segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Escrever (com) o espírito de si mesmo

    Formar palavras tem sido questão mais fácil de construir do que de estudar.

   Questões críticas, na formação de palavras, são as que se prendem com a História da Língua e a consciência não sincrónica dos estádios linguísticos.

   Q: Como se classifica a palavra "autopsicografia", quanto à sua formação? Já li duas interpretações: uma que a apresenta como prefixada (auto+psicografia), outra como composta morfológica. Qual a tua opinião?

     R: A palavra 'autopsicografia' é composta. 
      'Auto' é um radical grego com o sentido de 'próprio' ou 'de si mesmo' e entra na composição de palavras como 'autobiografia', 'autorretrato', 'autodidata' e 'autógrafo'. Assim, à base 'psicografia' (já de si complexa) é acrescida uma outra.
    Creio que a leitura prefixada da palavra decorre do facto de o radical grego ter sido empregue em 'automóvel' e, atualmente, pela forma truncada (auto) e num entendimento muito associado ao conceito mecânico da viatura, se ter dado origem a outros termos (como 'autoestrada' ou 'autódromo'). Ainda assim, trata-se de uma leitura indevida, pois Lindley Cintra e Celso Cunha apontam estes últimos exemplos, de segmentação e deriva semântica, como casos de recomposição.
   Em 'autopsicografia', o sentido do primeiro radical é marcadamente erudito, ligado ao que, no grego, era o significado originalmente estabilizado. Não há nenhuma deriva que o aproxime de questões de "pseudoprefixos", conforme se pode ler na Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984).

      Enquanto título de um dos mais conhecidos poemas pessoanos, a palavra composta em análise (a escrita reflexiva, da alma e/ou do espírito, produzida pelo próprio ortónimo) anuncia um metatexto fundamental acerca da produção poética e da teoria do fingimento poético presente no maior representante da Geração de Orpheu.

domingo, 29 de setembro de 2013

Recordações melódicas

    Até podia ter dado lugar a Rodrigo Leão, de tão falado que anda por causa da banda sonora de "O Mordomo".

      A verdade é que não foi tanto o contributo português que mais me marcou no visionamento do filme. Foi mesmo o "Black Power" e, em particular, esta interpretação de Dinah Washington:


I'll close my eyes

A song through its doors
Just as if it seems to know
I'm exclusively yours

Knowing this
I feel but one way
You will understand too
In these words that I say

I'll close my eyes
To everyone but you
And when I do
I'll see you standing there

I'll lock my heart
To any other caress
I'll never say yes
To a new love affair

Then I'll close my eyes
To everything that's gay
If you are not there
Oh, to share each lovely day

And through the years
In those moments
When we're far apart
Don't you know I'll close my eyes
And I'll see you with my heart


    Já por várias ocasiões me referi aqui ao poder negro das vozes e da música. Este é mais um exemplo.

    E assim fica a vontade, neste dia de chuva.

sábado, 28 de setembro de 2013

Desta vez... foi culpa de "O Mordomo"?

     Há quase um mês que o filme está em exibição e a sala estava cheia Fiquei pela segunda fila... da frente.

      Pelos críticos, parece não haver razão para tal. Para portugueses, o facto de a banda sonora ter ficado a cargo de Rodrigo Leão é já motivo (mais do que) suficiente para assistir ao filme. Ainda há quem se renda à presença de Oprah Winfrey entre as atrizes. Prefiro uma história, um percurso de vida humana a par da História que tanto tem de oficial como de (re)construção. O argumento não escapa a uma visão típica do "American Dream", não o do "Go West", mas o de uma espécie de realização ("fulfilment") dos desejos humanos expressa desde a Declaração da Independência (1776): "We hold these truths to be elf-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their creator with certain unalienable rights, that among these are life, liberty and pursuit of happiness". Todavia, nesta linha de consenso (por mais mítico, ritualizado e retórico que seja) visiona-se o percurso de um herói, nas suas qualidades e nos seus defeitos, a par do fio condutor de uma História (a da América) que muito teve e tem de crítico. 


     Nascido numa plantação de algodão da Georgia, Cecil Gaines (Forest Whitaker) vive o período de um regime esclavagista que teima em resistir na história americana e que marca a década de vinte do século passado. Abençoado pela proteção que lhe dão (desde a matriarca do patrão branco aos negros com que se cruza na sua fuga para a cidade), Cecil assiste à morte do pai, à loucura da própria mãe, à morte de um filho, à afirmação rebelde de um outro. Recomendado para servir os brancos nos mais luxuosos espaços, acaba por ser contratado para servir na "White House" como mordomo. Competente, de personalidade afável e atento àqueles que serve, encontrou aí a estratégia para sobreviver numa sociedade e num mundo que maltrataram, perseguiram e eliminaram muitos da sua cor.  De Dwight D. Eisenhower (década de 50) a Ronald Reagan (finais da de oitenta), assiste a tudo o que lhe é dado a viver na consciência clara do que é a cara do dever e a sobrevivência da sua própria face. Num inconformismo velado (demasiado para alguns), assim rouba um sorriso aos seus clientes e a todos aqueles a quem serve; conquista a felicidade que nunca sonhara ter; luta pacificamente pelo sentido de igualdade (para si e para os seus) a todo o tempo ameaçado.
    Depois de reformado, de ter perdido a mulher (Glória, representada por Oprah Winfrey) e o filho mais novo (Charlie, por Elijah Kelley), vive a realização do dever (bem) cumprido; a reconciliação com o filho mais velho (Louis, por David Oyelowo); a ascensão de um presidente de cor à república do seu país (Barak Obama). 
    Dos movimentos racistas do Ku Klux Klan às reações dos "Panteras Negras", dos apoios à supremacia da raça branca à afirmação cultural do "Black Power", das histórias e das relações com vários presidentes aos episódios de família, da condição de servir à de ser servido, das memórias que o limitam à discreta esperança que o motiva, tudo trata o filme, com Cecil a resistir, a manter-se na integridade e nas convicções que lhe permitem, no final, caminhar pelos corredores que bem conhece.

      Numa realização de Lee Daniels, "O Mordomo" inspirou-se no artigo "A Butler Well Served by This Election", da autoria de Wil Haygood (publicado, em 2008, no "Washington Post") e na verdadeira história de Eugenne Allen. Pelo exemplo de vida, pelo retrato da História e pelo sentido de equilíbrio que perpassa nos vícios e nas virtudes do tempo e das pessoas representdas, vale a pena ver esta película.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Com defeitos destes, devia chamar-se a ASAE

      O dia foi "de molho", como é costume dizer daqueles que dão em forte chuva (e trovoada).

    Ainda assim, não houve aqui razões para impedir o reencontro de professores com ex-alunos de uma turma especial da ESG, numa confraternização que já vai sendo hábito na última sexta-feira de setembro.
    A comer e a beber, além de muita conversa, cumpriu-se o convívio. Tudo satisfeito e uma vez paga a conta, só no exterior é que deu para ver o defeito:

Pormenor de uma fotografia: a evidência do erro

     Está mal! Assim a francesinha não é boa! Isto de confundir os diminutivos 'inha' e 'zinha' já não dá com nada, muito menos com a iguaria que deliciou os convivas. Alguns até quiseram a denominada 'especial' e apanharam, no final, com o erro. Como 'francesinha' vem de 'francesa' (estando esta escrita com 's'), mantenha-se o sabor (no paladar) e o saber (na língua... a portuguesa, claro está)!
     A francesinha pode ser "c/batata", mas devia ser "s/" a letra 'z'.

     Não tivesse já pagado a conta e tinha pedido desconto, a título da imperfeição no anúncio do produto. Assim, de barriguinha cheia, saí e fiquei mal "na vista".

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

"Natália é nome de bairro..."

     Este é o título de um texto noticioso, produzido por Sérgio Almeida (Jornal de Notícias, 14/09/2013), que abriu o caminho.

    Assim se deu início às aulas de Literatura Portuguesa: ouvindo a notícia, pedindo a tomada de notas, recuperando a informação ouvida, (re)construindo a figura da poeta (que não quis ser chamada de poetisa).
     Do que se falou e do que se ouviu, faltou depois o mais importante: os textos da escritora.
    Pedi um exemplar de poema para trazer para a aula, à escolha dos alunos. Objetivo: preparar a leitura oralizada, justificar a escolha feita. Sem grandes pretensiosismos - apenas o de contactarem com os textos, o de se reverem de alguma forma nestes e o de transmitirem como se fez o encontro, a aproximação.
    Hoje foi o dia de lerem os poemas que trouxeram (a maioria, transcritos no caderno; outros, em fotocópia; talvez um dia chegue a vir o livro). Alguns fizeram-no com o ritmo, o trejeito do olhar, a ironia, a exaltação, a conjugação do coro de vozes. Até houve bastante variedade poética: do 'Auto-retrato' a 'O fim do Coito' (ou o mais conhecido 'Poema do Truca-Truca'); de 'Queixa das almas jovens censuradas' a 'Bilhete para o amigo ausente'; 'Do Sentimento Trágico da Vida' a 'O Espírito'; de 'Nuvens correndo num rio' a 'Andar?! Não me custa nada''; de 'Poema' a 'Poema Involuntário'; de 'Paz' a 'Ode à Paz'. Ofertei-lhes um outro na forma de separador, na senda de um setembro poético.
     Também na sala dos professores se falou da autora e de alguma da obra. Lembraram-se algumas irreverências; recordaram-se outros poemas:


    Quanto à aula, espero que tenha servido para dar a conhecer os versos (e só estes) de alguém que os jovens diziam, no início da semana, não saber sequer o nome.

     Não foi uma completa tertúlia, mas não andou longe disso no que significou de partilha, de voz dada à poesia e à poeta.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Ramos Rosa

        Dia de morte para a poesia, em particular, e a literatura portuguesa, em geral.

     Aos oitenta e oito anos, António Ramos Rosa reescreveu, pela última vez, um dos seus mais emblemáticos versos. Mais do que falar da sua morte (que marca o dia de hoje), parece que o poeta quis afirmar a vida e o que de virtuoso ela tem. Na sua fecunda produção poética, há sol quanto baste para se poder dizer, citando-o, que...

Imagem do poeta num desenho a grafite de Helder de Carvalho

Estou vivo e escrevo sol

Eu escrevo versos ao meio-dia 
e a morte ao sol é uma cabeleira 
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo 
Estou vivo e escrevo sol 
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam 
no vazio fresco 
é porque aboli todas as mentiras 
e não sou mais que este momento puro 
a coincidência perfeita 
no acto de escrever e sol 
A vertigem única da verdade em riste 
a nulidade de todas as próximas paragens 
navego para o cimo 
tombo na claridade simples 
e os objectos atiram suas faces 
e na minha língua o sol trepida 
Melhor que beber vinho é mais claro 
ser no olhar o próprio olhar 
a maraviha é este espaço aberto 
a rua 
um grito 
a grande toalha do silêncio verde

in Estou Vivo E Escrevo Sol (1966)

       No confronto do silêncio e da palavra, o rumo poético faz-se na busca da felicidade, rimada com a verdade e a cor da esperança. 

         Este é o maior legado de quem fez da poesia e do desenho expressões para um sentido de vida composto de imagens e gestos criados na leveza, no desprendimento e na liberdade de um espírito aberto e atento a "cada árvore (...) um ser para ser em nós" e que não podia "adiar o amor para outro século" nem podia " adiar o coração".

domingo, 22 de setembro de 2013

E (re)começa o outono...

     É ainda com as cores e o calor do verão que chega o outono.

     Os ingleses dizem que é "The Fall". 
     Depois do calor e das intensidades que o estio oferece, amarelecem as folhas, até que caem.

       CANÇÃO DE OUTONO

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão...

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

                                                 Cecília Meireles

    Nas folhas caídas, há uma viagem que, do alto das árvores até ao chão, traça uma passagem: a do tempo que, por mais que voe e nos ultrapasse, deixa marcas para dele toda a gente se recordar.

     Foi embora o verão, começa hoje o outono, chegará a vez do inverno, que dará em primavera.

     

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Acordo tem limites

      A propósito do Acordo Ortográfico, hoje surgiu uma questão a que o dito não se aplica.

      Há frutos que deixam de o ser (se é que alguma vez o foram).

     Q: Olá,Vítor. Tenho uma dúvida de "Acordo". O miúdo na composição escreveu Armação de Pera (e não Pêra), ao qual foi assinalado erro. Ele continua a justificar, com o Acordo, a palavra 'Pera'. Como ele começou logo com o "acordo" incorporado no ADN linguístico percebo a justificação. Andei a pesquisar na net..., mas confesso que, nestes casos, nada melhor que perguntar a quem sabe do assunto. Se puderes dar-me uma ajuda, agradeço. 

     R: Ora viva. O miúdo teria toda a razão se estivéssemos a considerar a peça de fruta. Não é o caso. O Acordo Ortográfico não prevê alterações nas assinaturas legalmente registadas de nomes associados a pessoas (antropónimos), localidades (topónimos), além de marcas, títulos, nomes de sociedades ou firmas comerciais. Daí manter-se a escrita Armação de Pêra, enquanto nome de localidade que os usos e costumes estabilizaram.

     Um dos limites das convenções terá sempre a ver com o que os falantes de uma língua identificam como comummente fixado nos hábitos e costumes. No que às designações dos locais diz respeito, a questão é cultural, histórica e temporalmente marcante; legalmente identificada nos e pelos registos formais produzidos nesses mesmos lugares.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Lírico: do texto ao canto

    Hoje foi tempo para falar de texto lírico. Houve quem se lembrasse de canto lírico, mas de tenores ou sopranos a questão foi mais difícil.

    Porque um dos pontos do programa é precisamente o da poesia lírica (cantada e configurada na expressão emotiva de um 'eu'), procurou-se recuperar a noção de 'lírica' no que tem de modo literário e de afinidades com outras expressões artísticas.
    A música, no género do canto lírico, é uma aproximação feliz. Todavia, referências como Plácido Domingo, Josep Carreras ou Luciano Pavarotti não parecem dizer muito à maioria dos jovens. Lembrei-me, então, de Freddie Mercury: não é cantor lírico, mas ainda há quem se lembre que o vocalista dos Queen cumpriu um dueto com a soprano Montserrat Caballé. Ouvir "Barcelona", na interpretação dos dois cantores, é um exemplo dessa intensificação emotiva que tanto caracteriza o lirismo.

Montagem de som e imagens, a partir de recolha na Internet
(vídeo original da composição em https://youtu.be/Y1fiOJDXA-E)


     BARCELONA

Barcelona Barcelona

I had this perfect dream
Un sueño me envolvió
This dream was me and you
Tal vez estás aquí
I want all the world to see
Un instinto me guiaba
A miracle sensation
My guide and inspiration
Now my dream is slowly coming true

The wind is a gentle breeze
El me habló de ti
The bells are ringing out
El canto vuela
They're calling us together
Guiding us forever
Wish my dream would never go away

Barcelona!
It was the first time that we met
Barcelona!
How can I forget
The moment that you stepped into the room
You took my breath away

Barcelona!
La música vibró
Barcelona!
Y ella nos unió
And if God is willing
We will meet again
Someday

Let the songs begin
Déjalo nacer
Let the music play
Ahhhhhhh...
Make the voices sing
Nace un gran amor
Start the celebration
Ven a mi
And cry!
Grita!
Come alive
Viva!
And shake the foundations from the skies
Ahhhh, Ahhhh.... Shaking all our lives

Barcelona!
Such a beautiful horizon
Barcelona!
Like a jewel in the sun
Por ti seré gaviota de tu bella mar
Barcelona!
Suenan las campánas
Barcelona!
Abre tus puertas al mundo

If God is willing
If God is willing
If God is willing
Friends to the end
Viva!
Barcelona!

       E segue-se uma das versões ao vivo, em Ibiza, corria o ano de 1987:

O dueto de Mercury e Caballé (Ibiza, 1987)

      Uma combinação de rock e da ópera resultou no dueto de uma soprano e de um vocalista rock que, em voz de barítono, compôs uma canção para a cidade, tornada hino dos jogos olímpicos de 1992. Composta em 1987, a composição viria a ser gravada um ano depois. No dia dos jogos, Freddie Mercury já não era vivo.

    Tudo para dar conta da emotividade, da projeção que a intensidade sentimental traz à arte (seja ela música seja ela literatura, ou, mesmo, pintura).

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Homonímias

      Hoje alguém comentava comigo uma imagem. Teve dúvidas, perguntou e obteve resposta.

      Nada disto tinha sido preparado, mas na base de um diálogo de aula, saiu o 'penso' enquanto forma do verbo 'pensar'. Surgiu entretanto outro 'penso': o do adesivo para curativo. Foi então que alguém se lembrou de falar nesta imagem:


     Outro alguém perguntou se tinha alguma coisa a ver uma com a outra. Na inocência da pergunta, veio a complicação da resposta: se 'pensar' fosse sinónimo de colocar um penso, tem tudo a ver, por certo; se tiver o significado de refletir, já não tem nada.
      Conclusão: a propósito das relações lexicais, tratou-se a homonímia (a etimologia do verbo latino pensāre / penso associada ao sinónimo cogitar não se confunde com o verbo 'pensar' relacionado com o nome 'penso' e os sufixos 'ar').
      Entre os dois 'penso', há, portanto, uma relação homonímica na representação gráfica das palavras.

    Depois disto tudo, e nas suas diferenças, importa dizer que o 'penso' fez 'pensar' com tanta interação.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Na boquilha trazia o fogo; na voz, a intensidade dum trovão; nos versos, da guerra à paz e ao embalo

     Em tempos de ameaça bélica, a voz da paz ganha mais sentido.

     Assim começo, lembrando versos de Natália Correia no dia em que se comemora o seu nascimento. Foi há noventa anos, na Fajã de Baixo (ilha de S. Miguel). 
    A intelectual, a poeta (porque, no seu ver, a poesia era assexuada), a deputada, a cidadã interventiva e socialmente empenhada na afirmação do matricismo (enquanto expressão do feminino, da fonte matricial da humanidade) foi mulher de contundente e tumultuosa exceção e exaltação para um tempo que, por mais que não a acompanhasse nos ideais e na visão das coisas, se rendeu à capacidade oratória (entre o tom reflexivo e a teatralidade provocatória) posta ao serviço do valor da liberdade.
    Suas foram as noites do "Botequim", espaço de tertúlia para a cultura, a política, a criação artística, o encruzilhar de personalidades afins à sua, no fascínio espiritual da língua mátria; da pátria que deixou em direção ao "Templo" (a 16 de março de 1993); da frátria feita de igualdade e equidade - em suma, de fraternidade.
      Nos termos de Fernando Dacosta, que se referiu a "A Natalidade de Natália", "a ilha deu-lhe o gosto mágico pela vida", o mesmo gosto que a aproximou da poesia, desta fazendo território para um lirismo que a fez conviver com a tradição e a modernidade, a narratividade poética ou a poesia narrativa, o espírito que casa o fim com o princípio num retorno em constante e contínua renovação.


    FIZ UM CONTO PARA ME EMBALAR
Natália Correia, retratada por Bottelho (2010)
Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.


Rosas fatais, as três donzelas,
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.


in "Inéditos (1947-49), 
Poesia Completa

     Na prosa, no verso e na voz, Natália Correia nasceu para a intensidade das palavras do amor sedutor de um Eros e a (pre)ocupada consciência do caminho para Thanatos ou "o lugar / onde cai o véu / do mistério final".

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Entre acrónimos e amálgamas

     No domínio da lexicologia, há questões que se cruzam com processos (irregulares) de formação de palavras.

      A dúvida colocada centra-se em dois desses processos produtivos na construção neológica do léxico.

      Q: Vítor, quando puderes, esclarece-me, por favor, a seguinte dúvida: considerando as definições (do Dicionário Terminológico) para acrónimo ("Palavra formada através da junção de letras ou sílabas iniciais de um grupo de palavras, que se pronuncia como uma palavra só, respeitando, na generalidade, a estrutura silábica da língua") e amálgama ("1. Processo irregular de formação de palavras que consiste na criação de uma palavra a partir da junção de partes de duas ou mais palavras; 2. Palavra resultante do processo de amálgama"), em qual das duas se insere a palavra DECO? E, já agora, uma breve explicação. Muito obrigada.

      R: DECO é um exemplo de acrónimo, atendendo à recuperação das sílabas e/ou letras iniciais da expressão "DEfesa do COnsumidor".
        No caso das amálgamas, a consciência dos constituintes dos novos termos formados é bem mais ampla: as partes das palavras constituintes não se reduzem a letras ou a uma sílaba inicial (podem ser iniciais ou finais), para além de estarem implicados processos diversos de fusão / sobreposição / interseção / reconstrução / supressão simultânea de segmentos.
          A título de exemplo, nas amálgamas podem ocorrer processos como:
a) sobreposição de um denominador comum de segmentos - ex.: perFUME+FUMEgante > perFUMEgante;
b) junção da redução de duas ou mais palavras, compondo novo termo (sem ou com sobreposição dos termos reduzidos) - ex.: CRÉDIto para teleFONE > Credifone; MOTor hoTEL > Motel
c) junção, com inversão, da redução de uma palavra (com múltiplas sílabas) face a uma segunda palavra - ex.: 'taxa [E][CO]lógica' > Ecotaxa; buro[CRA][TAS] [EU][RO]peus > Eurocratas
d) fusão, numa expressão, de sílabas iniciais com finais, com supressão simultânea de outros segmentos - ex.: SEnhOR(a) douTOR(A) > Setor(a); DICIOnário e encicloPÉDIA > Diciopédia
e) eliminação, por sobreposição, de letras / sons - ex.: Não e sIM > Nim.
      Em suma, na diferenciação dos dois processos, interessará sublinhar que, no caso dos acrónimos, não se pode propriamente falar de interseções, misturas, sobreposições, o que faz da amálgama um processo distinto, que alguns estudiosos também designam de 'contaminação' na formação neológica de uma língua (como, por exemplo, o caso do inglês quando formou o termo 'smog' < SMOke+fOG).
      Espero ter sido esclarecedor.

     Um caso de estudo, por certo, para marcar como a formação de palavras é uma área de trabalho no entrecruzamento de várias perspetivas de análise da língua (não apenas da morfologia).

sábado, 7 de setembro de 2013

No rio... não sobre o rio

      Com ou sem contração, a questão não é só a da preposição.

    Miguel Torga falaria de "O sol, esse Van Gogh desumano..." (in "Douro"). Eis a razão para que na verdura fluída se desenhe o arco rendilhado, o tabuleiro altaneiro e as paralelas cordas a unir a realidade ao quadro natural oferecido pelo Douro, no fim de uma tarde de verão.

Ponte Luís I refletida no rio (Fotografia VO)

     Não são "telas amarelas, calcinadas, / [que] Fremem nos olhos como um desengano" (in "Douro"). É o verde matizado de "charco de luz" (in "São Leonardo da Galafura") numa representação geoliterária que se pinta como

DOIRO

Corre, caudal sagrado,
Na dura gratidão dos homens e dos montes!
Vem de longe e vai longe a tua inquietação...
Corre, magoado,
De cachão em cachão,
A refractar olímpicos socalcos
De doçura
Quente.
E deixa na paisagem calcinada
A imagem desenhada
Dum verso de Frescura
Penitente


     A visão do poeta para a beleza que um rio transporta: entre a sagração divina e o sofrimento humano; entre a dureza granítica e a libertação vivida no mar. Tudo numa cidade animada pelo sabor de férias que deixa ainda viver nos inícios de setembro.

    Assim foram as cores, de luz, e os ecos, poéticos, de um sábado ainda livre.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Falares... com pronúncia do Norte.

     A propósito de um pedido de colaboração, no âmbito dos falares do Português, recupero os sons e os sentidos de uma canção.

     É certo que todas as línguas têm uma melodia própria.
     Há mesmo quem procure caracterizar os falares distintos de cada língua.
    A pronúncia do norte de Portugal tem uma canção só para ela. Assim o interpretou Rui Reininho (vocalista do grupo Grupo Novo Rock - GNR), em colaboração com Isabel Silvestre (cantora portuguesa identificada com os cantares folclóricos de Manhouce - região influenciada pelo Douro e Beira Litoral), no álbum Rock in Rio Douro (1992):


         PRONÚNCIA DO NORTE

Há um prenúncio de morte
Lá do fundo de onde eu venho
Os antigos chamam-lhe ralho
Novos ricos são má sorte

É a pronúncia do Norte
Os tontos chamam-lhe torpe

Hemisfério fraco outro forte
Meio-dia não sejas triste
A bússola não sei se existe
E o plano talvez aborte

Nem guerra, bairro ou corte
É a pronúncia do Norte

Não tenho barqueiro nem hei-de remar
Procuro caminhos novos para andar
Tolheste os ramos onde pousavam
Da geada às pérolas as fontes secaram

Corre um rio para o mar
E há um prenúncio de morte

E as teias que vidram nas janelas
esperam um barco parecido com elas
Não tenho barqueiro nem hei-de remar
Procuro caminhos novos para andar

E é a pronúncia do Norte
Corre um rio para o mar


   Na variação que o Português possui, "Nem guerra, bairro ou corte" é o que se impõe, para reconhecimento de uma diversidade e riqueza linguísticas feitas de um tempo ainda em curso ("Meio-dia não sejas triste") e de um espaço com múltiplas coordenadas ("A bússola não sei se existe").

    Está aí a natureza viva da língua: (sobre)viver na sua progressiva atualização e ativação, à procura de "caminhos novos para andar".

domingo, 1 de setembro de 2013

Setembro a começar

     Mudou o mês. Anuncia-se novo ciclo...

   Não é por certo mês do meu agrado, pelo que tem de aproximação de fim para um tempo livre e de arranque para ritmos cada vez mais pesados.
   Por ser setembro, lembrei-me de uma música e de uma letra que fica, só na sonoridade, entre o diminutivo da manhã (morn) e a ameça do lamento (mourn) - homofonias que as lantejoulas dissipam.
    

      SEPTEMBER MORN

Stay for just a while
Stay and let me look at you
It's been so long, I hardly knew you
Standing in the door

Stay with me a while
I only wanna sing for you
We've traveled halfway 'round the world
To find ourselves again

September morn
We danced until the night
Became a brand new day
Two lovers playing scenes
From some romantic play
September morning
Still can make me feel that way

Look at what you've done
Why, you've become a grown-up girl
I still can hear you crying
In a corner of your room
And look how far we've come
So far from where we used to be
But not so far that we've forgotten
How it was before

September morn
Do you remember
How we danced that night away
Two lovers playing scenes
From some romantic play
September morning
Still can make me feel that way

September morn
We danced until the night
Became a brand new day
Two lovers playing scenes
From some romantic play
September morning
Still can make me feel that way

    Valha o escrito para se afirmar o revivalismo romântico e a expressão dos reencontros, nem que seja os que se (re)constroem com a memória.

     Mais um mês com direito a música. E o tempo a passar...