não pode apresentar a verdade que domina entre os seus contemporâneos; filósofo que assume a liberdade (se esta existir, quando alguém se encontra natural ou contextualmente condicionado) de decidir o momento e o local do fim (enquanto porta a abrir-se para a inconsciência, afastada dessa consciência marcada por ostracismos, injustiças e perseguições). 

     Segundo tratados alquímicos, A Obra ao Negro é expressão para a fase de separação e dissolução, que era, diz-se, a parte mais difícil da Grande Obra. Com o romance, resulta em título para também indiciar experiências audaciosas, encaradas por muitos como excessivas sobre a própria matéria, as provações do espírito quando o propósito é o de livrar o mundo de rotinas estéreis, de ideias feitas e repetidamente inúteis, com o intuito de se alcançar o bem comum.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Ainda Camões, pelos 500 anos

      A propósito de uma das pérolas televisivas que ainda se encontra na RTP3: Visita Guiada.

      Refiro-me ao programa de Paula Moura Pinheiro (temporada 14, episódio 14), que se debruçou sobre a coleção do último rei português (D. Manuel II), dedicada à obra camoniana e depositada em Vila Viçosa. Caso para dizer, Portugal herdou uma obra do desventurado rei, que se viu exilado da pátria com a deposição da monarquia e a implantação do regime republicano.
      A morte precoce do monarca em 1932 (42 anos) não permitiu concluir o projeto de estudo e pesquisa dos textos de Camões, numa linha de recolha das edições diversas de Os Lusíadas e das Rimas, ao longo dos séculos. Se nos finais do século XIX haviam sido inúmeras e grandiosas as celebrações nacionais d' "O Poeta" (na continuidade de uma consagração que já vinha do século XVI), o vigésimo não o seria menos na contínua afirmação de um escritor que se tornou símbolo de pátria, de língua, de cultura, de lusofonia (assim o prefigura o feriado do 10 de junho).
    Num apontamento do programa televisivo, a Professora Doutora Isabel Almeida partilhou com a apresentadora o facto de não se conhecer um manuscrito, a caligrafia, uma assinatura de Camões. O estádio de formação da escrita autógrafa é um mistério no que ao príncipe dos poetas português diz respeito. Daí a questão da importância da fixação de texto, do confronto das versões múltiplas com que a literatura tem vindo a trabalhar; daí a diversidade editorial que enriquece e se multiplica na difusão e divulgação poéticas; daí a própria dificuldade de ter certezas sobre o que o poeta escreveu, numa dispersão que se compagina ora com a tradição oral ora com a da cópia manuscrita (não assinada) em coletâneas.
    Investigações diversas apontam para a atribuição indevida de alguns sonetos ao nosso poeta universal. "A fermosura desta fresca serra" é um dos exemplos, com alguns estudiosos a assumirem uma autoria distinta: a do poeta D. Manuel de Portugal, contemporâneo de Camões.

Um poeta sem boca, pelo que (não) cantou?! Melhor sorte tivera!
(moeda comemorativa dos 500 anos de Camões, por José Aurélio)
A fermosura desta fresca serra,
e a sombra dos verdes castanheiros,
o manso caminhar destes ribeiros,
donde toda a tristeza se desterra;

o rouco som do mar, a estranha terra,
o esconder do sol pelos outeiros,
o recolher dos gados derradeiros,
das nuvens pelo ar a branda guerra;

enfim, tudo o que a rara natureza
com tanta variedade nos oferece,
me está (se não te vejo) magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
sem ti, perpetuamente estou passando
nas mores alegrias, mor tristeza.

    Sempre questionei muita coisa acerca deste soneto, nomeadamente a sua inserção em linhas de leitura que o perspetivam no seio dos poemas que representam a figura da mulher amada e da sua presença / ausência como condição para a inspiração do poeta. O anafórico final "Sem ti", frequentemente apontado como tópico de ausência da mulher amada, sempre entendi como mais coincidente com a leitura da ausência da pátria - desse "locus" personificado e reconfigurado em tantas referências de elementos naturais, ambientais (que, distantes / ausentes, têm seus efeitos adversos no eu lírico) - do que a de qualquer figura feminina que pudesse ser mais ou menos inspiradora. Agora, o soneto não ser de Camões é apontamento forte, para um texto que o próprio escritor teve como razão maior para ser poeta; para versos tradutores de uma necessidade que a ausência não permite.

      Estudos de Leodegário Azevedo Filho reconhecem, num crivo de critérios filológicos muito rigoroso, a redução substancial de textos produzidos por Luís de Camões (em número inferior a cem poemas). E se "Amor é fogo que arde sem se ver" for mais um a não figurar entre eles? Talvez não seja grande o mal, pensando que a lírica quinhentista fez conviver grandes poetas que se confundiram, espelharam, citaram, imitaram nos modelos (intertextuais) que adotaram.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Patrono à mesa

     Um jantar natalício com a presença de Laranjeira.

    As mesas estavam primorosamente decoradas, à espera dos convivas. Há cinquenta anos estava um edifício em construção, ainda com a designação de "Liceu Nacional de Espinho"; hoje, num edifício requalificado entre 2008-2011, há um patrono a marcar presença na Escola Básica e Secundária Dr. Manuel Laranjeira:

Laranjeira no Natal de 2024 do AEML (composição fotográfica VO)

     Rumo aos 50 anos de um tempo e de um espaço a celebrar (mais as pessoas que os viveram), o aroma do fruto (laranja) vem compor o paladar de um licor que tem na árvore (laranjeira) origem, estendendo-se, por jogo evocativo, ao patrono (Laranjeira). Da natureza ao nome próprio, há como que uma transmutação alquímica, sugerindo a criação do elixir da vida ou da imortalidade. Laranjeira, por lembrança e evocação, ganha vida eterna ou prolongada.
     Se, na língua portuguesa, "alquimia" vem do latim alkimia, por sua vez proveniente do árabe al-kimiya (significando "a química"), não será de esquecer que, no grego antigo, khemeía significava "fusão de líquidos".

     Nada como ver no licor de laranja o adocicado sabor que Laranjeira, na vida, não deixou de acidular. 

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Dia Nacional da Cultura Científica

         Poucos minutos, mas para minha memória futura.

       Uma turma de 10º ano, uma lição de Físico-Química A e o motivo do Diretor na sala de aula: um cartaz assinado que havia motivado dois dedos de conversa sobre Rómulo de Carvalho e o Dia Nacional da Cultura Científica, mais uns poemas que importava partilhar. O convite "Queres vir à aula, amanhã?" foi imediatamente aceite.

Saberes que cruzam letras, planetas, forças e número em abraço

        Há 117 anos, nascia aquele que viria a ser professor de físico-química do ensino secundário no Liceu Pedro Nunes, Liceu D. João III (Coimbra) e no Liceu Camões; pedagogo, investigador da história da ciência em Portugal... e poeta, sob o pseudónimo de António Gedeão. Há 25 anos celebra-se o "Dia", inspirado neste professor e divulgador de ciência. Também escritor literário. Razões mais do que suficientes para o homenagear. "Pedra Filosofal", "Lição da Água", "Lágrima de Preta" são das mais reconhecidas produções poéticas.
         Li "Impressão digital".
      A propósito dos "olhos", lembrei Camões e "Se Helena apartar / do campo seus olhos / nascerão abrolhos" - os efeitos do olhar de Helena na natureza são transformadores (sejam olhos verdes da "cor do limão" sejam de outra cor, mas "olhos do meu coração"). Os olhos de Gedeão são outros. Mais próximos dos contemporâneos, por certo, com abordagem e orientação temática bem distintas, sublinhando e definindo o que nos singulariza, o que nos faz ser diferentes, tal como uma "impressão digital".
      O tema da relativização do que se vê, da perceção das coisas, do copo meio cheio / meio vazio, da visão otimista em confronto com a pessimista são lições para a vida, para o crescimento do entendimento do universo. É / são saber(es) que o texto / poema dá, vindo(s) de alguém que se fez Homem da Ciência e das Letras, mostrando que a fronteira entre conhecimentos não faz sentido.
António Gedeão, no Parque dos Poetas (Oeiras)
     Ficou o convite para se deslocarem a Oeiras, ao Parque dos Poetas, e verificarem como uma estátua em honra do poeta António Gedeão não desdiz o físico Rómulo de Carvalho, mais os seus tubos de ensaio. Com física ou química, há lugar para a poesia, nas palavras que se atraem, noutras que se afastam - forças que a física designa de atração e de repulsa. Também há flores e escolhos (que rimam com os camonianos abrolhos); pedras pisadas, gnomos e fadas; moinhos e gigantes.

        Um dia que se marcou pela diferença, nas ciências que se complementam, por cruzarem saberes e darem outro sabor - um halo diferente na vida. Obrigado, AMT.

terça-feira, 26 de abril de 2022

Gestos simples para grandes causas

       Assim se evocam e marcam os dias.

      Ontem celebrou-se o 25 de abril. O dia seguinte, o de hoje, começou com poesia à porta: Zeca Afonso, Jorge de Sena.

Da poesia ao canto, afixados à porta (Foto VO)

      Prosseguiu-se, à hora de almoço, com a voz: ouvir poesia dita a um público atento, partilhando os valores da liberdade que se vivenciam e testemunham na causa pública que (n)os une. Foi o momento de Sophia, de Torga e de quem fez do verso base de expressão para um ideal lutado, conquistado e reafirmado.
     No regresso ao trabalho, na minha secretária, dois cravos vermelhos e uma pequena nota, em caligrafia cuidada, fizeram-me sorrir, libertaram-me de algumas tensões do dia; fizeram acreditar que vale a pena acreditar, apostar e correr o caminho da esperança e pelo bem que se traz à vida.
   Impõe-se agradecer a quem fez do 26 de abril continuação da celebração: ao 11º E pela presença, pela poesia e pela voz; à Joana Rocha e à Leonor Oliveira, do 11º L, pela procura, pela oferta e pelas flores verdes rubras; às professoras que fizeram recordar a liberdade de ontem como herança de hoje (a todo o tempo retomado), pelo exemplo e pelo empenho testemunhados. 
    Assim se revê e se (re)vê História e histórias que importa ter presente(s).

       Abril é para todos os dias que o Homem queira ver celebrado com as cores da liberdade.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Espírito novo (apesar do cinza)

     Há dias para tudo, nomeadamente para recriar versos (que já tiveram reversos).

     Com maior ou menor esperança, as palavras espelham um estado de espírito que, ora fechado, ora aberto, nem sempre traduz o que é celebrado. Valha o dia de sol claro, limpo, a convidar à festa da liberdade, da vida e, de novo, com esperança.

            ACINZENTADA MEMÓRIA

Monumento ao 25 de abril, Espinho (Foto VO)
Do cravo em pedra,
sem a rubra cor,
apagou-se o sangue,
secou o vigor?

Da revolução,
a memória fica,
lembrando a canção...,
o povo que grita...,

a arma a dar flor...
Renovado o tempo,
nascida a manhã,
no sopro do vento,

a sã liberdade
vive-se na cidade.

Em dia cinzento,
vejo um monumento:
voam as gaivotas
só no pensamento.

No duro betão,
há ondas de mar
plantadas no chão,
subidas ao ar.

Qual fénix em cinzas,
Esperança, vinhas...
Fica. A vida alindas.

     Hoje, mais do que a liberdade do dia, importa a esperança de sempre.

     Chamo-a, porque a caixa de Pandora não pode manter-se fechada.

domingo, 17 de abril de 2022

Um grande ovo de Páscoa cracoviano

       Sucedem-se as Páscoas, ano após ano, e os ovos.

      Entre as várias explicações para o ovo e para o coelhinho da Páscoa (que não "foi com o Pai Natal, no comboio ao circo"), a multiplicidade dá para todos os gostos - os mais religiosos, tradicionais, simbólicos, culturais, regionais e até os mais fantasiosos.
       Encontrei uns bem artísticos em Cracóvia, no conhecido Mercado de Páscoa, realizado anualmente na praça central da Cidade Velha, Rynek Główny (praça principal de Kraków). Em cerca de dez dias, as festividades da Semana Santa concretizam-se na exposição de ovos gigantes decorados e na confeção das tradicionais "palms" artesanais de flores e plantas secas, para serem abençoadas no Domingo de Ramos - informações colhidas e vividas em memórias de viagens bem passadas. O colorido da praça é festivo. Os ovos, dispostos em vários pontos da praça, são atração visual assegurada, numa composição e num enfeite de versatilidade cromática notáveis.

Um ovo cracoviano à altura de um ser humano (Foto VO)

      A presença do ovo, desde a Antiguidade persa, traz consigo a perceção do símbolo do renascimento. De regiões como a Ucrânia (muito antes da chegada do cristianismo) ou a China, vem a leitura do alimento e da origem da vida - e, por extensão, da criação do mundo - até à comemoração do fim do inverno. Daí o entendimento do "Páscoa" como "passagem".
       Dos ovos de galinha (cozidos) pintados à mão (que persistem) aos de chocolate (mais recentes e comerciais), muitos séculos aprimoraram o que pôde ter sido a celebração de uma passagem mais familiar e doméstica até se chegar aos requintes da doçaria e pastelaria francesas, sem esquecer que Eduardo I de Inglaterra banhava ovos em ouro para presentear os seus súbditos favoritos - uma espécie de inspiração para o que Peter Carl Fabergé viria a produzir com os valiosíssimos Ovos Fabergé.
      Numa perspetiva mais literária, sustentada no que o escrito e um trabalho humanista permite ver, dir-se-ia que a origem panteísta dos credos é aquela que se funda e remete para um passado quando podiam ser vistos, nos campos, em época primaveril, muitos coelhos e lebres. Um mito popular referenciado pelo alemão Georg Franck von Franckenau, no século XVII (cerca de 1670), na obra Disputatione Ordinaria Disquirens de Ovis Paschalibus, ganha dimensão criativa e literária ao ser traduzido, na escrita, pela figura de uma Lebre de Páscoa, a trazer prendas para os mais novos que melhor se comportaram. Da Alemanha para o Reino Unido e daqui para os Estados Unidos, dissemina-se um universo entendível à libertação das agruras do inverno, à passagem e aos ritos primaveris, numa acomodação ética e moral conjugada com a ressurreição da natureza. A isto mesmo o cristianismo se havia já ajustado, numa visão libertadora e configuradora de outras passagens (histórico-filosóficas, éticas e religiosas).

       E com mais esta curiosidade, passemos a um novo ciclo: o da primavera que chegou e prepara a vinda do verão. Pelo menos, com a mudança da hora, os dias parecem mais alegres e luminosos (ou luminosos e alegres). Por ora, uma boa Páscoa para todos.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Leonardo

      Começou bem o ano televisivo, com uma série sobre um grande para a Humanidade!

    O título disse tudo: "Leonardo". Sim, o que nasceu em Florença, em Vinci (comuna italiana, na Toscana). Daí, Leonardo Da Vinci. 

Leonardo (centro), Caterina (esquerda) e o investigador da polícia (direita) - imagem representativa da série

    Em duas semanas foi exibida, na RTP1, uma série datada de 2021, com realização em países europeus como a Itália, o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Espanha, bem como nos Estados Unidos da América. Enquanto figura das mais importantes no Alto Renascimento (nas áreas das artes e das ciências), Da Vinci foi apresentado com algumas fragilidades e pontos críticos no seu percurso biográfico; foram identificadas as suas influências, as suas invenções, sem esquecer o relevo de muitas das suas obras-primas. Encarado como o próprio arquétipo do Homem do Renascimento, foi retratado como polímata, dotado de talentos diversos e obcecado pela perfeição.

Encontro pessoal com a estátua de Leonardo da Vinci, em Milão

      Na representação desta figura, o ator Aidan Turner deu corpo a um protagonista histórico, numa intriga criada por Frank Spotnitz e Steve Thompson. 

Trailer oficial da série televisiva exibida na RTP1

     O ponto de partida foi localizado na cidade de Milão, em 1506, quando Leonardo da Vinci foi preso por ser falsamente acusado de envenenar Caterina de Cremona. Entre intrigas palacianas e detetivescas, houve toda uma analepse para recuperar a juventude (quando aprendiz no estúdio de Andrea del Verrocchio, onde conheceu Caterina) e a infância (quando abandonado pelo pai); refez-se todo um percurso de vida, pautado por descobertas, desistências, frustrações e conquistas, ganhos e perdas, amores e desamores, rivalidades, enganos e desenganos, com a entrega fiel ao que escolheu como família, paixão e projeto de vida.

   Na contracena, Matilda De Angelis (Caterina), Alessandro Sperduti (Tommaso Marsini, o companheiro de artes) e Carlos Cuevas (o amante Salai) enquadraram a vivência marcante desse artista e cientista, explorando a dimensão emotiva, pintada de várias tonalidades, na genialidade do autor de "Mona Lisa (ou Gioconda)" e "A Última Ceia".

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Uma releitura de 'O Carteiro de Pablo Neruda'

       Termino o mês com um recomeço... de leitura.

     Refiro-me à releitura de uma obra que li há já muitos anos, depois de, muitos mais ainda, ter assistido a um filme que apreciei bastante. O título do filme era homónimo da obra (O Carteiro de Pablo Neruda), mas as semelhanças são poucas no que ao enredo diz respeito. Entre pormenores aqui e além bem distintivos (o nome do protagonista, a localização temporal e espacial, a relação familiar Rosa-Beatriz, o percurso de Pablo Neruda, o contexto político representado), o final do livro nada tem a ver com o do filme realizado por Michael Radford (com mortes bem distintas).
      Uma outra adaptação cinematográfica pode ser encontrada na realização de Antonio Skármeta - uma versão mais fiel à obra e ao contexto chileno representado. Curiosamente, esta versão cinéfila acontece em Portugal (entre a zona da Figueira da Foz e Mira), aquando do exílio do autor por terras lusas. 

Versão fílmica apresentada na Alemanha em 1984 (a partir do roteiro de Antonio Skármeta)

        Desta feita, apoiando-me mais no livro e menos nos filmes, o prólogo chamou-me mais a atenção, destacando-se o anúncio da linha progressiva da intriga (do entusiasmo à profunda depressão), da "geografia erótica do poeta" (e não só), da identificação do herói, do tempo gasto na produção escrita (catorze anos), da fronteira de ficção e de realidade (tanto no contexto político representado como nas personagens construídas). São janelas e portas de entrada na leitura do designado ora romance ora novela, segundo classificação do próprio António Skármeta, escritor agraciado com prémios literários de renome (Prémio Internacional de Literatura Bocaccio e o Prémio Nacional de Literatura do Chile).
         De resto, foi a oportunidade de relembrar o há muito conhecido incipit da obra:

    Em Junho de 1969 dois motivos tão afortunados como triviais levaram Mário Jiménez a mudar de ofício. Primeiro, o seu desamor pelas lides da pesca que o arrancavam da cama antes do amanhecer, e quase sempre quando sonhava com amores audaciosos, protagonizados por heroínas tão abrasadoras como as que via no écran do cinematógrafo de San Antonio. Este talante, juntamente com a sua consequente simpatia pelas constipações, reais ou fingidas, com que se escusava em média todos os dias a preparar os apetrechos do bote do seu pai, permitia-lhe retouçar debaixo das nutridas mantas chilenas, aperfeiçoando os seus oníricos idílios, até o pescador José Jiménez voltar do mar, encharcado e faminto, e ele aliviava o seu complexo de culpa preparando-lhe um almoço de estaladiço pão, sediciosas saladas de tomate com cebola, mais salsa e coentros, e uma dramática aspirina que engolia quando o sarcasmo do seu progenitor o penetrava até aos ossos:
      - Arranja trabalho. - Era a concisa e feroz frase com que o homem concluía um olhar acusador, que podia durar até dez minutos, e que de qualquer modo nunca durou menos de cinco.
       - Sim, pai - respondia Mario, limpando as narinas com a manga do colete.
     Se este motivo foi o trivial, o afortunado foi a posse de uma alegre bicicleta marca Legnano, valendo-se da qual Mário trocava todos os dias o diminuto horizonte da calheta dos pescadores pelo quase mínimo porto de San Antonio, mas que em comparação com o seu casario o impressionava como faustoso e babilónico. A simples contemplação dos cartazes do cinema com mulheres de bocas turbulentas e duríssimos parentes de havanos mastigados entre dentes impecáveis, deixava-o num transe do qual só saía após duas horas de celulóide, para pedalar desconsolado de volta à sua rotina, às vezes sob uma chuva marítima que lhe inspirava épicas constipações.

      Ao longo de O carteiro de Pablo Neruda, cruzam-se os sonhos e as expectativas de Mario Jiménez com a descoberta do poder das palavras, das metáforas e da poesia, para quem delas precisa. Acresce a aprendizagem e a conquista da amizade (com Pablo Neruda) e do amor (por Beatriz). A par destes ingredientes, há também o retrato político da década de 70 no Chile, assim como a recriação da vida política e poética de Pablo Neruda, o Nobel da Literatura no ano de 1971.
    Entre a luta contra um confinamento ou determinismo social a que o protagonista parecia votado e a afirmação do sentido poético da vida, respira-se nas páginas da narrativa a vontade da libertação, que aparece ameaçada no final do livro (com o golpe militar e a revolta política; a deslocação do poeta até à janela para ver o mar agitado; a doença e morte de Neruda; o controlo e a "prisão" de Mario).

    Uma obra que apela ao sentimento, à ousadia e ao humor, à plasticidade da língua (entre os registos mais coloquiais, familiares e os poéticos), à consciência política que (pode) traz(er) o perigo de uma agitação coletiva.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Não perceber patavina!

      Assim o dita a expressão, quando ninguém percebe nada de nada.

     Seja por se tratar da posição mais fácil (dizer que nada se percebe) seja porque a inteligência nem sempre o permite imediatamente (daí não saber 'patavina'), o desconhecimento é zona de entendimento comum na expressão em causa. Também há quem não ligue 'patavina', tanto por não querer saber (nem ter raiva de quem saiba) como por não dar qualquer importância ao que seja.
    Da 'patavina' relacionada com o 'nada', alguns etimólogos defendem tratar-se de termo ligado à cidade romana de Patavium (atualmente conhecida por Pádua). O nosso Santo António (que também dizem ser do mesmo local) terá certamente escapado a esta acusação, mas dizem que os habitantes da zona eram maus falantes do latim. Entre muitos erros e deturpações, a par de algumas marcas de regionalismo, eram eles acusados de 'patavinitas'.
     Tito Lívio (59 a. C - 16 d. C), orador e historiador latino também natural de Pádua, escreveu uma obra que se caracteriza por estar incompleta - História Romana - e que alguns críticos da época acusavam de estar repleta das tais 'patavinitas', dificultando a compreensão generalizada dos textos. Ou seja, nada se percebia da história contada.
    Pelo século XIII, dizia-se também que Pádua era reconhecida por ter uma das mais importantes universidades europeias, particularmente no ensino do Direito, só ombreada pela de Bolonha. Na época medieval, desconhecer a ciência jurídica originária de Pádua – ou seja, "não saber (a escola) patavina" - era o mesmo que não saber nada em tal matéria. Isto é, neste caso, 'patavina(o)', por um lado, não deixava de ser sinónima(o) de tudo; por outro,  nome ou adjetivo relativo aos habitantes de Patavium. Ou seja, juntou-se o 'tudo' ao gentílico, mencionando-se aqueles que eram referência na escola ou no saber jurídicos.
     Nas Bocas do Mundo (2010), editada pela Planeta, é obra de Sérgio Luís de Carvalho que propõe, ainda, que alguns frades de Pádua — os designados 'patavinos' — visitavam Portugal frequentemente, no período medievo. Quando falavam na rua, o povo naturalmente não os percebia - logo, e numa extensão do significado da palavra gentílica, não percebia "patavina". Um raciocínio semelhante associa-se a uma história localizada em tempos mais próximos: por alturas dos séculos XVIII-XIX. Aquando da reforma da Universidade de Coimbra, em 1772, conta-se que o marquês de Pombal convidou Domenico (ou Domingos) Vandelli para vir ensinar Química e História Natural, para Portugal. Natural de Pádua e falando o dialeto da sua cidade (o 'patavi'), o naturalista italiano não se fazia entender junto dos alunos, pelo que estes afirmavam que 'não sabiam patavina' (talvez porque também não ligassem). E, assim, o Diretor do Real Jardim Botânico e lente universitário acaba por, no muito que foi nos tempos de D. Maria I, reduzir-se a (quase) nada.

Imagem do livro setecentista de Domingos Vandelli, oferecido a D. Maria I

      O sentido de nada ou coisa alguma predomina, conforme se faz saber a bom entendedor. De resto, ficam várias histórias. Versões distintas da narrativa contada podem estar na base da expressão em causa; não há verdades absolutas na construção de idiomatismos ou expressões culturalmente marcadas, como são as expressões idiomáticas (a bem de quem não queira ser muito 'patavina').

       Na zona do Minho e das Beiras, há quem entenda o termo como sinónimo de pessoa apalermada, pateta ou idiota. Entre o nada e o insulto, venha o Diabo e escolha!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Diz que são 'ecos'

      Haverá, por certo, razões para tal.

      Isto de ver os heterónimos pessoanos como diferentes do ortónimo só em certa medida faz sentido. De resto, é natural que nos primeiros haja ecos do último e vice-versa (quanto mais não seja, porque Caeiro é assumido por Pessoa como o Mestre).
      A ilustração de João Viegas é sintomática destas relações entre criador e seres criados:

Ilustr. João Viegas, in: Um outro lado de Fernando Pessoa (2016)

    Entre o que um pensa e o(s) outro(s) recupera(m), compõem-se as duas faces de uma moeda: na diferença e na diversidade não deixa de se sentir a unidade.

      As pessoas que o autor tem são tantas que qualquer ser humano nelas se reconhece bem.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

No reino dos perfis falsos

      A propósito de Fernando Pessoa e da sua heteronímia.

      Uma aluna apresentou na aula uma imagem sugestiva:

Um Pessoa múltiplo, sem falsidades e com muita criação / criatividade 
(imagem cedida, com agradecimento, pela CS)

      Digamos que, na criação artística (na lógica da teoria do fingimento artístico), a imagem faz todo o sentido, se pensarmos em nomes como Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares. Entre os heterónimos e o semi-heterónimo, há efetivamente quatro perfis que não tomaria como falsos, a julgar pelas seguintes palavras desse autor-criador modernista: 

" Se me disserem que é absurdo fallar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja." 

in Páginas de Estética e de Teoria Literária

       Na imensa obra que os heterónimos produziram, a realidade construída, por ficcional que seja, é tão verdadeira quanto a das produções do ortónimo. As fronteiras da realidade / ficção são tão ténues quanto o ser criado poder ser mestre do próprio criador (que o diga Pessoa a propósito de Caeiro).
     Depois, há ainda que acrescentar o seguinte: os "perfis falsos" não foram quatro; foram inúmeros, mais de cem. Dos mais femininos (a corcunda Maria José, de "Carta da Corcunda ao Serralheiro") aos mais filosóficos (António Mora), bem como os desassossegados (como Vicente Guedes, um dos co-autores do Livro do Desassossego), não faltam o astrólogo e ocultista Raphael Baldaya ou o imaginário Chevalier de Pas (associado à fase de infância), para além do mais anglófono Alexander Search ou o irmão Charles James Search, entre muitos outros.

      Na cocoterie ou no drama em gente criados, Pessoa foi pessoa(s) suficiente(s) para dar conta da diversidade que todos somos na unidade que damos a ver.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Gramido: a casa branca

       Junto ao Douro, no concelho de Gondomar (Valbom), há uma casa histórica.

     É a Casa Branca de Gramido, edifício solarengo do século XVIII (1789) com características de um neoclássico rural. Nela ocorreu, em 29 de junho de 1847, a assinatura da Convenção de Gramido, que assinalou o final de uma época de conflitos entre liberais e absolutistas, nomeadamente os que se sucederam às sublevações populares e burguesas conhecidas, respetivamente, como Maria da Fonte e Patuleia. 

Casa Branca de Gramido I, após requalificação com o programa POLIS (Foto VO)

Casa Branca de Gramido II, após requalificação com o programa POLIS (Foto VO)

     Ainda durante o século XIX, o espaço foi armazém de cereais, comercializados pelos proprietários «Cazas Brancas» para a atividade da panificação (de Valongo e Avintes, essencialmente). Os grãos de trigo trazidos rio abaixo pelos barcos rabões (de aspeto mais claro do que aqueles que transportavam carvão) eram desembarcados nesse armazém. Por extensão da designação da família proprietária e pela imagem clara dos barcos, popularmente chegou-se à denominação de "Casa Branca".

Convenção de Gramido (1847)

  A projeção e imponência visuais do solar duriense, progressivamente ampliado ao longo do século XIX e restaurado quase século e meio depois, revestem-se da importância histórica de que o local é exemplo, com a afirmação da paz após a Guerra Civil da Patuleia. A Convenção, assinada entre comandantes dos exércitos espanhol e britânico (entrados em Portugal ao abrigo da Quádrupla Aliança), mais os representantes da Junta do Porto e as forças do governo mais conservador, selou a derrota dos setembristas (revoltosos) frente aos cartistas (apoiados pela rainha) numa guerra civil que vinha a assolar o país desde a década de vinte e, mais particularmente, nos anos de 1846-1847. Menos de cinco anos depois, a concórdia viria a sofrer algum revés, com a força governamental apoiada por D. Maria II a retirar aos revoltosos poderes e influências em prol de um maior conservadorismo.

   A recuperação da casa, depois de uma fase de crescente degradação e de um incêndio que praticamente a abandonou a um estado de desleixo e decadência inevitáveis no século XX, ocorre no período 2005-2006, sendo a inauguração da sua requalificação datada de 31 de maio de 2008.

Marginal do Douro, em Gondomar (Foto VO)

      Enquadrada num espaço reabilitado, a Casa Branca de Gramido faz relembrar o romance Uma Família Inglesa ([1867] 1868), de Júlio Dinis, quando Manoel Quintino, guarda-livros da família Whitestone, se refere à zona da marginal como não havendo "outro passeio assim nos arredores do Porto". Desse passeio, em manhã mais soalheira, se faz aqui registo, em tempos mais contemporâneos.

       Na marginal do Douro, a Casa Branca de Gramido vigia o curso do rio.    

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Geologia literária ou literatura geológica

      Quando a natureza se revela inspiradora para as narrativas.

     Pela zona de Lavadores, com o olhar na direção do mar, há uma composição rochosa chamada de "Pedra Moura": um bloco granítico sobre outro afim, com fratura visível provocada pela erosão.

"Pedra Moura" e os pedregulhos de Lavadores (Foto VO)

      Para quem ache ser explicação ou descrição demasiado científica, pode sempre recorrer à lenda - mais uma entre as muitas que povoam o imaginário nacional, com a típica temática da moura castigada (ou não fosse a terra lusa dominantemente cristã).

      Ora, conta a lenda (maneira sempre eficaz de se apagar o narrador e os efeitos que este pudesse introduzir na narrativa) que uma bela e formosa moura (são-no sempre, apesar de punidas, demoníacas e tentadoras) recebeu um grande castigo (lá está - depois dizem que hoje é que somos preconceituosos): trazer pedras das profundezas marítimas até às proximidades do areal (coitada)! Porém, o mar (soberbo) retomava tudo o que lhe pertencia e, com as marés, fazia voltar essas pedras ao fundo marinho (mais fazendo da moura a versão feminina de Sísifo). O esforço persistente da mourisca (afinal, tem alguma virtude) fez que, um dia, de lá trouxesse um penedo, penosa e colossalmente colocado em cima de um outro (uma moura muito hercúlea, portanto). Vencido o mar, lá estão os pedregulhos, desafiando o oceano. É a Pedra Moura de leva...dores ou que lava... dores pelo castigo cumprido (ao que chega o sentido toponímico da história).

     Quem quiser saber dos motivos do castigo, talvez tenha que investigar sobre os tempos do rei Ramiro e do filho, D. Ordonho, mais o rei mouro Alboazer Alboçadam que detinha as terras de Gaia. Há de lá encontrar uma moura formosa (mais vítima do que merecedora de castigo).


segunda-feira, 20 de abril de 2020

A meio dos acontecimentos

     Tudo o que se faça para combater o vazio criado por este Covid-19 é bem-vindo.

     Quem está na frente da batalha ou quem se mantém na retaguarda são tão necessários como os que estão a meio. O efeito de onda, de trás para a frente ou vice-versa, é muitas vezes a fonte da persistência e da resiliência de todos. 
      Ao nível da educação, o contributo das aulas televisivas é um dado significativo para que o vazio não reine; para que haja algum sentido de oportunidade para divulgar, aprofundar, enriquecer quem nada tinha. Neste sentido, o #EstudoEmCasa (RTP Memória) e o #EstudarComAutonomia (RTP Madeira, para o ensino secundário) são apostas válidas.  Não pelo que faz lembrar do passado (a Telescola), mas pelo que pode ser uma iniciativa de resposta ao presente e de desafio para o futuro. É serviço mais do que público, porque centrado na educação, no ensino e nalguma aprendizagem. Talvez não a mais estruturante ou estruturadora, mas sempre aprendizagem... e para todos os que a ela queiram assistir.
     Há aspetos a melhorar, por certo, como em tudo na vida.
     Hoje assisti a uma aula sobre Os Lusíadas (9º ano) - uma variedade de materiais, suportes, a todo o tempo ativada para uma suposta motivação à obra camoniana e, quem sabe, para a exposição de um conjunto de conhecimentos referenciais a aproveitar, num breve momento, para o que venha a ser uma fase posterior de recuperação e sustentação de informação. A rapidez e o imediatismo televisivos não garantem a efetiva aprendizagem de uma só vez. O milagre não é tão grande assim. No processamento que se faça por input não há output linear. E no que diz respeito ao intake, a história é bem outra. A quem defende que o que interessa são as aprendizagens, é bom que se tenha em atenção o nível de aprendizagem a que se está a referir, porque o conceito é bem diverso, cobrindo o que se consegue a curto prazo e o que passa a constituir memória de médio e longo prazo.
    Valha o contributo face ao nada que existia. Melhorias podem seguramente ser feitas e estas só poderão surgir a partir do que se faz. É preciso trabalho e quem está nele tem o mérito de o agenciar.
   Bom seria que o deslumbramento pelos materiais / instrumentos fosse evitado, particularmente quando eles introduzem ruído. Foi o que sucedeu com a aula de Português em questão. Ora um vídeo a tratar a estrutura interna da epopeia lusa, ora um powerpoint com o mesmo e alguma coisa mais e, no entretanto, o primeiro refere-se à narrativa "in media res" enquanto o segundo mostra a versão "in medias res":

Português (9º ano) em #EstudoEmCasa (RTP Memória)

Português (9º ano) em #EstudoEmCasa (RTP Memória)

       Um 's' faz a diferença.
      A técnica que se pretende ilustrar é clássica, vem de Homero, que, nas suas epopeias, escolhia o ponto por onde começar a narrativa: já a meio dos acontecimentos. Horácio, na sua Arte Poética, ao teorizar a abordagem épica das narrativas homéricas, referia-se a "in mediās rēs", ou seja, as "ações que vão a meio". Com isto se defendia a arte de Homero captar a atenção dos leitores. No caso de Camões, a técnica passa pela opção de colocar os marinheiros (e Vasco da Gama) em ação a partir do momento em que são verdadeiramente descobridores no caminho marítimo para a Índia (o percurso do Atlântico já era conhecido e a passagem do Cabo das Tormentas já tinha sido cumprida, por Bartolomeu Dias). No final, a mesma técnica imitada pelo épico português, atento à influência grega (e, mais tarde, à latina de Virgílio).

    "In medias res", portanto, e não "in media res" (simplificando o registo latino, retirando o acento gráfico da vogal longa - ā -, por contraposição à breve - ǎ -, que também tinha um acento identificativo). Uma melhoria, digo eu, para o bem que se fez.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Voou deste mundo? Voa com quem o lê.

         A notícia do dia veio inesperada!

       Já se sabia que se encontrava doente, infetado pelo Covid-19, pouco depois de ter participado, em Portugal, num evento literário. Entre informação e desinformação, deu-se conta do estado crítico, da melhoria, de como regrediu, voltou a melhorar... E, agora, a morte.
      A de qualquer humano tem de ser pesarosa, particularmente a que resulta da luta contra um vírus desconhecido e ameaçador, capaz de afetar subrepticiamente o mundo. A do chileno Luis Sepúlveda (1949-2020) é-o seguramente para quem o leu, lê ou tem vindo a ler.
    Escritor ecologista, que cronicou e contou histórias de quem esteve neste mundo (marginais ou não); de quem existiu enquanto houve luz; de quem alimentou sonhos ansiados em qualquer lugar da terra, do ar ou do mar. Escritor que produziu obra na apologia da vida, da dignidade humana, da justiça social, de exotismos que sublinham sentidos múltiplos de viagem, de amor e de guerra, de utopias e mistérios que se cruzam com o Ser Humano, para não dizer com o Ser Vivo. Escritor que viu na diferença o complemento necessário à união e ao projeto da vontade.
     Qual "gaivota", não pode lançar-se mais em novo voo, apanhado que foi por uma maré, uma "peste negra" que assolou a Humanidade.

Leitura de um excerto de 
História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar (2008)

    Outros, contudo, o farão voar, porque, como bem o escreveu em As Rosas de Atacama (no original, Historias Marginales, 2000), “As feridas dos heróis da literatura são rapidamente curadas com o bálsamo da leitura.”
      A morte será suplantada por qualquer leitor que recupere a sua obra e lhe dê vida.

    Há que voar, pois ainda há gatos que ensinem; há que aceitar que “Em todo o lado se vive e se morre – como diz o tango morir es una costumbre” (Patagónia Express, 1995).

domingo, 12 de abril de 2020

Páscoa com ovos cracovianos

     Em tempos próximos de clausura, vive-se uma Páscoa diferente.

    O confinamento e o distanciamento social não são muito compatíveis com o espírito da celebração. Agradeça-se, porém, a condição salutar em tempos de doença e anseie-se por um novo dia. Será esta, por ora, a "passagem" mais esperada e desejada.
Mais um "Grande Ovo do Coração"
     Ficam os votos da melhor Páscoa possível, com tudo o que de bom se possa lembrar dos bons velhos tempos, inclusive daqueles quando, na infância, a diversão era pintar simples ovos cozidos, com sóis, estrelas, caretas, flores, cores, linhas e pintas tão festivas! Talvez seja, hoje, mais uma atividade para "ocupar" os dias; mais uma oportunidade para manusear o renascimento da vida - afinal, aquilo de que o ovo é símbolo desde épocas bem anteriores ao Cristianismo (a troca de ovos no Equinócio da primavera, a 21 de março, era tradição para marcar o fim do inverno ou o início da primavera, para não mencionar que alguns deles eram enterrados, na crença de que, assim, se assegurava bons cultivos e boas colheitas).
    Chegada a Páscoa cristã, a cultura pagã foi integrada na celebração da Semana Santa, passando o ovo a simbolizar o renascimento, a ressurreição de Cristo.
     Em tempo de ovuladas amêndoas e adoçados ovos,  interessa deixar, de momento e à semelhança do ano passado, um outro ovo cracoviano, trazido da praça principal de Cracóvia (Rynek Główny); um "Grande Ovo do Coração", para, com afeto, colorir estes dias muito cinzentos.

    Uma boa Páscoa para todos e que se cultive a paz, a segurança, a saúde, para se poder colher, de novo, a vida e fazer a passagem para felicidade(s) maior(es).

sábado, 11 de abril de 2020

Nem sempre quem vence é o vencedor.

        Ontem foi tempo de ver Maria, Rainha dos Escoceses.

    Na TV-Cabo, no canal NOS Studios, foi hoje exibido o filme "Mary, Queen of Scots", da realizadora Josie Rourke (2018). Nele se aborda, em paralelo, dois percursos reais: o de Mary Stuart, chegada de França, depois de enviuvar do rei Francis II; o da imperiosa Isabel I de Inglaterra. 
       No meio do poder e do jogo político-religioso dos finais do século XVI, duas mulheres assumem protagonismo carismático, com Mary (Saoirse Ronan) a reivindicar o seu direito ao trono inglês (enquanto bisneta do rei Tudor Henry VII) e Isabel (Margot Robbie) a ver a sua soberania ameaçada. De forma diplomática, entre a admiração pela rival e a afirmação do seu poder, ambas gerem uma autoridade a todo o tempo cuidada até que a segunda acaba por decretar a decapitação da primeira.

Maria, Rainha dos Escoceses (2018) - Trailer oficial legendado

       Mary Stuart acaba por ser um exemplo de vítima dos jogos políticos.
     É na situação de condenada que arranca o filme, até que, por analepse, se dá conta do regresso dela à Escócia. Representante de uma linha católica que se vira algo afastada da corte isabelina, Mary assume, na Escócia, uma postura de tolerância quanto à religião, mas não deixa de enfrentar a resistência crescente de movimentos protestantes, encabeçados por John Knox e por grande parte da nobreza escocesa. Num convívio contínuo com a influência francesa, numa política de casamentos que não é muito favorável à sua imagem pública, a filha de James V da Escócia acaba por ter de abdicar do trono e de se exilar junto da prima Isabel I. Esta última vai ser, a um só tempo, não só protetora da sua maior ameaça como também juíza do destino final. Protege-a, por forma a não acicatar os apoiantes da causa católica (de que a sua predecessora e irmã, Mary Tudor, fora representante maior), evitando uma revolução; acusa-a de traição, ao final de anos de auxílio, por causa de uma pretensa carta (assinada pela rival, mas que muitos assumem ter sido artimanha de conselheiros ingleses), na qual se conspirava e se propunha o termo da vida da rainha inglesa.
     Na luta dos interesses matrimoniais e na consolidação da independência de ação, estas duas rainhas foram, contudo, peças de um jogo maior: o da vida. Se Isabel I consolida o seu poder e afirma uma era de florescimento cultural durante o seu reinado, à hora da morte e sem sucessão declarada (algo que Mary repetidamente tentou obter), é James I, VI da Escócia, fruto do casamento de Mary com Henry Stuart (Lord Darnley, interpretado no filme por Jack Lowden), quem vem legitimamente a tornar-se Rei da Escócia e de Inglaterra. 
     Num circuito de intrigas palacianas, traições, revoltas e conspirações cortesãs, um trono e uma dinastia impõem-se (dos Tudor), mas o futuro rumo da história inglesa será ditado por uma outra linhagem soberana (dos Stuart).

      Um filme, inspirado na obra homónima de John Guy (Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart, de 2014), mostra como os vencedores nem sempre são os que detêm o poder ou os que vencem momentaneamente causas discutíveis.