sábado, 31 de outubro de 2009

Fim do mês junto ao mar

Com o fim de Outubro e...


NOVEMBRO À PORTA

Num céu pardacento,
pairam sobre o horizonte
rasgões de luz abandonados
(entre nuvens carregadas
de um cinza perturbador),
desfocados pelo nevoeiro;

vejo vagas lançadas em altivez
(dominadas por voos rasantes
de gaivotas afoitas, ousadas)
que, no orgulho ferido de um mar
ansioso por ser o céu das aves,
se convertem em ondas de algodão;

reduziu-se o extenso areal
a uma terra de ninguém,
a um manto líquido banhando as rochas
que, no Verão, se desnudavam na praia.

Aproxima-se Neptuno, enfrentando Marte.

Espinho - VO

Iluminuras de Les Très Riches Heures du Duc de Berry
(Outubro - supra - e Novembro - infra -,
no manuscrito iluminado do séc. XV).

     Cumpre-se o tempo, na sua cíclica passagem.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Til não é acento... e pronto!

     Há que ultrapassar equívocos antigos... a bem das diferenças devidas.

    Q: Achas correcto dizer que os advérbios terminados em '-mente' nunca levam acento?! E 'sãmente', 'cristãmente', 'irmãmente', 'vãmente'?

    R: Falando de acento gráfico, digo que tem resposta afirmativa a interrogação inicial. O mesmo não pode ser dito relativamente a acento fónico: os advérbios terminados em '-mente' são considerados graves (por a sílaba mais forte, a tónica, ser a representada por [-men-]), não obstante o respeito pela integridade fónica e acentual da palavra-base.
       De resto, os exemplos apontados na segunda questão evidenciam a presença de um til, que não é um acento gráfico, mas sim um sinal diacrítico a marcar apenas a presença da nasalidade. A tonicidade pode estar, coincidentemente, relacionada com a sílaba que apresenta til (caso das palavras agudas 'são', 'chão', 'irmão', 'papelão', entre outras); porém, não se pode generalizar a presença deste diacrítico com a identificação da sílaba tónica (provam-no vocábulos como 'órfão', 'órgão', 'bênção' - cuja acentuação gráfica distingue claramente a sílaba tónica daquela outra que tem o traço da nasalidade).

    A ilusão da grafia tem destas coisas: considerar acento o que não o é; ver as letras e esquecer os sons que elas representam.

Povo, Pessoa e Fado

   Palavras de um poeta na voz de uma fadista.

   No cenário mítico de Belém, um dos sinais dessa Lisboa (pre)destinada ao "Quinto Império".


Há uma música do Povo,
Nem sei dizer se é um Fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado

Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver

Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração

Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!


                                                              Fernando Pessoa

   O tópico da música, pela harmonia e pela fluidez que sugerem, é para Pessoa um traço do universo idealizado, da inconsciência (pretendida) liberta dos sentidos. É a entrada para o plano do "sou quem seria / se desejar fosse ser". Porém, como ser não é desejar, é existir, a música é ouvida (captada pela dimensão física dos sentidos) e processa a transformação no ser: caminha da existência e consciência limitadoras para a essência, a alma inconsciente e libertadora. O coração, o sentimento, a emoção dão lugar à intelectualização do sentir ("uma emoção estrangeira") - não a emoção vivida, mas uma outra, imaginada, feita do "sentir com a imaginação". E, assim, o fingimento poético se afirma -  na construção de uma alternativa ao real.

   Silêncio: porque se cantou e orquestrou o fado, com voz alada, sobre um terraço virado para o Tejo (e sobre esse "outra coisa ainda. /Essa cousa é que é linda!", como o diria Pessoa em 'Isto').

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Entre inspiração e citação...

      Pediram-me uma ideia no meio de um tema de conversa: Quem sou eu?... Mote nascido para um texto.


EM PESSOA

Quando me encontrarem
não sou eu, sou o que finjo.

Se me virem a chorar
é porque a alegria transbordou.

Encontrem neste meu bem-estar
a máscara para uma dor que teima em ficar.

A rir mascaro o cansaço,
a ausência, a minha entrega ao nada...

Neste palco da vida,
entre os dramas de gente,
a comédia de costumes
e as tragédias dos tempos,
perco a graça pelo enleio mundano.

Busco essa ideia luzente...

Tenho-a do passado que se degastou;
procuro-a no presente que se multiplica;
quero-a com futuro... Avivará?

Quando me encontrarem
- quem sabe? um dia... oxalá!-,
não sou eu... e não minto.

Aos amigos da ESG
Gondomar
VO

       Num dia em que alguns alunos declamaram poemas sobre a adolescência (enquanto mudança, enquanto paixão, enquanto conflito e contradição), ficou a vontade dos versos, nesse jogo pessoano do "Dizem que finjo ou minto".

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"E agora, José?"

     Assim perguntava José Cardoso Pires, aos cinquenta anos (1975), fumando ao espelho nesse Outubro que, ao segundo dia, era data de aniversário.

     Neste quente Outubro (num tempo que "não parece deste tempo"), na imagem de um mês que pôs fim a uma vida que havia já fechado olhos ao mundo, relembrei um dos romances mais fascinantes do século XX (metáfora de um tempo feito de fumos, névoas, desgraças e ambiguidades):


José Cardoso Pires
(óleo de Júlio Pomar)

     "Havia sol a jorros, brilho e ouro, e não a claridade sem vida deste final de outubro a que estamos a assistir e que desgraçadamente nasceu comprometido, irmão do inverno. Lembro-me bem de que na altura pensei na maravilha da luz do outono - a melhor de todas..."
O Delfim, 9ª ed., Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1979 [1968], p. 38
   
     Onze anos depois da morte do autor, revejo-me numa das linhas do seu pensamento: "O pessimismo acaba sempre por funcionar como uma superstição de prudência: prevê o pior para ir acumulando resistências contra o mau, mas sempre na esperança de que o mau nunca venha a acontecer."

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

E a terceira pessoa?

"Um olhar", de Carla Sota, 2005
(pormenor)

     Q: Não há nenhuma hipótese de 'ela(s)/ele(s)' poderem ser consideradas marcas deícticas?

    R: Partindo do 'eu' enquanto coordenada de referência deíctica pessoal, responsável pela produção de um discurso situado num 'aqui' e num 'agora' (deícticos de tempo e de espaço), representa-se também a referência deíctica do destinatário desse discurso: o 'tu' (associado a um 'aí').
    No caso da terceira pessoa, já na teorização proposta por Benveniste ela era designada como 'não-pessoa'; ou seja, aquela que, por princípio, não seria constituinte do próprio acto de produção enunciativa; sê-lo-ia como assunto ou entidade que aparecia representada no discurso.
    Todavia, o que refiro como princípio geral não está livre de algumas reservas, em contextos como o da terceira pessoa usada enquanto estratégia ou máscara referencial para uma segunda. É o que se passa quando, por exemplo, um 'eu' assume algum desagrado face a uma reacção ou atitude de um(a) interlocutor(a) e profere um enunciado do tipo 'Olha-me para ele (a) a dificultar as coisas', o que, no fundo, é sinónimo de 'Estás a dificultar-me as coisas'. É também o que sucede quando o 'ele' / 'ela' compartilha do tempo e do local (próximo) dos interlocutores, podendo ser objecto, compresencialmente, de identificação através de um gesto mostrativo.

Ex.:
- Viste a minha caneta?
- Ali está ela. (apontando para a secretária)

     Com este último exemplo, dir-se-ia que há um valor cumulativo da referência deíctica (mostrativa) com a anafórica (textualmente construída, de modo a evitar uma repetição lexical desnecessária).

    A riqueza de uma língua está também nas estratégias (entre as mais criativas e as funcionalmente adequadas) que ela viabiliza, ultrapassando, no uso, as formatações de qualquer modelo ou norma.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Uma prenda... polémica

    De uma aluna (que não quero dizer 'ex', por achar que muito há a aprender fora de uma sala de aula) e amiga, recebi o que nem sempre se ensina: o sinal de que o gosto da leitura faz lembrar amigos e nos conduz ao encontro dos autores que nos fascinam.

  Assim foi quando hoje, vindo de domingo e de Penafiel, Caim saiu do interior de um blusão e veio parar às minhas mãos, com o autógrafo do próprio Saramago. Entre tudo o que isto já possa representar, não menos importante foi o acto de quem partilhou comigo este momento (além das experiências de leitura e de escrita que já nos haviam aproximado).
    No meio disto, a polémica, a história que se repete desde O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Lembro-me que, à data da publicação deste romance, o comprei e decidi não o ler, para não me deixar influenciar pela "onda" de controvérsia criada. O tempo, contudo, não fez apagar o muito que se disse.
     Da leitura, ficou-me sempre o fascínio que já havia descoberto num escritor que me dera, primeiro, a conhecer O Ano da Morte de Ricardo Reis, ainda nos tempos em que frequentava a faculdade aquando da minha licenciatura - já lá vão mais de vinte anos. Depois cruzei-me com O Memorial do Convento (MC), A Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa, Ensaio Sobre a Cegueira, Todos os Nomes, para além de alguns outros títulos (uns que cheguei a comprar, mas ainda não li; outros que junto deles estão, numa prateleira do escritório, sublinhados, marcados por pensamentos a revisitar). O Nobel foi a consagração pressentida; o discurso proferido nessa altura, outra peça literária ornada de reflexões de vida, da magia das coisas simples e dos sentidos que marcam o Homem.
     Hoje, entre os excessos dos discursos, relembrei A Viagem do Elefante e o efeito criativo da língua nas narrativas; recordei O Memorial do Convento e as palavras de Blimunda: "Bem pouco é uma nuvem do céu comparada com a nuvem que está dentro do homem" (XII - MC); as de um narrador que afirma "quando Deus não sopra, tem o homem de fazer força" (XVI - MC) ou então "Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas" (XXIII - MC); as do padre Bartolomeu Lourenço: "é... a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira" (XI - MC).
    Registo, por fim, a possibilidade de criar uma outra História, uma outra visão da vida, da História e da religião: "Não é verdade que o dia de amanhã só a Deus pertença, que tenham os homens de esperar cada dia para saber o que ele lhes traz, que só a morte seja certa, mas não o dia dela, são ditos de quem não é capaz de entender os sinais que nos vêm do futuro" (XI - MC).

    Porque a História é uma narrativa, porque a Bíblia não deixa de o ser, muito de ficção nelas existe. O Homem assim o quis (e sempre houve alguns que quiseram mais do que outros). Entre o passado e o futuro está sempre a vontade humana de ficcionar, a de criar mundos alternativos para o que esta terá sido e para o que queira vir a ser. Porque é preciso querer ser.

   Com uma palavra de gratidão à VS 
(e à vontade que tem, nomeadamente a de ler toda uma obra 
feita de Homem desperto por e para a vida; 
comandado por e para o sonho).

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Que função sintáctica é esta?!

      Das estranhezas (e das grandezas) que a nossa língua tem... E hoje já ouvi falar de uma outra: a de "levantar voo".

      Q: Na frase "O polícia deu de caras com o ladrão", qual é a função sintáctica de "de caras"? Complemento oblíquo?

    R: Este é um exemplo em que o verbo 'dar' é utilizado como elemento integrante de uma combinação fixa de palavras, ou seja, uma combinação em que os termos constituintes não podem ser comutados. Neste sentido, 'dar de caras com' funciona como uma expressão lexicalizada ou fraseologia com um significado próximo de 'encontrar'. O mesmo sucede, por exemplo, com "dar (o) corpo ao manifesto": a significação resulta da combinação total dos elementos, impossibilitando a utilização de outros termos; não se podendo comutar nenhum dos termos, sob pena de se alterar o sentido total da expressão. 'Dar', neste contexto, afasta-se do seu estatuto de palavra lexical, passando a ser utilizado como verbo fraseológico.
     Perante esta caracterização (a apreensão de sentido como um todo, como um bloco), não há propriamente função sintáctica na expressão solicitada. A sintaxe não considera a estrutura interna destas estruturas fixas, estáveis ou fechadas. Além disso, os tradicionais testes aplicados à identificação das funções sintácticas (questionação, anaforização, por exemplo) não fariam sentido neste caso:

i) * De que deu o polícia com o ladrão?
ii) * O polícia deu disso com o ladrão.

    Seja 'dando de caras' seja 'levantando voo', não há função sintáctica que resista. A preocupação com a etiqueta sairia, desde logo, apartada pela impossibilidade de manipulação por intermédio dos testes. Estes 'deitariam por terra' qualquer tentativa nesse sentido (sim... porque nos complementos oblíquos não cabe tudo o que não entra nas outras funções!).

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Fronteiras entre termos... distintos


    Ainda reacções a uma terminologia que não foi sentida como uma vantagem para o ensino do Português. Questão para perguntar como ainda não foram avaliadas as fragilidades da anterior.

   Q: Numa terminologia que devia evitar duplicação de termos, não seria de optar por uma entrada apenas: radical ou base? Para quê 'base', se já estávamos tão habituados com o velhinho 'radical'?

       R: A questão colocada parte de um pressuposto que nem sempre é válido: o de que 'base' e 'radical' são sinónimos.
         Independentemente de haver uma zona comum entre os dois termos, 'base' é bem mais abrangente do que 'radical', podendo abarcar também as palavras que se constituem como bases derivantes para construir outras palavras derivadas (por afixação sucessiva ou por composição, por exemplo).
         A título de exemplo, 'confianç-' é um radical (simples) ao qual se acrescenta o índice temático '-a' para formar um nome. Neste caso, a base da palavra é um radical. Por sua vez, 'confiança' é já uma palavra, tomada como a base derivante para a derivada 'desconfiança'.
        A nível da composição, por exemplo, um dos termos pode ter como base um radical (o que normalmente acontece com a composição morfológica, que apresenta uma vogal de ligação, de fronteira, entre um radical e a palavra que constitui o segundo termo - ex.: [frut-] [-i-] [cultor]) ou então ambas as bases são palavras (exemplo da composição morfossintáctica - ex.: [peixe] [espada]; [corta] [unhas]).
        Em síntese, uma 'base' pode ser tanto uma palavra como um radical (simples ou complexo, sem os afixos flexionais), razão por que não são termos completamente sinónimos e/ou redundantes.


     Pergunto-me, por ora, se o termo 'base' não será mais pacífico em contextos de práticas mais básicas. Pelo menos, o termo 'radical' implica ter uma estratégia de decomposição mais atenta a uma abordagem analítica e morfológica (mais rigorosa, portanto, e com uma consciência etimológica que muitos falantes já não possuem).



domingo, 11 de outubro de 2009

Poesia do nosso tempo... e do barroco

     A propósito de um comentário a um 'post' que refere o facto de a poesia visual e a concreta manterem relações com o período barroco. E não só!

      Buscar a motivação imagética que possa estar por trás de um poema concreto, na verdade, não está muito distante dos poemas emblemáticos de Alciati (jurista italiano, autor da obra Emblematum liber, publicada em 1531). Estes foram muito conhecidos entre os séculos XVI e XVII e, na generalidade, eram compostos por um mote (provérbio ou outra expressão emblemática), uma ilustração e um texto epigramático.
      Esta tendência iconográfica tem sido, inclusivamente, estudada para cruzar formas artísticas e estéticas que se enriquecem mutuamente - caso da poesia e da pintura. Dir-se-ia mesmo que estas relações encontram-se já sublinhadas na Ars Poetica de Horácio e na máxima "Ut Pictura Poesis" (numa irmandade das artes em torno e/ou em busca de sentidos). Daí o reentendimento de muitos textos poéticos - como os de Camões, por exemplo, à luz dos códigos culturais convencionais bem como das fontes (artísticas) da sua produção lírica.

Pormenor de "A Primavera", de 1478 (Boticelli)

CANÇÃO IV

A instabilidade da Fortuna,
os enganos suaves de Amor cego,
- suaves, se duraram longamente - ,
direi, por dar a vida algum sossego;
que pois a grave pena me importuna,
importune meu canto a toda a gente.

Camões
(excerto inicial)

Aquele dos meus olhos doce lume,
por quem alegre fui, por quem sou triste,
e a vida em largas queixas se consume,
donde está, cego Amor? (...)

Camões
(excerto de "Éclogas")

... aqueles cujos peitos
ornou de altas ciências o destino,
esses foram sujeitos
ao cego e vão Minino,
arrebatados do furor divino.
Camões
(excerto de "Epigramas")

       Nesta circularidade do tempo, neste mito do eterno retorno (tópico mais romântico), nesta cegueira humana de que o amor participa como "frecheiro cego", pauta-se a consciência da finitude da existência e a da vontade de contrariar, de algum modo, a heraclitiana constatação de que um homem não se banha duas vezes na mesma água. Preocupação clássica!

sábado, 10 de outubro de 2009

Sinais de mudança... num dia de esperança

      São jovens e fazem-nos acreditar que vale a pena...

      Foi com este pensamento que acabei a manhã de hoje, já pelo início da tarde, depois de assistir à tomada de posse dos órgãos dirigentes do In Skené - gTag (grupo de Teatro de Amadores de Gondomar) e de participar numa reunião do Conselho Cultural desta jovem associação (dos 8 aos 80 anos), na sala 10 da Escola Secundária de Gondomar.
     Muitas palavras para discursos marcados por sensibilidades, relações e saberes distintos, todos movidos para um ideário comum, com um sentido de acção já feito de provas, de vontades e de sinais de que há condições para mudar.
       Eis um delicado e dedicado sinal dessa acção, partilhado pelos dinamizadores da sessão:


       Dos tempos do TESG aos do In Skené... nessa aproximação e nesse encontro feliz entre o que se foi e o que se quer ser...

      ... porque são precisas as palmas, os risos, as emoções e as vontades que, do exemplo do passado, alimentam a crença no presente e na esperança de um futuro melhor. Bem hajam!

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Sintaxe complicada?

      De regresso aos desafios...

     Q: Já que gosta de desafios, lá vai um: na frase 'Os alunos partiram para Lisboa às oito horas' qual é a função sintáctica de 'às oito horas'? Não é da mesma natureza de 'para Lisboa'?

    R: Diria que se está perante um caso interessante para distinguir complementos de modificadores. Admitindo que a estrutura argumental do verbo 'partir' (enquanto verbo de movimento) requer um esquema do tipo 'Alguém (X) PARTIR para algum sítio (Y)', X e Y serão tomados como os argumentos necessários à construção sintáctica de um sujeito (x: 'Os alunos') a dar lugar a um predicado que contém um complemento oblíquo (y: 'para Lisboa'), além de um modificador. Neste sentido, 'partir' é realizado como verbo transitivo indirecto. Na frase proposta, 'às oito horas' funciona como um modificador que integra o grupo verbal, pois não se constitui como elemento selecionado pelo núcleo verbal.
     Uma forma de diferenciar o estatuto sintáctico destes dois grupos preposicionais ('para Lisboa' e 'às oito horas') é a utilização do teste pergunta / resposta, com a utilização do verbo 'fazer' a substituir um verbo agentivo:

i) O que fizeram os alunos às oito horas?
    Partiram para Lisboa.
ii) * O que fizeram os alunos para Lisboa?
    * Partiram às oito horas.

   A aceitabilidade do par pergunta-resposta em (i) assume a anaforização do verbo 'fazer' relativamente a 'partir para Lisboa' enquanto unidade que o núcleo verbal e o seu complemento representam; a agramaticalidade de (ii) evidencia que o verbo anafórico 'fazer' requer a unidade atrás mencionada, pelo que 'para Lisboa' não pode comparecer na questão (por já estar implicada na anaforização, não admitindo separação face ao núcleo verbal); na pergunta só poderão ocorrer os modificadores - como em (i).
      Consequentemente, a agramaticalidade da resposta em (ii) advém da impossibilidade de o par pergunta-resposta poder ser realizado nos termos propostos, o que, em última instância, daria sempre lugar à questão 'Partiram para onde?' (a motivar a existência de um complemento).

      De novo, sublinha-se a importância da aplicação de testes enquanto instrumentos que possam validar as classificações, as etiquetas que, por si só, de nada valem para a compreensão dos enunciados.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Poesia do nosso tempo

     A sugestão (visual, sonora, sintáctica, semântica) do fluir e do imediatismo voraz do nosso tempo.

    Esta foi a proposta, em 1958, do poeta Ronaldo Azeredo (Rio de Janeiro, 1937-São Paulo, 2006).

in Poesia Concreta, antologia de vários escritores (1962)

     Concreta... tão verdadeira e tão real.

    Tenho de arranjar um antídoto para isto.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A neologia na poesia

      Assim se faz a partilha, em pleno dia de professores.

      Acabadinho de chegar: um...


NEOLOGISMO

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
(Manuel Bandeira, 1886-1968)

     Singelo e com a sonoridade que o Brasil sabe dar à nossa língua.

domingo, 4 de outubro de 2009

Novo surto de gripe... na língua

      Que me perdoem os que constatam como ando viciado nas correcções... Depois de uma primeira referência, registe-se que não há uma sem duas...

      Isto tudo num só prospecto cuja utilidade é inquestionável (fora ele bem feito):



      Ando a informar-me e a tentar prevenir-me de ser contagiado pelo vírus da gripe A, mas lá que os meus olhos lêem o que não deve ser lido é um facto.
      Um exemplo (ao tentar saber "Como se Transmite"):



Das poucas regras que existem como definitivas em termos de utilização de vírgula, uma delas é a que assume que uma só vírgula nunca pode separar o sujeito do predicado (primeira incorrecta: a que separa "Uma pessoa saudável" de "pode inadvertidamente contaminar as suas mãos"); outra é aquela que impede separar, no complexo verbal, o verbo auxiliar do principal (segunda incorrecta: a que separa "pode" de "contaminar"). Caso para dizer que as vírgulas quase que poderiam ter aparecido noutros locais, excepto nos assinalados.

       Outro exemplo (ao tentar saber "O que é?"):

Reincidência no erro: separar o sujeito ("O vírus da Gripe A que surgiu recentemente") do predicado ("é um novo subtipo de vírus da gripe,...") por uma só vírgula. Se ainda houvesse duas, sempre se entenderia o encaixe de uma subordinada relativa não restritiva (o que até deveria acontecer). Assim...

       Mais um (pois não há dois sem três):
Numa realização do verbo 'ocorrer' que aponta para uma estrutura argumental a seleccionar um segmento associado ao tempo / ao espaço da ocorrência, diga-se que é pouco natural a separação de 'ocorre' do segmento 'antes do aparecimento dos sintomas' (referência temporal); a coordenação das duas referências temporais ('antes do aparecimento dos sintomas' e 'até sete dias após o início dos mesmos') é também interrompida por uma vírgula inusitada que, inclusivamente, separa uma só noção temporal designada como 'até sete dias após o início dos mesmos [sintomas]'. O mais correcto seria considerar apenas a existência de um encaixe na frase: o do advérbio 'ainda' (que deveria ser apresentado com uma vírgula antes e outra depois).

     Esta virgulação anda pelas ruas da amargura (deve ser o resultado de quem aprendeu que se coloca vírgula onde se faz uma pausa...!!). O problema é mais grave quando, por dificuldades respiratórias, se fazem pausas onde elas não devem existir no escrito.

     Depois, claro, despistado que ando (ao corrigir o que leio), nunca chego a saber o que é necessário para me prevenir da Gripe A. Assim não dá. Caso para dizer que, perante este meu vício, há muitos que se põem a jeito.

sábado, 3 de outubro de 2009

Para saber melhor o acordo: com ou sem 'h'?

    Por mais publicações que se façam sobre o assunto, a vox populi tem a força e os limites que lhe queiram dar (pelo menos, enquanto não houver uma orientação concertada para a implementação do acordo).
 
Q: Então, para ficar a saber melhor, sempre é verdade que o 'h' vai desaparecer das palavras? 
 
R: Ignoro a fonte dessa informação, sendo por certo que o grafema 'h' não vai desaparecer tão generalizadamente como se parece sugerir, pelo menos no que à ortografia diz respeito.
    Permito-me retomar o Acordo Ortográfico de 1945 para relembrar uma área que, na altura, já se revelava crítica: a da ortografia com 'h'. Convencionou-se, então, que:

i) "O h inicial emprega-se: 1.°) por força da etimologia; haver, hélice, hera, hoje, hora, humano; 2.°) em virtude de tradição gráfica muito longa, com origem no próprio latim e com paralelo em línguas românicas: húmido, humor; 3.°) em virtude de adopção convencional: há?, hem?, hum! Admite-se, contudo, a sua supressão, apesar da etimologia, quando ela está inteiramente consagrada pelo uso: erva, em vez de herva; e, portanto, ervaçal, ervanário, ervoso (em contraste com herbáceo, herbanário, herboso, formas de origem erudita). Se um h inicial passa a interior, por via de composição, e o elemento em que figura se aglutina ao precedente, suprime-se: anarmónico, biebdomadário, desarmonia, desumano, exaurir, inábil, lobisomem, reabilitar, reaver, transumar. Igualmente se suprime nas formas do verbo haver que entram, com pronomes intercalados, em conjugações de futuro e de condicional: amá-lo-ei, amá-lo-ia, dir-se-á, dir-se-ia, falar-nos-emos, falar-nos-íamos, juntar-se-lhe-ão, juntar-se-lhe-iam. Mantém-se, no entanto, quando, numa palavra composta, pertence a um elemento que está ligado ao anterior por meio de hífen: anti-higiénico, contra-haste, pré-história, sobre-humano."
ii) "Os digramas finais de origem hebraica ch, ph e th conservam-se íntegros, em formas onomásticas da tradição bíblica, quando soam (ch=c, ph=f, th=t) e o uso não aconselha a sua substituição: Baruch, Loth, Moloch, Ziph. Se, porém, qualquer destes digramas, em formas do mesmo tipo, é invariavelmente mudo, elimina-se: José, Nazaré, em vez de Joseph, Nazareth; e se algum deles, por força do uso, permite adaptação, substitui-se, recebendo uma edição vocálica: Judite, em vez de Judith."

   Entretanto, aquilo para que o novo acordo (já com dezanove anos) aponta, neste capítulo, é o seguinte:

"1º) O h inicial emprega-se: a) Por força da etimologia: haver, hélice, hera, hoje, hora, homem, humor; b) Em virtude da adoção convencional: hã?, hem?, hum!.
2º) O h inicial suprime-se: a) Quando, apesar da etimologia, a sua supressão está inteiramente consagrada pelo uso: erva, em vez de herva; e, portanto, ervaçal, ervanário, ervoso (em contraste com herbáceo, herbanário, herboso, formas de origem erudita); b) Quando, por via de composição, passa a interior e o elemento em que figura se aglutina ao precedente: biebdomadário, desarmonia, desumano, exaurir, inábil, lobisomem, reabilitar, reaver.
3º) O h inicial mantém-se, no entanto, quando, numa palavra composta, pertence a um elemento que está ligado ao anterior por meio de hífen: anti-higiénico/ anti-higiênico, contra-haste, pré-história, sobre-humano.
4º) O h final emprega-se em interjeições: ah! oh!".

   Conclui-se, pela leitura comparativa, que aqui não há alterações substanciais relativamente ao que a tradição ditou.
   
   Termino com um pequeno ensaio do português "acordado": não sei se fui completamente correto na explicação (muito preciso de aprender para satisfazer esse objetivo e para me adaptar à nova escrita, negando esta forte herança de utilizador da língua escrita, já com cerca de quatro décadas); contudo, seria ótimo que adotasse uma forma eficaz para evitar o erro ortográfico e, assim, não incorrer nessa posição suscetível de ter de cumprir várias correções nos meus textos (pois, os que os leem esperam ter neles um bom exemplo). Cumprido o ensaio, volto ao que, no momento, é lei (o acordo de 1945). Correcto?
   

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

(Des)acordo ortográfico

      Este o tema que tem vindo à discussão nos últimos dias, talvez pela aproximação ao tempo que vai trazer grandes mudanças no Português (novos programas no ensino básico, a terminologia linguística, o Acordo Ortográfico). Assim se lê na sexta página do jornal Metro, publicado no dia 1 de Outubro.


     A previsão do Professor Malaca Casteleiro é a melhor das hipóteses, caso se atenda ao facto de, com o triplo do tempo, não se ter deixado de ver escritos a contrariar o que já foi convencionado em 1945. Quem já não se cruzou, nos últimos tempos, com 'lêr', 'sêco', 'pêra', 'côr', 'raínha', 'juíz', 'Raúl'? Assim foram escritas; já não o são, por convenção, há cerca de 64 anos.

       Assim foi determinado:

      i) “Prescinde-se do acento agudo nas vogais tónicas i e u de vocábulos oxítonos ou paroxítonos, quando, precedidas de vogal que com elas não formam ditongo, são seguidas de l, m, n, r ou z finais de sílaba, ou então de nh: adail, hiulco, paul; Caim, Coimbra, ruim; constituinte, saindo, triunfo; demiurgo, influir, sairdes; aboiz, juiz, raiz; fuinha, moinho, rainha.”

       ii) “… prescinde-se do acento circunflexo em grande número de palavras com vogal tónica fechada que são homógrafas de outras com vogal tónica aberta. Quer dizer: conquanto se distingam na pronúncia, não se distinguem na escrita formas como: acerto (ê), substantivo, e acerto (é), flexão de acertar; açores (ô), plural de açor (do mesmo modo o topónimo Açores), e açores (ó), flexão de açorar; aquele (ê), pronome, e aquele (é), flexão de aquelar; aqueles (ê), plural de aquele, e aqueles (é), também flexão de aquelar; cerca (ê), substantivo, advérbio e elemento da locução prepositiva cerca de, e cerca (é), flexão de cercar; colher (ê), verbo, e colher (é), substantivo; cor (ô), substantivo, e cor (ó), elemento da locução adverbial de cor; doutores (ô), plural de doutor, e doutores (ó), flexão de doutorar; ele (ê), pronome, e ele (é), nome da letra l; eles (ê), plural de ele (ê), e eles (é), plural de ele (é); esse (ê), pronome, e esse (é), nome da letra s; esses (ê), plural de esse (ê), e esses (é), plural de esse (é); este (ê), pronome, e este (é), substantivo; esteve (ê), flexão de estar, e esteve (é), flexão de estevar; fez (ê), substantivo e flexão de fazer, e fez (é), substantivo; fora (ô), flexão de ser e ir, e fora (ó), advérbio, interjeição e substantivo; fosse (ô), também flexão de ser e ir, e fosse (ó), flexão de fossar; ingleses (ê), plural de inglês, e ingleses (é), flexão de inglesar; meta (ê), flexão de meter, e meta (é), substantivo; nele (ê), combinação de em e ele, e nele (é), substantivo; oca (ô), feminino de oco, e oca (ó), substantivo; piloto (ô), substantivo, e piloto (ó), flexão de pilotar; portuguesa (ê), feminino de português, e portuguesa (é), flexão de portuguesar; rogo (ô), substantivo, e rogo (ó), flexão de rogar; seres (ê), flexão de ser (ê), e Seres (é), nome de povo; transtorno (ô), substantivo, e transtorno (ó), flexão de transtornar; vezes (ê), plural de vez, e vezes (é), flexão de vezar; etc.”

(Segundo o Acordo Ortográfico de 1945)

     Provas de que os usos e o tempo não se decretam. As vontades das convenções, nos consensos que se constroem, requerem a sensatez que também o tempo dá. E esta poderia bem começar por uma acção integrada que convergisse na divulgação arquitectada das mudanças: desde a edição ao ensino-aprendizagem, bem como à comunicação em massa.


quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Tempo de música

   Chega de trabalho: aí vem uma musiquinha.

    Duas vozes chorosas para uma música tão comercial quanto intensa.




          BROKEN STRINGS


Let me hold you for the last time
It's the last chance to feel again
But you broke me, now I can't feel anything

When I love you and so untrue
I can't even convince myself
When I'm speaking it's the voice of someone else

Oh, it tears me up
I tried to hold on but it hurts too much
I tried to forgive but it's not enough
To make it all okay

You can't play our broken strings
You can't feel anything
That your heart don't want to feel
I can't tell you something that ain't real

Oh, the truth hurts and lies worse
How can I give anymore
When I love you a little less than before?

Oh, what are we doing?
We are turning into dust
Playing house in the ruins of us

Running back through the fire
When there's nothing left to say
It's like chasing the very last train
When it's too late, too late

...

But we're running through the fire
When there's nothing left to say
It's like chasing the very last train
When we both know it's too late, too late

...

Oh, you know that I love you a little less than before
Let me hold you for the last time
It's the last chance to feel again.



      Leis do coração... daquelas cuja razão até a razão desconhece...