terça-feira, 30 de junho de 2009

Desafio linguístico e a diferença dos artistas

    Na leitura da página que fecha o último número da revista Visão, Ricardo Araújo Pereira foi destacando algumas notas que me fizeram sorrir. A abaixo apresentada chamou-me a atenção pelo que foi lido e pelo que foi lembrado / associado.

Assim se lia:

     Entre o que é (artista) e o que não é, este pequeno excerto propõe a aplicação e uma breve explicação de um conceito - polissemia - que me fez lembrar um outro: o da homonímia. Por vezes, aparecem confundidos entre si (ou mesmo com outros conceitos gramaticais), quanto mais não seja porque, ao nível da superfície, a consciência sincrónica da distinção pouco mais além vai da aproximação que o significado lexical oferece no caso da polissemia (explorando zonas ou campos de significado comuns, aproximados, assentes numa só entrada de dicionário), mas que a homonímia não tem.
      Um dos critérios fundamentais para o contraste polissemia / homonímia é o que diz respeito à etimologia: enquanto na primeira a entrada etimológica é uma só ('ser cabeça de cartaz', 'doer a cabeça', 'ser a cabeça do grupo', 'estar à cabeça' são expressões que recorrem a uma palavra comum com zonas de significado muito próximas - apontando para um campo semântico construído na base de uma palavra cujo étimo é para qualquer dos casos 'capitĭa-'), o mesmo não acontece com a segunda ('começar a música com o dó' e 'ter dó de muita gente' apontam para contextos de significado muito distanciados, comprovados ainda pela distinção etimológica de duas palavras: do italiano 'do', no primeiro caso, e do latim 'dolu-', no segundo); outros critérios frequentemente aduzidos para a diferenciação são bem mais falíveis.
       Ora, pela complexidade que a homonímia acarreta na sua explicação (no que à consciência, e sublinho, consciência linguística diz respeito), no processamento a que todos os professores se devem sujeitar (e muito mais os próprios alunos) pelo recurso a instrumentos e critérios distintivos, não me parece ajustada a prática comum de assumir este fenómeno como conteúdo de ensino-aprendizagem, por exemplo, a abordar logo no primeiro Ciclo - como, aliás, o acaba por fazer o novo programa homologado de Língua Portuguesa (Ensino Básico). Diria, assim, que, neste capítulo, se compromete alguma da progressão gramatical assente na dimensão do processamento de mecanismos linguísticos; com o programa anterior, ao assumir-se o tratamento da homonímia no terceiro ciclo, revelava-se uma consciência mais clara (e de possível, maior e melhor explicitação) de que as relações entre grafia e fonia são mais evidentes, nos primeiros anos de escolaridade, no plano da homofonia, homografia e paronímia (para não falar da pertinência maior do contraste destas relações com os comportamentos de escrita / leitura).
       Como saberão os alunos, de forma consciente, que o cabo de um talher ou um cabo de mar, por mais que se associem a um significado de extremidade, são exemplos homónimos (confrontem-se os étimos 'capŭlu-' / 'capu-') sem a ajuda de um bom dicionário? E à 'pena da galinha' associarão, polissemicamente, a 'pena da escrita' que hoje não utilizam, porque têm esferográficas? Entenderão que 'valer a pena' corresponde a uma realização polissémica da 'pena' que sentem ao ver um amigo partir (ambas provenientes de 'poena-')? E que esta última pena é homónima daquela que vêem na galinha (proveniente da forma latina 'penna-')?

       Espero que tenha dado para ver o que é e o que não é (polissemia / homonímia). Portanto, mais um caso para se preparar e/ou trabalhar com o dicionário ao lado (a acreditar num trabalho da gramática mais laboratorial, oficinal e menos na transmissão professor > aluno), evitando generalizações que o senso comum e a vontade de tudo fazer (com rapidez) tendem a oferecer, e algum estudo acaba por não conceder.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Tempo, música, companhia e poesia

   Uma amiga manda-me, todos os fins de semana, um postal poético, musicado; outras vezes pintado. Desta feita, convidou-me a recuar ao passado...

    Lembrei-me de uma música (esta minha costela anglófona!) que, de tão simples e harmoniosa, se tornou hino de amor (dizem que de um rei para uma mulher tornada rainha, até que a graça real a descoroou e decapitou).

      
     De Henrique VIII e Ana Bolena... teve o rei o coração ao pé da boca (to have his heart on his sleeve).
     Alguns anos mais tarde, Shakespeare faria da música tópico poético:

És música e a música ouves triste?
Doçura atrai doçura e alegria:
porque amas o que o teu prazer resiste,
ou tens prazer só na melancolia?
Se a concórdia dos sons bem afinados,
por casados, ofende o teu ouvido,
são-te branda censura, em ti calcados,
porque de ti deviam ter nascido.
Vê que uma corda a outra casa bem
e ambas se fazem mútuo ordenamento,
como marido e filho e feliz mãe
que, todos num, cantam de encantamento:
       É canção sem palavras, vária e em
       uníssono: "só não serás ninguém".

trad. de Vasco Graça Moura, in Os Sonetos de Shakespeare (Versão integral)
Lisboa, Bertrand, 2002, pág. 27


Music to hear, why hear'st thou music sadly?
Sweets with sweets war not, joy delights in joy;
Why lov'st thou that which thou receiv'st not gladly,
Or else receiv'st with pleasure thine annoy?
If the true concord of well-tuned sounds
By unions married, do offend thine ear,
They do but sweetly chide thee, who confounds
In singleness the parts that thou shouldst bear:
Mark how one string, sweet husband to another,
Strikes each in each by mutual ordering,
Resembling sire, and child, and happy mother,
Who all in one, one pleasing note do sing:
       Whose speechless song being many, seeming one,
       Sings this to thee: 'Thou single wilt prove none.'

William Shakespeare
    
     Combinação artística e estética: letra e música, com o amor em pano de fundo.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Do Alimento do Homem

Da velha tradição índia...

Pensamentos simples de homens que sabiam ver o essencial da natureza humana:

Seleccionemos o alimento, o do corpo e o do espírito, para que sejamos melhores num Mundo melhor.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Dalí e Pessoa

      Relembrando Pessoa, pela diversidade que persiste na unidade; ou pela unidade que se fragmenta em múltiplas sensibilidades.

      Pelo que se é a cada instante; pela necessidade que se tem de contactar com a Natureza circundante; pela conformação e adequação às circunstâncias da vida; pela ânsia, pela força e pela energia experimentadas; pelas (des)ilusões que nos atingem... eis as pessoas que somos e que Fernando Pessoa nos revela, na consciência moderna do Homem e da sua relação com o Tempo e o Espaço do século XX.

Não sei quantas almas tenho
Figura com gavetas, Salvador Dalí (estudo)
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é.

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo,
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.

                                                               Fernando Pessoa,
                                                               in Novas Poesias Inéditas,
                                                               Lisboa, Ed. Ática, 1973

       E, perante isto, ainda há quem defenda que o que não cabe no ortónimo figura nos heterónimos; ou que o "restante" destes "faz de si"!
      Nem com aspas consigo entender bem esta pretensa 'normalização' de um Pessoa, que não deixou de ser o responsável primeiro pela teoria do fingimento. Onde ficam os ecos dos primeiros neste último ou, ainda, os do final naqueles que dele resultaram? A unidade na diversidade é conceito teórico há muito já abordado, sem linhas de fronteira no território da Arte.
      O ser que somos - dependendo do dia, do momento, da situação e das pessoas com quem interagimos - é tão divisível quanto os segundos, os minutos e as horas do tempo, em contínuo fluir.
       
     Falem, ou melhor, escrevam os alunos de 12º ano, que sobre isso tiveram de tecer sumariamente algumas considerações em pleno exame. Nem sei que diga!

Sintaxe... oblíqua... de novo

      Vem mesmo a propósito dos complementos oblíquos e de como estes andam tão mal tratados na escrita (e na leitura) - exemplo da abordagem da gramática pela entrada de sentido, entretanto com condições de enveredar pela entrada de âmbito oficinal.

      Um bom trabalho de análise de erros aparece motivadamente enquadrado com a verificação de erros do tipo proposto num pequeno segmento textual que se sucede ao título dado:


in revista de periodicidade semanal, correspondente à semana de 22 a 28/06/09

      A sequência relativa que expande o período final é um bom exemplo de má selecção da preposição que acompanha o verbo 'participar'. Considerando a estrutura argumental do núcleo verbal da subordinada relativa (X participar em Y), dir-se-ia que o predicado correspondente ('participaram no evento') inclui um complemento oblíquo ('no evento') que, a ser recuperado por uma relativa antecedida de preposição, teria de ser configurado da seguinte forma: Mais de duas mil pessoas assistiram ao evento, no qual participaram vários craques da Selecção das quinas.

     Mais uma prova ou razão para defender que a expansão frásica por meio de subordinadas relativas não pode ser didacticamente tratada num só ano ou ciclo de escolaridade, dadas as dificuldades de processamento que estas acarretam (como os casos das relativas antecedidas por preposição e com funções sintácticas que evidenciam alguma complexidade). Assim retomo a comunicação já referida em notas anteriores e o que nela pode ser lido sobre a progressão na sintaxe.

sábado, 20 de junho de 2009

Sintaxe... de novo... da mais oblíqua!

     Coloquemos os pontos nos is e os acentos devidos quando de 'oblíquo' se trata... cruzando com posts já aqui apresentados.

     Q: Afinal, o que é um complemento oblíquo? Uma colega diz-me que é o que se passa em casos típicos como os da frase "Eu estou na escola", com o 'na escola' a desempenhar essa função. É verdade?


    R: A designação de complemento oblíquo corresponde à função sintáctica que, na primeira versão da TLEBS, se identificava com os complementos preposicionais e os complementos adverbiais, o que não tem a ver com o exemplo dado, seguramente (pois 'na escola', no contexto de precedência de um verbo copulativo, desempenha a função de predicativo do sujeito).
       A designação de 'complemento oblíquo', não sendo muito familiar no campo da didáctica da gramática, é a que se relaciona com características ou universais linguísticos sintácticos: os verbos requerem argumentos para saturar o seu significado, sendo que uns se fazem acompanhar de complementos directos (os transitivos directos, isto é os que seleccionam complementos no caso acusativo), de complementos indirectos (os transitivos indirectos que admitem complementos configurados no caso dativo, substituíveis na terceira pessoa por 'lhe/lhes'), de complementos oblíquos (os transitivos indirectos que admitem complementos que não cabem em nenhum dos casos anteriormente considerados). Trata-se, portanto, de uma designação que articula as funções sintácticas com indicadores de caso.
       A título de exemplo, são complementos oblíquos os segmentos em itálico propostos nas frases seguintes:
     i) Nas férias passadas, fui a Barcelona. (> aí / lá; a esse sítio/local)
     ii) O meu irmão adaptou-se à nova turma. (> a isso)
     iii) Eu moro aqui, junto ao Estádio das Antas. (> neste sítio / local)
     iv) Não gosto de esperar. (> disso)
     v) Vou colocar os livros na pasta. (> aí / lá, nesse sítio)
      Todos eles são segmentos seleccionados pelo verbo principal (ir, adaptar-se, gostar, colocar), configurados sob a forma de grupo preposicional (a Barcelona, à nova turma, de esperar, na pasta) ou grupo adverbial (aqui).
     Em termos didácticos, considero que, para se trabalhar complementos oblíquos, há que seguir os seguintes passos, progressivamente equacionados na abordagem sintáctica de frases:
       a) diferenciar complementos (elementos seleccionados pelo núcleo verbal da frase) de modificadores (elementos não requeridos pelo núcleo verbal da frase);
       b) distinguir tipos de complementos considerados no predicado da frase - directos, indirectos, oblíquos (pela aplicação de testes de identificação: interrogação e pronominalização, por exemplo);
     c) progredir na abordagem de complementos oblíquos (por exemplo, abordando inicialmente os que digam respeito a informação de localização temporal / espacial, num contraste típico entre o que sejam complementos oblíquos seleccionados pelo núcleo verbal e modificadores; depois, tratando os complementos que revelem outro tipo de informação, segundo o tipo semântico de verbos utilizado).
      Assim, primeiro, é importante distinguir "Eu moro no Porto" (complemento oblíquo) de "Eu comprei uma casa no Porto" (modificador de valor locativo); depois, nada como abordar os complementos oblíquos pela sua própria especificidade, face a outros complementos, e com os valores semânticos distintos relativamente aos atrás considerados.
    Parto, portanto, da possibilidade de a gramática poder ser ensinada segundo duas perspectivas: pela entrada de sentido (mais associada e articulada com as competências de leitura e escrita); pela entrada da reflexão da língua, numa perspectiva mais oficinal. Se os complementos oblíquos são importantes, para o primeiro caso, em contextos de regulação da escrita (com a preocupação na selecção adequada das preposições que acompanham determinados verbos – ex.: preferir X a Y; cuidar de Y, ir a Y, ir para Y, vir de Y, …), para o segundo, o trabalho centra-se mais na natureza distintiva destes complementos relativamente a outros já abordados (os directos e os indirectos, no primeiro e segundo ciclos; o oblíquo concluir-se-ia no terceiro).
     Focalizando casos de complementação e sua distinção relativamente aos modificadores, é possível trabalhar oficinalmente o contraste da seguinte forma:

        1. Atentar nas seguintes frases:
            a) Os amigos meteram um papel numa garrafa.
            b) Os miúdos puseram um papel numa garrafa.
            c) Os meninos viram um papel numa garrafa.
            d) Eles observaram um papel numa garrafa.
            e) Eles leram um papel numa garrafa.
        1.1. Indicar as frases nas quais se pode retirar “numa garrafa”, mantendo-se as frases correctas. (R: c, d, e)
        1.2. Identificar as frases nas quais a expressão “numa garrafa” é pedida pelo verbo pertencente ao predicado. (R: a, b)
   2. Os complementos de um predicado são exigidos pelo verbo principal; os modificadores não são obrigatórios.
        2.1. Referir as frases que apresentam “numa garrafa” como modificador. (R: c, d, e)

    Focalizando a distinção de complementos, poder-se-á estruturar um questionário da seguinte forma, para as mesmas frases:

  1. Os predicados com elementos destacados a verde começam com um verbo que pede um ou mais complementos.
     1.1. Identificar os verbos que precisam de dois complementos. (R: meter [X em Y], pôr [X em Y])
     1.2. Indicar os verbos que só necessitam de um complemento. (R: ver [X], observar [X], ler [X])
     1.3. Referir o complemento que pode ser substituído pelo pronome pessoal ‘(n)o’. (R: um papel)
     1.4. Reescrever cada uma das frases começando-as por “um papel”. (R: Um papel foi metido pelos amigos numa garrafa,… [transformação passiva, enquanto mecanismo de identificação do complemento directo da frase activa, o qual se transforma em sujeito na frase passiva])
  2. Considerar a expressão “numa garrafa” em todas as frases.
     2.1. Assinalar as frases nas quais a expressão funciona como complemento. (R: 1a e 1b)
    2.2. Verificar a possibilidade de “numa garrafa” poder ser substituída pelos pronomes ‘a’ ou ‘lhe’. (R: Impossibilidade nos dois casos)
 3. O complemento directo de uma frase pode ser substituído, na terceira pessoa, pelos pronomes ‘o(s)/a(s)’, ‘lo(s) / la(s)’ ou ‘no(s) / na(s)’; o complemento indirecto, por ‘lhe(s)’.
    3.1.Relacionar a conclusão anterior com a expressão ‘numa garrafa’. (R: não é complemento directo nem indirecto, em nenhuma das frases) .

    Poder-se-á, então, concluir, depois de tanto trabalho indutivo (metodologia que prefiro, no que à abordagem da gramática oficinal diz respeito), que este complemento tem uma designação motivadamente distintiva (complemento oblíquo).

    Mais um exemplo de como uma abordagem oficinal e a consideração de um critério de progressão poderão minimizar alguma estranheza que os alunos, munidos dos instrumentos e testes de identificação adequados, acabam por reconhecer a funcionalidade.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Pensamentos partilhados por um bom livro

     Ler um livro quando se está no local da intriga é duplamente motivador. Há quase um ano foi assim.


     O encontro de Daniel Sempere com uma obra de Julián Carax (A Sombra do Vento), no Cemitério dos Livros Esquecidos, é um exemplo de paixão pelos livros; o fascínio pela escrita revê-se numa caneta que, de tão desejada e estimada, só pode ser merecida por quem vive um mesmo tipo de amor. São estas as chaves, estes os sinais de leitura para o desvendar de uma intriga feita de mistérios, encontros e desencontros, perseguições, regressos, descobertas.

    "Ainda me lembro daquele amanhecer em que o meu pai me levou pela primeira vez a visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos. Desfiavam-se os primeiros dias do Verão de 1945 e caminhávamos pelas ruas de uma Barcelona apanhada sob céus de cinza e um sol de vapor que se derramava sobre a Rambla de Santa Mónica numa grinalda de cobre líquido.

   - Não podes contar a ninguém aquilo que vais ver hoje, Daniel - advertiu o meu pai. - Nem ao teu amigo Tomás. A ninguém.
   - Nem sequer à mamã? - inquiri eu, a meia-voz.
  O meu pai suspirou, amparado naquele sorriso triste que o perseguia como uma sombra pela vida.
  - Claro que sim - respondeu, cabisbaixo. - Para ela não temos segredos. A ela podes contar tudo."


    Assim se inicia o romance, a mostrar que "poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até ao seu coração. Aquelas primeiras imagens, o eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou mais cedo - não importa quantos livros leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto aprendamos ou esqueçamos -, vamos regressar"; ou, ainda e na voz de Julián, que "Os livros são espelhos: só se vê neles o que a pessoa tem dentro".
    Fecha o romance como começou: num ciclo de vida que se repete e se marca por leves diferenças, por mais intensas que tenham sido as etapas que o compõem.

   Assim foram acompanhadas as férias por Barcelona, cidade tão misteriosamente conhecida por Carlos Ruiz Zafón, escritor catalão; representada numa intriga que, traçada pelo imaginário do romance gótico, remonta à primeira metade do século XX. Perante o entusiasmo vivido, há escritores que vale a pena reencontrar: venha O Jogo do Anjo.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Lá vem dúvida linguística

    Ora vamos lá ver o que há a dizer...

    Q: O advérbio 'lá' é um exemplo de deíctico de espaço ou de pessoa?

    R: Apetecia-me dizer "Sei !", para mostrar que, neste caso, se explora nocionalmente um sinal de afastamento face à esfera de conhecimentos do 'eu' que fala, para configurar uma partícula de negação; relembrei "Esta velha angústia" de Álvaro de Campos e os versos "Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! / Por exemplo, por aquele manipanso / Que havia em casa, nessa, trazido de África.", nos quais comparece um 'lá' deicticamente contrastivo face ao 'cá' - numa referencialidade que permite diferenciar o espaço lembrado ("... em casa, lá nessa...") daquele que se encontra implicitado e associado à produção escrita (o 'cá', 'este' ou 'esta'); distinguir o tempo da memória ('lá', na "minha infância perdida") daquele que surge vivenciado no período de produção e de "mal-estar a fazer-me pregas na alma".
      Espacial ou temporal, os textos o dirão; pessoal, por certo o será, dado o sentido vectorial dos contrastes 'lá' ou 'essa' / 'cá' ou 'esta' (mais distante / mais próximo da voz que se assume como 'eu' do discurso.
      A nível da deixis, a Professora Fernanda Irene Fonseca, no artigo "Deixis e Pragmática Linguística" (in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, da Editorial Caminho), refere bem como a deixis pessoal é "essa forma básica" de localização, pois esta (de ordem mais temporal ou espacial) é sempre feita "relativamente à posição ocupada pelos falantes. O espaço em que se realiza a mostração, mesmo no caso mais concreto da deixis espacial, não pré-existe ao acto de enunciação, é determinado por ele". Seja como for, é o contexto e o texto em análise que orientam para uma tipificação mais precisa dos deícticos
    Além disto, nunca esquecer a funcionalidade anafórica do termo 'lá' (numa retoma de antecedentes discursivos: "Na cidade, não respirava a pulmão cheio; no campo , o ar invade-me todo o peito. Lá era a contenção; cá é a conquista").

      Ia lá eu saber que tão pequena palavra desse tanto que falar... ou escrever.

domingo, 14 de junho de 2009

Erros clássicos: um caso dos 'media' (para não dizer de um 'medium')

      Na base do que os próprios media nos oferecem, e sempre correndo o risco de ver quebrados os meus telhados de vidro, lá vai um bom exemplo do mau trato da língua.

     Num texto que fala de crise... a da língua está mais do que instalada, difundida e sem fim à vista, mesmo que o texto aponte para o tema-título "Retiros espirituais":


in Jornal de Notícias, 14 de Junho de 2009, pág. 61

       A menos que o leitor esteja num estado depressivo tal em que já não folheia para ler (só desfolha, pela simples vontade de destruir), diria que o exemplo não é novo. É clássico. Por várias vezes me referi a ele junto dos meus alunos (sim, porque, diziam eles, também desfolhavam livros, o manual... e eu, ironicamente, lá os acusava de destruidores implacáveis de bens publicados em suporte papel).
       Para lá da questão da selecção lexical e da distinção significativa (no confronto do par desfolhar / folhear), este sempre é um bom caso para se trabalhar a morfologia: chamar a atenção para a formação da própria palavra 'desfolhar'.
      À base 'folhar' (dicionarizada com o sentido de 'fazer criar folhas', 'cobrir de folhas' ou 'dar a forma de folha') é acrescentado um prefixo 'des-' que, geralmente, é considerado de negação (a par de 'in-' ou 'a-'); todavia, no caso concreto, associa-se mais ao significado de separação, orientação contrária ou complementar para um processo ou acção (na mesma lógica de ligar > desligar, instalar > desinstalar, fazer > desfazer, mascarar > desmascarar, abotoar > desabotoar, carregar > descarregar) e não tanto à negação prevista entre harmonia /desarmonia, confiança / desconfiança, cortesia / descortesia, proporcional / desproporcional, propositado / despropositado, acordo / desacordo, igual / desigual.
      Um outro significado pode ainda associar-se a 'des-': reforço ou aumento de intensidade. É o que se pode encontrar em formas como 'desinquieto', 'desinfeliz' ou ainda o popular 'deslarga-me'.
      Pelo trabalho de consulta dicionário, pode ser feita a construção de diferentes grupos com palavras (previamente fornecidas ou a pesquisar) que apontem para esta diferença de sentidos transmitida pelo mesmo prefixo:
(i) ser o contrário ou complementar a;
(ii) ser a negação de;
(iii) ser muito.

      Um caso de gramática a propósito de leitura. Valha o facto de sempre se aprender com os erros (os dos outros e os nossos também).

sábado, 13 de junho de 2009

Da fama dos elefantes

     Entre tantos animais na terra, fico-me pelo elefante...

     Não o Dumbo, de orelhas inusitadas, que é o herói da criançada; não Ganeixa, cuja cabeça elefantina é marca de divindade hindu; não os de Alexandre, o Grande, nem os de Aníbal, o cartaginês, que ficaram famosos pelas batalhas travadas; não os brancos, aos quais a história e o saber popular rezam como sendo singulares e dispendiosos.
      Fico-me por um elefante que só um escritor soube (re)ver, que faz a viagem por todos desejada: a viagem do espaço, do tempo, do uso, do poder, da realidade, da imaginação. Uma viagem que traz mudanças, que faz a diferença (na consciência de que, na linha da epígrafe, "Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam"). E esse pode sempre ser o lugar da língua e da linguagem.


       Nas palavras do próprio autor, adivinha-se um livro cuja "viagem do elefante" se parece com a viagem, os percursos da própria língua, ao longo dos tempos e dos homens que a usam, bem como do acto de criação narrativa. É um gozo, uma brincadeira, em dezoito capítulos, com a própria língua, cada vez mais revista como convenção a violar e, quem sabe, como acto poético a (re)criar: "... não falta por aí quem diga que as fadas que presidiram ao meu nascimento não me fadaram para o exercício das letras, Nem tudo são letras no mundo, meu senhor, ir visitar o elefante salomão neste dia é, como talvez se venha a dizer no futuro, um acto poético, Que é um acto poético, perguntou o rei, Não se sabe, meu senhor, só damos por ele quando aconteceu,..." (I - págs. 18-19).
      Cruzando com outras experiências de leitura do mesmo autor, regista-se: "No fundo, há que reconhecer que a história não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da puta realidade" (XVI - pág. 227). Assim se revê Memorial do Convento ou mesmo O Evangelho Segundo Jesus Cristo - romances que desafiam a perspectiva do(s) conhecimento(s) de mundo ou a versão oficial da História.

     Isto tudo para quem tenha memória de elefante ou para que ninguém esqueça, como diz o narrador, que "quem conta um conto não passa sem lhe acrescentar um ponto, e às vezes uma vírgula" (XIV - pág. 197).

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Dúvidas e questões linguísticas

    Pragmática e linguística textual: área a (re)descobrir no ensino?

    Q: Num diálogo da obra O Leitor, de Bernhard Schlink, lê-se o seguinte:


" - Também aprendes alemão?
- O que é que queres dizer com isso?
- Só aprendes línguas estrangeiras, ou tens ainda alguma coisa a aprender na tua própria língua?
- Lemos textos."


    O pronome "isso" é um anafórico de quê? Alemão?

    R: Os anafóricos não são apenas elementos que retomam antecedentes sob a configuração de palavra ou grupo de palavras. No caso em concreto, ao falar-se de retoma, tem que se focalizar todo um acto de fala anterior a ser encarado como segmento antecedente; isto é, o acto de fala directivo apresentado no primeiro turno de fala (marcado por uma interrogação total) é recuperado pelo demonstrativo "isso" (o quê? > o facto de me perguntares se também aprendo alemão).
    Assim, em termos de análise do discurso produzido, o interlocutor que assume a voz no segundo turno de fala reenvia, anaforicamente, para o do primeiro, indagando-o quanto à intencionalidade ou ao sentido da interrogação total.

    A especificidade dos textos bem como o recurso a mecanismos que, a todo o momento, se pautam por lógicas que só a(s) leitura(s) dos textos admite(m) são fontes para o exercício de análise do discurso, quer oral quer escrito.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Um feriado... romântico

     A tese romântica de que o poeta morre com a nação dá nisto: um abençoado feriado.

     Dizer que 1580 é data da perda da independência portuguesa, ficando o país sob o domínio filipino por um período de sessenta anos, não é dado contestável.
      Quanto à data de nascimento e morte de Camões, são muitas as incertezas (uma boa oportunidade para se trabalhar a modalidade epistémica, enquanto mecanismo linguístico da expressão da possibilidade ou probabilidade).


in Das Palavras aos Actos (manual de 10º ano de Português), Porto, Edições ASA

      Resta a evidência de um abençoado feriado.
       Quanto ao dia de Portugal, talvez devesse ser o dia 1 de Dezembro (o da Restauração da Independência, hoje mais lembrado pelo Dia Mundial da SIDA). Se ainda o descobrem, tiram-nos este desejado descanso, a título da concentração / redução de feriados.

     
Bem razão tinha um outro nosso escritor, Eça de Queirós ("Somos invariavelmente românticos"), cuja data de nascimento ou morte bem que também poderia ser feriado - isto para quem pense que ando a dar ideias para tirar feriados (sempre fica a proposta de criação de um outro).


segunda-feira, 8 de junho de 2009

Progressão(ões) da Gramática

      Na sequência dos encontros em que participei, falando sobre o ensino da gramática.

    Mediante as solicitações recebidas, faço publicar, na íntegra, a comunicação apresentada acerca da noção de progressão(ões) no ensino da gramática.
     Estas foram as linhas de reflexão partilhadas no Porto (Fundação Cupertino de Miranda e Hotel Meliá), bem como em Lisboa (Universidade Católica Portuguesa).
      Propõe-se o seguinte alinhamento:
Capa da primeira gramática portuguesa, de Fernão de Oliveira (1536):
Grammatica da lingoagem portuguesa

   "A progressão como passagem do simples para o complexo, como orientação do familiar ou frequente para o desconhecido ou menos comum, como transição do genérico para o específico não pode desconsiderar o critério da utilidade e do que se revela necessário para determinadas opções discursivas, certos objectivos comunicativos que implicam o conhecimento e a explicitação de alguns dados da língua."

     Acrescentam-se alguns cuidados na terminologia gramatical, no discurso pedagógico, entre outros dados que articulam a gramática com as competências de leitura, de escrita e de abordagem literária.

      A bem da comunidade profissional a que pertenço.

sábado, 6 de junho de 2009

"Eu não temo nem devo"

    Esta é frase histórica para um rei absoluto, a quem o Memorial do Convento retrata como alguém que, sem ironias, muito devia e muito temia.

     Entre a visão histórica (já por si uma construção narrativa)...


... e uma outra ficção narrativa construída, fica a afirmação real (porque dita e porque de uma figura da realeza) pautada pelo retrato de um monarca

a) que se cruza com o ridículo, o sarcasmo e o registo de um narrador que o vê como uma criança em ponto grande:

"Quase tão grande como Deus é a basílica de S. Pedro de Roma que el-rei está a levantar. É uma construção sem caboucos nem alicerces, assenta em tampo de mesa que não precisaria ser tão sólido para a carga que suporta, miniatura de basílica dispersa em pedaços de encaixar, segundo o antigo sistema de macho e fêmea, que, à mão reverente, vão sendo colhidos pelos quatro camaristas de serviço. (...) Agora só falta colocar a cúpula de Miguel Ângelo, aquele arrebatamento de pedra aqui em fingimento, que, por suas excessivas dimensões, está guardada em arca à parte, e sendo esse o remate da construção lhe será dado diferente aparato, que é o de ajudarem todos ao rei, e com um ruído retumbante ajustam-se os ditos machos e fêmeas nos mútuos encaixes, e a obra fica pronta." (I, págs. 12-13 da 43ª edição)

b) dominado pela mundanidade, pela profanação, pela fragilidade ironicamente denunciada:

"É contudo um tempo de contrariedades. Agora sairão a freiras de Santa Mónica em extrema indignação, insubordinando-se contra as ordens de el-rei de que só pudessem falar nos conventos a seus pais, filhos, irmãos e parentes até segundo grau, com o que pretende sua majestade pôr cobro ao escândalo de que são causa os freiráticos, nobres e não nobres, que frequentam as esposas do Senhor e as deixam grávidas no tempo de uma ave-maria, que o faça D. João V, só lhe fica bem, mas não um joão-qualquer ou um josé-ninguém." (IX, 97, idem) "El-rei anda muito achacado, sofre de flatos súbitos, debilidade que já sabemos antiga, mas agora agravada, duram-lhe os desmaios mais do que um vulgar fanico, aí está uma excelente lição de humildade (...) Enfim, el-rei abriu os olhos, escapou, não foi desta, mas fica cm as pernas frouxas, as mãos trémulas, o rosto pálido, nem parece aquele galante homem que derruba freiras com um gesto, e quem diz freiras diz as que o não são (...) se agora o vissem as amantes reclusas e libertas não reconheceriam neste murcho e apagado homenzinho o real e infatigável cobridor." (X, 116-117, idem)

c) feito da megalomania traduzida em egocentrismo, magnanimidade simulada, religiosidade demasiado profana:

"Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há-de ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la, sobretudo quando a podem consolar também os confortos da terra e do corpo. Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, porque a freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes, e a Roma, se com bom dinheiro lhe pagámos para ter o Santo Ofício, vá mais quanto ela pedir por menos cruentas benfeitorias..." (XVIII, 234-235, idem)

d) dimensionado à escala de uma visão da História assumida como ludíbrio, simulação, anedota, paródia, anacronismo visando a desvirtualização do universo do poder:

"... ficou o rei, que está em sua casa, agora esperando que regresse o almoxarife que foi pelos livros da escrituração, e quando ele volta pergunta-lhe, depois de colocados sobre a mesa os enormes in-fólios, Então diz-me lá como estamos de deve e haver. O guarda-livros leva a mão ao queixo parecendo que vai entrar em meditação profunda, abre um dos livros como para citar uma decisiva verba, mas emenda ambos os movimentos e contenta-se com dizer, Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o outro mês, e o ano que lá vai, por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil, outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que podermos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos, Mas graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não falta, isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majestade, Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita graça, sim senhor, queres tu dizer na tua que a merda é dinheiro, Não, majestade, é o dinheiro que é merda, e eu estou com muito boa posição para o saber, de cócoras, que é como sempre deve estar quem faz as contas do dinheiro dos outros." (XXI, 293-294, idem)

e) caracterizado pelo poder absoluto e pela vaidade, cruzados com o caricato:

"... D. João V teve um pensamento negro, viu-se-lhe na cara, e faz rápidas contas, mentais, com a ajuda dos dedos, Em mil setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente, Se ainda for vivo. (...) Todos esperavam. E então D. João V disse, A sagração da basílica de Mafra será feita no dia 22 de Outubro de mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobre como falte, venha sol ou venha chuva, caia a neve ou sopre o vento, nem que se alague o mundo ou lhe dê o tranglomango. (...) Foram as ordens, vieram os homens" (idem, 301-302, idem)

    À mentalidade da época setecentista, D. João V (o Magnânimo) deixou a sua marca na terra: no temor sério do que seria o esquecimento provocado pela morte, cumpre os prazeres do corpo sem renegar, à sua peculiar maneira de representante divino na terra, os da alma.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Nova dúvida linguística... já velha

    No domínio da sintaxe, a questão das funções sintácticas e o esclarecimento acerca dos complementos de nome têm vindo a tornar-se uma constante, tanto pela noção deste complemento em si como pela relação / diferenciação face a outras funções.

    Q: Num manual, surge a definição de "complemento de nome" da seguinte forma: "Complemento do nome é um constituinte do grupo nominal que se encontra à direita do nome e é seleccionado por ele, podendo desempenhar a função de predicativo do sujeito ou de predicativo do complemento directo." Então o predicativo do sujeito não está integrado no predicado e não é pedido pelo verbo?

     R: Obviamente, a definição dada não está correcta, até pela formulação que não consegue destrinçar funções sintácticas básicas de outras de natureza interna. O "complemento do nome" não se confunde com as funções mencionadas. A ter alguma aproximação com elas será sempre num mecanismo de dependência e de expansão / alargamento do núcleo que desempenhe tal função sintáctica (ou seja, enquanto função sintáctica interna):

i) O meu próximo projecto é a construção da ponte.

   [no predicado - 'é a construção da ponte' - aparece um predicativo do sujeito - 'a construção da ponte' -, o qual é constituído por um grupo nominal expandido por um complemento de nome: 'da ponte']

ii) A oposição considerou o diploma uma decisão governativa.

    [no predicado - "considerou o diploma uma decisão governativa" - surge um complemento directo - "o diploma" - acompanhado de um predicativo do complemento directo - "uma decisão governativa" -, sendo este último constituído por um grupo nominal que contempla um complemento de nome: "governativa"]

    O que de mais comum poderá acontecer ao nível dos complementos do nome é a sua abordagem enquanto função de uma sequência de expansão constitutiva dos grupos nominais que desempenham as funções básicas de sujeito ou complemento directo.
      Interessará sempre considerar, entretanto, se tal expansão é complemento ou modificador - a este propósito, confronte-se registo anterior.

     Trabalhar as funções sintácticas, numa perspectiva oficinal da língua, convoca o recurso a testes de identificação dessas funções, numa estratégia de manipulação, substituição, comparação, contraste (processos de reconhecimento e de crescente consciencialização e explicitação do conhecimento da língua).

terça-feira, 2 de junho de 2009

Nova dúvida linguística... no léxico

      Chegou a vez de uma questão centrada no domínio da lexicologia.

     Q: Li, num livro de apoio destinado ao primeiro ciclo, uma instrução que pedia para os alunos construírem uma área vocabular. É uma lista de vocabulário?

    R: Entende-se por "área vocabular" uma expressão sinónima de "campo lexical", ou seja, um conjunto organizado de palavras / expressões relativo a um determinado campo conceptual, comum a todos os termos que o constituam (ex.: campo lexical das cores: 'verde, amarelo, vermelho,…'; campo lexical da agricultura: 'campo, lavrador, arado, terra, …'; campo lexical das relações familiares: 'mãe, filho, pai, tio, …'; campo lexical dos sentimentos: 'amor, ódio, revolta, admiração, reconhecimento, solidariedade,…').
     Há autores que defendem que os elementos pertencentes a um campo lexical devem obedecer  a uma mesma classe de palavras – assim, para o campo lexical de um nome teríamos nomes (ex.: marinha > barco, velas, ondas, vagas, marinheiro,…); para o de um verbo teríamos verbos (ex.: mover > andar, caminhar, arrastar,…); para o de um adjectivo teríamos adjectivos (ex.: emotivo > comovente, choroso, alegre, triste,…). Todavia, não há consenso relativamente a este dado, tendo alguns outros autores preferido socorrer-se do conceito de campo associativo, como forma de combater algum espartilhamento.
     Campo associativo corresponde, então, a um conjunto organizado de termos pertencentes a classes de palavras distintas, mas relacionadas com uma área conceptual. Para o campo associativo de ‘movimento’ ter-se-ia, então, termos como 'mover, deslocação, trânsito, móvel, imóvel, voar, subida, descer, queda, marcha,…'. Trata-se, portanto, de um conceito mais abrangente do que o de campo lexical, se nos ativermos à consideração restrita deste último enquanto campo representado por uma mesma classe de palavras.

      Livros e fichas de apoio, gramáticas, manuais,... cada cabeça sua sentença.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Dúvida(s) linguística(s)... com ou sem desafio

    Começo a perceber o sentido da questão... e muitas são as razões para que dúvidas destas surjam, particularmente quando são aferidas em contextos de avaliação e se constituem como pontos a, de algum modo, reflectir e racionalizar nas práticas.

    Q: Não é a mesma coisa dizer 'grupo nominal' ou 'sujeito' da frase?

    R: Decididamente não. E por variadíssimas razões.
    Começo por indicar que não são confundíveis dois níveis de análise da língua, ainda que ambos pertencentes ao domínio da sintaxe: o nível da constituição ou combinação de palavras no interior de um grupo (normalmente com uma palavra-núcleo que dá nome a esse grupo, independentemente da posição ou da função que apresente na frase); o da função ou das funções desempenhadas por esse grupo na frase.
      Tipicamente, os grupos nominais têm um nome como palavra-núcleo, podendo ainda apresentar-se sob a configuração de um pronome, como se verifica nos itálicos em i-v:

i) Os alunos estavam atentos.
ii) Os alunos interessados estavam atentos.
iii) Os alunos interessados da turma estavam atentos.
iv) Os alunos interessados que tinham chegado tarde estavam atentos.
v) Eles estavam atentos.

     No caso de frases complexas, pode acontecer que toda uma sequência oracional subordinada acabe por ser recategorizada como grupo nominal (substituível, nomeadamente, por um pronome), como nos itálicos dos exemplos vi-viii:

vi) Fumar faz mal. > Isso faz mal.
vii) É bom que estudes nos tempos livres. > Isso é bom.
viii) Eu disse-lhe que ele estava errado. > Eu disse-lhe isso.

    Os grupos nominais podem, entretanto, desempenhar diversas funções sintácticas na frase. Nos exemplos i-v, os grupos nominais em itálico funcionam como sujeitos sintácticos. Porém, o mesmo grupo nominal de i) - 'os alunos' - assume funções diferentes nos exemplos ix-x:

ix) No recreio, o professor chamou os alunos. (complemento directo)
x) Estes são os alunos. (predicativo do sujeito)

      Num outro exemplo (xi), o grupo nominal 'os alunos' é um constituinte interno de um grupo preposicional que desempenha a função de 'complemento indirecto':

xi) O professor entregou os testes aos alunos.


      Outros argumentos mais podiam ser aduzidos. Creio que estes são suficientes para a resposta pretendida. Sublinharia o facto de toda esta reflexão se encontrar circunscrita a uma terminologia que nada tem de novo; a um conjunto de dados que não levanta questões dúbias (como, por exemplo, a de certos grupos nominais se assumirem, pelo menos à superfície, na configuração de adverbiais ou de funções sintácticas como modificadores).