segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Voltando à transitividade indireta

     De volta à sintaxe e às funções sintáticas. Assim seja!

     Porque há construções que trazem algumas particularidades à análise, aqui vem nova questão, para mais uma resposta.

      Q: Na frase "Não gosto que saias sozinho à noite", a oração subordinada completiva desempenha a função sintática de complemento direto ou oblíquo? Quando faço os testes de questionação ou de substituição, inevitavelmente, faço-os acompanhar da preposição "de" - "De que (é que) não gosto?"; "Não gosto disso".

       R. Precisamente pelos testes de veri-ficação apontados, trata-se de um complemento oblí-quo.
      Contrariamente a outros verbos que admitem variação na transitividade e na construção que configura esta última (nomeadamente com a aplicação de testes que reconhecem essa possibilidade de variação), o mesmo não sucede com a frase proposta, por causa do verbo na frase matriz (GOSTAR). Este implica uma estrutura argumental apoiada no uso de um complemento oblíquo, independentemente da sua configuração. Trata-se, pois, de um verbo transitivo indireto, com a possibilidade de a preposição surgir ou não:

    Isto de gostar ou não (seja lá DO que for) não tem variação, por mais que seja omitida a preposição (com ou sem contração).

sábado, 28 de novembro de 2015

Nem tudo o que parece é!

      Alguém se queixava há pouco tempo de já não saber em quem acreditar...

     É fruto dos tempos, cada vez mais relativizados em referências, até porque muitas destas acabam por se desacreditar. Fica-se tudo por uma questão de publicidade, de imagem que interessa passar para um público que, não tendo muitas vezes tempo nem condições para fazer o que deve, se limita a aceitar o que lhe dão (por razões frequentemente muito discutíveis).
     Tudo isto por causa de uma pergunta que me faz lembrar algo a que já respondi há cerca de cinco anos.

      Q: Na frase "A determinada altura, o Mestre de Avis parecia que estava a desanimar", consideras 'que estava a desanimar' um predicativo do sujeito? No meu manual aparece esse exemplo numa sistematização de funções sintáticas, na sequência do verbo copulativo 'parecer'. Este 'parecer' é um verbo copulativo? Quando puderes... Obrigada.

        R: Ora cá está um caso bem claro (a propósito do próprio verbo) de que nem tudo o que 'parece' é. Nem o verbo parecer é copulativo nem o segmento em causa é predicativo do sujeito. A preocupação em dar etiquetas, sem testar o que se pretenda ensinar, ou mesmo em colocar num mesmo saco elementos bem distintos resulta numa inconsistência evidente (para não lhe dar outro nome).
         Primeiro de tudo, considere-se a seguinte comparação:

         i) O Mestre de Avis parecia que estava a desanimar.
         ii) Parecia que o Mestre de Avis estava a desanimar.

       O verbo sublinhado em ambas as situações equivale a 'dar a impressão de', sem permuta possível com um outro copulativo. Dizer 'O Mestre de Avis parecia desanimado / estava desanimado / continuava desanimado / ficava desanimado' convoca configurações típicas de predicados com verbos copulativos seguidos de predicativo do sujeito; todavia, o mesmo não sucede com as frases i) e ii):

         i') * O Mestre de Avis estava / continuava / ficava que estava a desanimar.
         ii') * Estava / Continuava / Ficava que o Mestre de Avis estava a desanimar.

      Se, por um lado, não há aproximação de 'parecer' a um verbo copulativo, a subordinada completiva finita 'que estava desanimado' remete, por outro lado, para um sujeito subordinado colocado na sua posição típica (anterior ao predicado subordinado, como em ii) ou numa posição invertida (situado, por uma estrutura de elevação, antes do predicado subordinante, como em i).
        Ou seja, "O Mestre de Avis" em i) não é sujeito sintático do verbo ´parecer', mas sim de 'estava a desanimar', conforme se verifica em ii). Nessa medida, o predicado subordi-nante ('parecia X') tem como sujeito um lugar vazio, correspondente a um sujeito nulo expletivo (que, por exemplo, no francês correspon-deria ao pronome 'il' - 'il semble que...' - e no inglês ao 'it' - 'It seems that...'). Mais uma razão para, neste contexto, não se classificar 'parecer' como verbo copulativo, por não manter ligação entre sujeito (nulo) e uma propriedade deste último (predicativo do sujeito).
         Em suma, estamos perante uma realização de 'parecer' como verbo pleno, transitivo, seguido de um complemento direto ('que [o Mestre de Avis] estava a desanimar'). O facto de a frase matriz apresentar um sujeito nulo expletivo é razão para se viabilizar a elevação do sujeito subordinado ('o Mestre de Avis') para a posição do primeiro.

      E para que não julguem que isto é complicação ou novidade minha, basta ler o que João Andrade Peres e Telmo Móia referem a este propósito nas Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Caminho, 1995, pp. 253 e seguintes). Já tem alguns anos, pelo que não é nova dos últimos tempos - já vai com vinte anos. Depois, se alguém certificou cientificamente o manual em causa, que responda publicamente pelo que fez (mal).
     

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Um "clássico" que é novo

       Não é contradição, não!

     "Clássico" é o título para uma nova canção do grupo português The Gift, banda de Alcobaça a celebrar 20 anos de carreira.
      A voz de Sónia Tavares junta-se aos nomes de Nuno Gonçalves, John Gonçalves e Miguel Ribeiro para dar continuidade a um projeto do género pop / rock / alternativo. Já com vários sucessos na sua discografia, este será, por certo mais um:

Vídeo Oficial de "Clássico", dos The Gift

          CLÁSSICO

Fecho a porta oiço um vazio
vou querer sobreviver ao dia de amanhã
olhos, cenas que não vou lembrar 
hei de encontrar, dignificar, 
o sol de uma manhã 

E agora, fraco ou forte, 
só me resta ir 
e acredito que no mundo 
há flores por abrir 
mesmo que sinta que algo em mim aqui morreu 
Juntos sou eu, 
só eu 
E existe um só céu, uma febre pagã 
e depois de um sim ou não 
há sempre um amanhã 
e agora sinto que algo em mim aqui morreu 
juntos sou eu, 
só eu 
juntos sou eu, 
só eu 
juntos sou eu 

Fecho a porta oiço um vazio 
vou querer sobreviver ao dia de amanhã 

e o mar e o sol e a chuva 
só me fazem ir 
e acredito que no mundo 
há flores por abrir 
eu vou 

e agora, fraco ou forte, 
só me resta ir 
e acredito que no mundo 
há flores por abrir 
mesmo que sinta que algo em mim aqui morreu 
juntos sou eu, 
só eu 

e o mar e o sol e a chuva 
só me fazem ir 
e no fim da grande estrada 
há sempre um partir 
mesmo que sinta que algo em mim aqui morreu 
juntos sou eu 
só eu, só eu 
juntos sou eu, 
juntos sou eu 
só eu 

eu vou 
e sinto que algo em mim aqui morreu 
juntos sou eu, 
só eu 

e agora, fraco ou forte, 
só me resta ir 
e acredito que no mundo há flores por abrir 
e agora sinto que algo em mim aqui morreu 
juntos sou eu, 
só eu 
juntos sou eu, 
só eu 
juntos sou eu

      Na música de Nuno Gonçalves e na letra deste último com Sónia Tavares, os The Gift dão-nos uma canção para futuro (por mais que seja um "clássico"), com um caminho, uma partida (feita de algo que morre, mas que segue junto de um 'eu' a buscar amanhã). Melodia de eleição, numa fantástica interpretação. Bela mensagem e canção.

      Interessa fazer caminho. Ir em frente, fraco ou forte (por mais que seja o que apenas resta). É o clássico da existência humana (para que se mantenha como existência).

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Escolher é preciso!

      Já o indiquei por várias vezes. Volto a dizê-lo. E não cansarei de o repetir.

      Tudo surge na sequência de um pedido de esclarecimento.

     Q: Na frase "Leu a mensagem inscrita nos vitrais da igreja", qual é a função do sublinhado? Complemento ou Modificador? Obrigada.

       R: Antes de responder diretamente, começo por um pequeno alerta: a resposta a dar vai estar ao nível de uma função sintática interna e não de um primeiro nível de análise.
          A um primeiro nível há um sujeito nulo subentendido (Ele), um predicado ("Leu a mensagem inscrita nos vitrais da igreja") e um complemento direto ("a mensagem inscrita nos vitrais da igreja"). Este último encontra-se expandido por um modificador restritivo do nome ("inscrita nos vitrais da igreja"). Portanto, "nos vitrais da igreja" não é um modificador do grupo verbal / predicado nem se situa ao nível de análise implicado no processo de 'leu'.
          Considerando apenas o modificador restritivo do nome, verifica-se que este é configurado por um adjetivo ('inscrita'). Só que este adjetivo advém do verbo 'inscrever' (pela forma de um particípio passado), o qual seleciona complementos para saturar o seu significado, na estrutura argumental. Nesta medida, tal como o verbo selecionaria um complemento, o mesmo faz o adjetivo a ele associado, pelo que 'nos vitrais da igreja' é um complemento do adjetivo - função sintática interna, a um nível de análise já bem distante das funções nucleares (do sujeito, do predicado e respetivo complemento direto).


         Em suma, o sublinhado é um complemento, mas não de um verbo - sim, de um adjetivo.

       A complexidade na classificação do sublinhado assenta numa lógica de dependências (resultante da expansão dos grupos de palavras representados, entre os superordenados e os neles radicados). Espero que a consideração do complemento do adjetivo seja inclusivamente entendida segu(i)ndo a analogia que se estabelece com o verbo que lhe subjaz. Por certo, trata-se de um exemplo de análise para níveis de ensino mais complexos. Há que escolher bem os casos a trabalhar em aula.

      

domingo, 22 de novembro de 2015

Gravidade

     Por ser grave? Por haver atração? Eis a questão.

    Há palavras que, de tão polissémicas, combinam uma comunhão de sentidos tão estreita quanto a que os sentimentos permitem. 
     Assim o parece dizer a canção interpretada pela cantora-compositora americana Sara Bareilles:

Vídeo 'Gravity', cantiga interpretada por Sara Bareilles

                     GRAVITY

Something always brings me back to you.
It never takes too long.
No matter what I say or do
I'll still feel you here 'til the moment I'm gone.

You hold me without touch.
You keep me without chains.
I never wanted anything so much
Than to drown in your love and not feel your rain.

Set me free,
Leave me be.
I don't wanna fall another moment into your gravity
Here I am and I stand so tall, just the way I'm supposed to be.
But you're on to me and all over me.

Oh, you loved me 'cause I'm fragile
When I thought that I was strong.
But you touch me for a little while
And all my fragile strength is gone.

I live here on my knees
As I try to make you see
That you're everything I think I need here on the ground.
But you're neither friend nor foe
Though I can't seem to let you go.
The one thing that I still know is that you're keeping me down.

You're keeping me down, yeah, yeah, yeah, yeah
You're on to me, on to me, and all over...

Something always brings me back to you.
It never takes too long.

     No seio da polissemia, talvez haja alguma gravidade nessa outra que une dois seres que se ama(ra)m; contudo, bom é que a primeira deixe de existir por a segunda a relativizar ou tudo fazer para ela não se faça sentir.

     No ponto em que se concentram os corpos há a gravidade consentida, não a gravidade (que se quer) impedida, e preventivamente evitada (tudo uma questão de "to drown in your love and not feel your rain").

sábado, 21 de novembro de 2015

Complemento... qual, afinal?!

       E depois da formação, lá veio uma questão - com toda a razão!

     É que nem sempre a formação é suficientemente clara, particularmente quando ela ocorre num contexto nem sempre oportuno e/ou ajustado às experiências e às práticas profissionais destes tempos tão sobrecarregados (mas que alguém gosta de sobrecarregar mais ainda). Deve ser prova de resistência!     

      Q: Olá, Vítor. 
        Desculpa incomodar-te mais uma vez, mas saí há pouco de uma formação e fiquei com uma dúvida: qual a função sintática da oração subordinada substantiva completiva "Penso que ele está em casa"? Para mim, seria CD, mas afirmaram ser CO. Na minha opinião, seria CO se se tratasse de um grupo preposicional, tal como em "Penso em ti." Obrigada pela atenção.

       R: Olá.
      O caso apontado faz parte de um mecanismo, entre os muitos que constituíram um estudo linguístico ao nível da sintaxe, denominado de transitividade e possibilidades alternativas de codificação - que pode ser encontrado na obra Gramática de Valências: Teoria e Aplicação, de Mário Vilela (Coimbra, Livraria Almedina, 1992, pp. 61-64). Genericamente, considera-se que as construções do complemento direto (CD) são por vezes alternativas de outras, nas quais ganham relevo construções preposicionais associadas a um só verbo:

a) Ele pensa isso / Ele pensa nisso
b) O governo cortou os salários da função pública / O governo cortou nos salários da função pública
c) Ele atirou a bola ao colega / Ele atirou com a bola ao colega
d) Ela encontrou as amigas / Ela encontrou-se com as amigas
e) O criminoso puxou ou sacou a pistola / O criminoso puxou ou sacou da pistola
f) O jovem gozou o colega / O jovem gozou com o colega
g) Os alunos cumprem os deveres / Os alunos cumprem com os deveres.

       Assim, estes são exemplos de construções não tipificadas de complemento direto, com verbos que procuram tornar saliente o objeto direto (ainda que precedido de preposição), encarado enquanto caso acusativo. Por mais estranho que possa parecer, a verdade é que há complementos diretos introduzidos por preposição, na linha do que Maria Helena Mira Mateus et al. já sistematizaram na Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pp. 286-7). Independentemente disso, quando se ouve / lê "penso", é admissível a questão 'o quê?' (ou mesmo 'O que é que pensas?') e a pronominalização da oração subordinada pelo pronome 'isso' (Penso isso > O quê? > Que ele está em casa).
         Posto isto, concordo com o raciocínio inicialmente construído ("que ele está em casa" é uma subordinada substantiva completiva, com a função de complemento direto). Problematizo a afirmação final ("Na minha opinião, seria CO se se tratasse de um grupo preposicional, tal como em "Penso em ti."): por mais que esta seja verdadeira para o exemplo dado, não o é nas situações em que o complemento direto admite preposição. Acrescento, por fim, que o complemento oblíquo nem sempre aparece configurado com um grupo preposicional: pode sê-lo com um grupo adverbial, por exemplo, como em "Moro ali / longe / perto".

     Com isto termino. Há que escolher bem a formação, sob pena de ainda podermos sair deformados.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Dos frutos de ferro às árvores-fábrica

    Tudo a propósito da 'Ode Triunfal' de Álvaro de Campos.

Interpretação icónica por Catarina Cruz 
(in http://dcvcatarinacruz.blogspot.pt/2011/04/segunda-proposta-de-trabalho-alvaro-de.html)
     Entre tudo o que o poema possa ser, nas múltiplas inter-pretações dele feitas, a leitura de uma ode aos sinais dos tempos modernos (feitos de sensações de diferentes tem-pos) impõe-se quando o heteró-nimo pessoano se questiona sobre tudo o que ante-riormente abordou (desde a exaltação da fábrica e das máquinas à consideração de espaços e de tipos sociais pautados pelo dinamismo e pela vitalidade sociais e civilizacionais).
   Serve a interrogação para a progressão textual que introduz um novo dado significativo:


                               " (...) 
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! 

                                      (...)"

     Afirma-se, então, o relevo do tempo, do "Momento" maiusculizado e repetidamente retomado, sempre feito de presente, a par das sensações a ele associados.
      Num texto de exaltação aos tempos modernos - nos quais a máquina, o motor, a fábrica, o calor, os óleos, a eletricidade e a voracidade se afirmam -, novos símbolos poéticos surgem. É o caso dos "frutos de ferro" e das "árvores-fábrica". A lógica integrativa dos primeiros nas segundas (seja pelos frutos das árvores seja pelo ferro que se revê nas fábricas) não deixa de resultar estranha aos olhos e ouvidos de alguns jovens, que julgam demasiadamente ousada e irreverente a construção destes novos conceitos artísticos.
    Não o achariam tanto se tivessem em mente a floresta de betão que algumas cidades têm, nomea-damente Roterdão, com as casas cúbicas - as Kijk-Kubus, em blocos de amarelo e cinza projetados original-mente pelo arquiteto holandês Piet Blom, nos anos setenta do século XX - no coração da urbe. São 38 habitações no total, com uma inclinação de 45º e pousadas sobre colunas hexagonais. Trata-se de um ícone arquitetónico construído acima do nível da estrada, com ruas e carros a passar por baixo, num sinal da modernidade e da reconstrução que a cidade tem vindo cumulativamente a sofrer desde os tempos da II Guerra Mundial.

      Uma ode ou canto poético lírico - em tom elevado e sublime - para um assunto de relevo e interesse para a humanidade. Assim acontece quando se fala do tempo, dessa categoria que na duração ou no instante acompanha a vida, a existência humana, por mais clássica ou modernista que seja.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Confusões... nada históricas (na língua, pelo menos)!

     Quando se procura abordar questões de História da Língua, na sua evolução fonética, dá nisto.

     Particularmente, tudo acontece porque frequentemente se confunde o domínio fonético (som) com o da grafia (escrita) e há a tendência para reproduzir erros.

   Q: A propósito dos fenómenos fonológicos de adição, a palavra 'home' é um bom exemplo para dar conta de uma paragoge do 'm' (home > homem)? Obrigado.

      R: Naturalmente, não é um bom exemplo, porque nem caso de adição (ou de inserção) se trata.
        Tomando como ponto de partida 'home' (que na forma arcaica da língua também teve a variante 'ome'), o que sucede na evolução 'home > homem' não é um caso de acrescentamento sonoro, mas a consideração de um traço de nasalidade na sequência vocálica final. Quando muito trata-se de um processo de nasalização - alteração de uma vogal / sequência vocálica final (coda silábica), a ponto de ganhar o traço nasal [~].
       Nesta medida, o 'm' é um simples grafema (letra) para registar, em termos de convenção ortográfica, a nasalidade presente no que poderia ser a representação fonética da palavra: [ˈɔmɑ̃j]

       E depois disto interessa-me dizer que da forma arcaica 'ome' para 'home(m)' também não houve nenhuma prótese (até porque o grafema 'h' não traduz nenhuma dimensão sonora como, por exemplo, no inglês, marcado pela aspiração).

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Bartolomeu de Gusmão... talvez sim, talvez não.

       Dizem que hoje foi o dia na provável data de morte do "Padre Voador", em 1724.

      Talvez sim. Segundo Memorial do Convento (1982) não é isso certo, chegando a apontar-se o dia dezanove. Também não é indubitável a causa da morte. Verdade é que Bartolomeu Lourenço de Gusmão morreu em Toledo, aos 38 anos, conforme o anuncia o músico Scarlatti ao casal Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas:

Baltasar, Blimunda e Bartolomeu (pela Éter-Produção Cultural)
      "Domenico Scarlatti pedira licença ao rei para ir ver as obras do convento. Recebeu-o o visconde em sua casa, não porque fosse excessivo o seu gosto pela música, mas, sendo o italiano mestre da capela real e professor da infanta D. Maria Bárbara, figurava, por assim dizer, uma emanação corpórea do paço. (...)
     Saiu o músico a visitar o convento e viu Blimunda, disfarçou um o outro disfarçou, que em Mafra não haveria morador que não estranhasse, e estranhando não fizesse logo seus juízos muito duvidosos, ver a mulher do Sete-Sóis conversando de igual com o músico que está em casa do visconde, que terá ele vindo cá fazer, ora veio ver as obras do convento, para quê se não é pedreiro nem arquitecto, para organista ainda o órgão nos falta, isso a razão há-de ser outra, Vim-te dizer, e a Baltasar, que o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para onde tinha fugido, dizem que louco, e como não se falava de ti nem de Baltasar, resolvi vir a Mafra saber se estavam vivos. Blimunda juntou as mãos, não como se rezasse, mas como quem estrangula os próprios dedos, Morreu, Foi essa a notícia que chegou a Lisboa, Na noite em que a máquina caiu na serra, o padre Bartolomeu Lourenço fugiu de nós e nunca mais voltou, E a máquina, Lá continua, que faremos com ela, Defendam-na, cuidem-na, pode ser que um dia volte a voar Quando foi que morreu o padre Bartolomeu Lourenço, Diz-se que foi no dia dezanove de Novembro, por sinal que nessa data houve em Lisboa uma grande tempestade, se o padre Bartolomeu de Gusmão fosse santo seria um sinal do céu, Que é ser santo, senhor Escarlate, Que é ser santo, Blimunda.

    Santo ou não, foi sacerdote secular e cientista português. Nascido no Brasil, é reconhecido como o inventor do primeiro aeróstato operacio-nal (“passarola” – mais conhecida na versão atual como balão de ar quente). O invento, comenta-do na Europa e apresentado em es-tampas fantasiosas como uma barca na forma de pássaro, foi polémico. Das tentativas mal sucedidas com pequenos balões ao grande aparelho que voou sem tripulação, há registos e testemunhos a atestar o acontecimento- tão inovador para a época como causador de intrigas, a ponto de Bartolomeu de Gusmão ter sido vítima da Inquisição, acusado de simpatizar com cristãos-novos. 
    De novo, entre o dizer e o ser há uma distância aqui e ali contrariada. Ora porque abraçou o judaísmo ora porque, à hora da morte, se confessou e recebeu a comunhão católica, este padre nasce e tem os restos mortais no Brasil (desde 2004, encontra-se na Catedral Metropolitana de São Paulo).

    Louco, talvez; mas, como diria Pessoa, o que é o ser humano sem a loucura sadia que o faz evoluir? Mantém-se na vida como cadáver adiado que procria. E isto Bartolomeu Lourenço de Gusmão por certo não foi.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

17-11-1717

     Com dois algarismos apenas (o um e o sete) se compõe uma data tão "magnânima"!

     Não fosse este o cognome do rei D. João V (a par de outros tantos que o povo lhe atribuiu) e a data não seria tão grandiosa, magnificente ou excelsa.
    Há 300 anos não estaríamos, por certo, muito longe do que José Saramago dá a ler em Memorial do Convento (1982), na divisão XII a que vulgarmente se dá a designação de capítulo:

Do autor e da obra
      "... entretanto começou a constar-se em Mafra, e foi confirmado pelo vigário no sermão, que vinha el-rei a inaugurar a obra da raiz dos caboucos para cima, colocando com as suas reais mãos a primeira pedra. Primeiro se anunciou que seria aos tantos de Outubro, mas não houve tempo para cavar os alicerces até à sua conveniente fundura, apesar de serem seiscentos os homens, apesar dos muitos tiros de pólvora que a todas as horas do dia vão atroando os ares, será então em Novembro, meados dele, depois não pode ser, que já seria como de Inverno, andar aí el-rei enterrado na lama até às ligas das pernas. Venha pois sua majestade para que se comecem os dias gloriosos da vila de Mafra, para que os seus moradores levantem as mãos ao céu, eles que com os seus perecíveis olhos vão ver a quanto alcança a grandeza de um rei, monarca sublime, graças a quem podemos gozar estas antecâmaras do paraíso enquanto às celestiais moradas não acedermos, tarde seja, que mais apetece estar vivo que morto (...).
      (...) Benzeu-se a cruz no primeiro dia, enorme pau com cinco metros de altura, que daria para um gigante, Adamastor ou outro, ou para o tamanho natural de Deus, e diante dela se prosternaram todos os presentes, e maximamente el-rei, derramando muito devotas lágrimas, e quando a adoração da cruz acabou, quatro sacerdotes levantaram-na em peso, cada qual seu extremo, e a arvoraram sobre uma pedra, adrede preparada, mas esta não a cortou Álvaro Diogo, com um buraco onde se lhe encaixou o pé, que, mesmo sendo a cruz divino emblema, não se aguenta se não ficar entalada, é o contrário dos homens, que mesmo sem pernas conseguem ficar direitos, a questão é quererem-no. Tocava airoso o órgão, sopravam os músicos, entoavam as vozes dos cantores, e, cá fora, o povo que não coubera ou estava sujo de mais para entrar, o povo que viera da vila e dos arredores, não admitido no sacro interior, contentava-se com os ecos das antífonas e das salmodias, e assim se acabou o primeiro dia. 
      Ai o dia seguinte, (...) ai o dia seguinte, retorne-se a exclamação, dezassete de novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete, aí se multiplicaram as pompas e as cerimónias no terreiro, logo às sete da manhã, frio de rachar, se achavam reunidos os párocos de todas as freguesias em redor, com os seus clérigos e muito povo, é forte presunção que tenha vindo desta ocasião o dizer, para uso dos séculos e das gazetas. Chegou el-rei pelas oito horas e meia, já tomado o chocolate matinal, serviu-o por suas próprias mãos o visconde, e então se formou a procissão, à frente sessenta e quatro religiosos arrábidos, depois o clero da terra, a cruz patriarcal, seis homens de opas roxas, os músicos, capelães de sobrepelizes, grande cópia de clérigos vários, um espaço livre a preparar o que aí vinha, e eram os cónegos de pluviais de tela branca e outras bordadas, adiante de cada um deles os seus criados nobres, empós, sustentando-lhes as caudas, os caudatórios, e atrás o patriarca com preciosos paramentos e mitra do maior custo, adornada de pedras do Brasil, depois el-rei com a sua corte, juiz e vereadores da terra, corregedor da comarca, e grande número de gente, passante três mil, se não se enganou quem a contou, e tudo isto por causa de uma simples pedra, juntou-se aqui um poder de mundo, clarins e timbales atroando os ares superiores e inferiores, e a tropa de cavalaria e infantaria, mais a guarda alemã, e outra vez o povo, muito povo, tanto povo, nunca a vila de Mafra vira tal ajuntamento, porém, não cabendo todos na igreja, entram os grandes, e dos pequenos só os que cabem e tiveram artes de insinuar-se, antes fizeram os soldados as aclamações da ordenança, era isto ainda pela manhã, serenara de vez o vento forte e o que corria era apenas uma viraçãozinha do mar que fazia fraldejar as bandeiras e as saias das mulheres, ventinho fresco como próprio da estação, mas os corações ardiam de pura fé, exultavam as almas, e se, de extenuadas, já algumas vontades queriam retirar-se dos corpos, vinha Blimunda e não se perdiam nem subiam às estrelas. 
      Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces, e depois foi tudo levado em procissão, de andor, dentro da urna os dinheiros do tempo, ouro, prata e cobre, umas medalhas, ouro, prata e cobre, e o pergaminho onde se lavrara o voto, deu a procissão uma volta inteira para mostrar-se ao povo que ajoelhava à passagem, e, tendo constantemente motivos para ajoelhar-se, ora a cruz, ora o patriarca, ora el-rei, ora os frades, ora os cónegos, já nem se levantava, bem poderemos escrever que estava muito povo de joelhos. Enfim se encaminharam el-rei, o patriarca e alguns acólitos para o sítio onde se havia de colocar a pedra e as pedras, descendo por uma espaçosa escada de madeira que tinha trinta degraus, porventura em memória dos trinta dinheiros, e de largura mais de dois metros. Levava o patriarca a pedra principal, ajudado pelos cónegos, e outros destes a pedra segundeira e a urna de jaspe, atrás el-rei e o geral da Sagrada Ordem de S. Bernardo, como esmoler-mor, e que, por o ser, levava o dinheiro. 
       Assim desceu el-rei trinta degraus para o interior da terra, parece uma despedida do mundo, seria uma descida aos infernos se não estivesse tão bem defendido por bênçãos, escapulários e orações, e se aluíssem estas altas paredes que formam o cabouco, ora não tema vossa majestade, repare como as escorámos com a boa madeira do Brasil por maior fortaleza, aqui está um banco coberto de veludo carmesim, é uma cor que usamos muito em cerimónias de estilo e de estado, com o andar dos tempos vê-la-emos em sanefas de teatro, e sobre o banco está um balde de prata cheio de água benta, e também duas vassourinhas de urze verde com os cabos guarnecidos de cordão de seda e prata, e eu, mestre-da-obra, verto um cocho de cal, e vossa majestade, com esta colher de pedreiro de prata, perdão, senhor, de prata de pedreiro, se pedreiros a têm, estende a cal, mas antes a espargiu com a vassourinha molhada na água benta, e agora, ajudem-me aqui, podemos assentar a pedra, porém, sejam as mãos de vossa majestade as últimas a tocar-lhe, pronto, um toque mais para toda a gente ver, pode vossa majestade subir, cuidado não caia, que o resto do convento nós o construiremos, e agora podem ser postas as outras pedras, cada uma em sua cabeceira desta, e tragam os fidalgos mais doze, número de boa fortuna desde os apóstolos, e conchas de cal dentro de cestos de prata, assim ficará mais aconchegada a pedra principal, e o visconde da terra quer fazer como vê aos serventes de pedreiro, leva o cocho à cabeça, assim mostrando maior devoção, já que não foi a tempo de ajudar o Cristo a levar a cruz, despeja a cal que o haverá de comer, não seria mau o efeito de estilo, porém esta cal não está viva, meu senhor, mas apagada, Como as vontades, dirá Blimunda.
      Ao outro dia, depois de el-rei partir para a corte, deitou-se abaixo a igreja sem ajuda do vento, apenas cho-via água que Deus a dava, puseram-se a um lado as tábuas e os mastros para necessidades me-nos reais, andai-mes, por exemplo, ou tarimbas, ou beliches, ou mesa de comer, ou rastos de tamancos, e os panos, tafetás ou damascos, as velas dos navios, cada um tornou ao seu natural, as pratas para o tesouro, os fidalgos para a fidalguice, o órgão para outras solfas, e os cantores, os soldados a luzir semelhantes paradas, só ficaram os arrábidos de olho alerta, e sobre a pedra cavada, cinco metros de pau crucificado, a cruz." 

     A ironia pode ser a de qualquer trabalhador da época, forçado que foi a cumprir os devaneios e as promessas reais; pode ser a de qualquer espírito crítico (de então ou de agora) que vê, nesta megalómana vontade joanina, um exemplo dos poderosos, sempre acima dos que herculeamente têm de trabalhar, pondo mãos à obra mas não ficando na história oficial dos acontecimentos (por mais que sejam os que carregam a cruz e sofrem das cruzes).

   O Palácio-Convento de Mafra, colosso do barroco português setecentista, é promessa arrancada ao rei (para os frades arrábidos): se a rainha concebesse um filho, que tardava a chegar, acolher-se-iam treze frades arrábidos num mosteiro que, no final da construção, acabou por albergar mais de trezentos e também abraçou um palácio real. Iniciado a 17 de novembro de 1717, o monumento só teria a sua sagração no ano de 1730 (no aniversário oficial do rei, claro está! Quem pode pode!).

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Tudo ao contrário!

     Começo a ficar ligeiramente farto de ler (ou ver escrito) ou ainda de ouvir o que alguns não querem dizer... mas assim o fazem repetidamente!

     É certo que quem fala /escreve tem uma intenção comunicativa. Pena é que, às vezes (para não dizer frequentemente), digam ou escrevam o contrário do que pretendam.
      Assim o provo com o excerto de uma carta:


      É, no mínimo, estranho (se não for incoerente) tanto agradecimento para quem vai 'de encontro a' um trabalho. Se ainda fosse 'ao encontro de', tudo seria mais explicável. Por norma, só um espírito muito cristão, benemérito ou altruísta é que se mostraria grato àqueles que com ele esbarram.
      Já foi aqui apontado que 'ir DE encontro A' (esbarrar, ir contra) é o contrário de 'ir AO encontro DE' (aproximar, apoiar, estar de acordo com). 

      É verdade: a troca de preposições dá em significado completamente antónimo. E não é preciso ser perito para chegar a tal conclusão; basta consultar um bom dicionário.

domingo, 15 de novembro de 2015

Imagine...

     Já que falei na canção no apontamento anterior...

    ... aqui fica não o original, mas uma versão de um espetáculo acústico dos Coldplay no Teatro Belasco (Los Angeles), num tributo a Paris e às vítimas do massacre de sexta-feira passada (dia treze, de horror, não de simples azar).

"Imagine", de John Lennon, num tributo dos Coldplay

   Esta, sim, seria a canção a cantar por e para todos os que sofrem num mundo feito de injustiças, desigualdades e afronta à própria dignidade humana. Melhor do que qualquer hino nacional, por certo (porque mais universal).

     Que a universalidade e a harmonia musicais apazigúem o que alguns homens quiseram destruir.

sábado, 14 de novembro de 2015

Afinal, sempre foi dia de azar... (bem pior do que isso!)

      Refiro-me ao dia de ontem - uma sexta-feira treze (de terror) que deu num sábado catorze (com dor).

    Vitimada pelo terrorismo, Paris acordou com a dor de uma noite sofridamente vivida e atrozmente marcada com mais de uma centena de mortos, na sequência de vários ataques a tiro e de bombistas-suicidas. O dia de azar deu em noite de terror. Entre reféns, feridos e mortos, o estado de emergência impôs-se no país que deu a conhecer ao mundo os valores da Liberdade - Igualdade - Fraternidade e que (re)descobriu o terror perpetrado pelo Estado Islâmico com sete ataques violentos em diferentes zonas da capital francesa.
     Discutem-se os motivos desta barbárie, pergunta-se em nome de quê toda esta tragédia, canta-se o hino francês (mais a parecer um grito de guerra já anunciado), marcha-se em homenagem aos que pagaram com a vida inocente (eternos desconhecidos, subitamente lembrados como mártires dos grandes valores e das grandes causas políticas), ouvem-se os discursos solidários dos que se dizem condoído (ainda que apenas pelo politicamente correto). Tanto assunto, tanta conversa para tão pouca ação!
    Aponta-se a diferença religiosa como a causa da catástrofe, esquecendo que qualquer crença, contrariamente a alguns homens (de tão diferentes credos), coloca o bem da vida acima de tudo:

     
      Comenta-se com facilidade aquilo que não é sentido nem vivido, salientando o medo que gera mais medo, numa irracionalidade em que só falar e nada fazer parecem ser as soluções para tudo (manter como está, para o bem de alguns poucos):


      Procura-se o que ninguém parece saber onde encontrar ou como lá chegar:

  
     E no meio de tudo isto sempre o Homem, dominando: o seu poder, a sua visão, os seus interesses e um sentido de vida que soa (cada vez) mais a destruição do que a realização.

      Por isso, no momento, só me apetece lembrar John Lennon e Imagine, no desejo de que o mundo "will live as one" - de novo a música como alternativa ao mundo infernal que vivemos (pena que seja só imaginação!)

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Não uma, mas um FACE com História

      Pode ser uma sexta-feira treze, mas hoje houve mais realeza (com a presença de "Sua Alteza" o rei D. Carlos) e excelência do que azar.

    Pelas 10:30, foram assinalados os 120 Anos da Concessão do Alvará Régio à Fábrica de Conservas Brandão, Gomes & C.ª, no edifício onde atualmente se situa o Fórum de Arte e Cultura de Espinho (FACE) - Museu Municipal de Espinho. Aí se encontra uma exposição permanente com evidências da visão progressista e da importância nacional e internacional da antiga fábrica de conservas espinhense, que recebeu um prestigioso alvará nos finais do século XIX (1895). Passados cinco anos do vergonhoso Ultimato britânico imposto a Portugal (inviabilizando o 'Mapa Cor-de-rosa'), Espinho, um lugar da freguesia da Anta à época, dava mostras de um sinal de desenvolvimento do país, da industrialização, do progresso e da aposta na excelência, sob a divisa "Melhorando sempre" e a ponto de os produtos produzidos e exportados desta "Real Fábrica de Conservas Alimentícias" passarem a estar à mesa do rei.
     A efeméride foi ainda abrilhantada por dois eventos:
   . uma dramatização com História, levada a cabo por um par de atores do Teatro Popular de Espinho - "Entrevista a El-Rei D. Carlos":

 
Excerto da dramatização levada a cabo no FACE

  . o lançamento do Jornal "Real Fábrica de Conservas Brandão, Gomes & C.ª", numa edição impressa à escrita da época.

Primeira página do jornal, reproduzindo o Alvará Real
      Do balanço final da atividade, que contou com a presença de alunos e professores da Escola Secundária Dr. Manuel Laranjeira, fica o registo do que eram a jorna (salário do trabalho diário) e o jornaleiro (o trabalhador que recebia a jorna); as condições do trabalho numa fábrica (entre o final do século XIX-início do XX, conforme um painel fotográfico revelador dos que se vestiam na especialidade laboral exercida ou dos que indiferenciada-mente aguardavam pelas necessidades do trabalho diário); o sentido estratégico da visão assumida pelos proprietários (que organizaram a fábrica por secções - conserva de sardinha, de frutas, de legumes, de caça, de doces, entre outros produtos, para além da produção das embalagens e da estampagem publicitária); o exemplo, o testemunho e a reflexão de que, mesmo em tempos críticos, o engenho, a audácia e a parceria constituem fatores primordiais para o desenvolvimento, o sucesso e o prestígio conquistados pelo trabalho.
    Uma ótima iniciativa na oportunidade e na mensagem, não esquecendo a companhia.

      Entre regeneradores e progressistas (tão alternada e ciclicamente revistos na governação do país na segunda metade do século XIX); entre crises nacionais e oportunidades económicas; entre trabalhadores especializados e outros que esperavam a sorte do dia, ficam aqui alguns apontamentos da(s) História(s) que o tempo repete.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A propósito de 'de paz'...

      Até podia ser por causa das guerras destes tempos, mas os motivos são outros.

      Chega mensagem e a resposta vai logo a seguir:

    Q: Na oração 'César promoveu uma época de paz', como classificarias sintaticamente 'de paz'?

      R: Trata-se de um modificador restritivo do nome. 
       A sequência 'uma época de paz' constitui o complemento direto da frase, apresentando este último um grupo nominal cujo núcleo ('época') é assumido por um nome que não seleciona complementos. Nesta medida, e independentemente de 'de paz' ter ou não de ser configurado na oração, é esse nome nuclear que determina a seleção ou não de argumentos acompanhantes, não sendo, portanto, ele um dos casos a considerar.


    Daí, internamente, o complemento direto apresentar um modificador que introduz propriedades adicionais na denotaçao de 'uma época', mas não um complemento implicado na estrutura argumental de 'época'.

      Diz o ditado, 'A César o que é de César'. A frase é sobre ele, mas a dúvida e a resposta, não. E disto não se faça mais guerra (porque 'de paz' é aquilo de que se precisa cada vez mais).

domingo, 1 de novembro de 2015

Ai, Pessoa! Como nos desafias!

      Começa bem o mês que, no seu final, tem Pessoa bem marcado.

     Nada como principiar com o poeta da Geração de Orpheu. Na sequência do trabalho com um poema, impôs-se a dúvida:

      Q:  Pode tentar classificar-me a oração "Que eu fosse outro" em "Tivesse Quem criou / O mundo desejado / Que eu fosse outro que sou,”Dei um nó.

      R: Os versos pessoanos transcritos (in "Guia-me só a razão") fazem parte de uma composição poética pautada pela constatação ora da consciencialização dos limites e do exercício da racionalidade ora da afirmação do plano da transcendência.


       É na segunda quadra que eles podem ser lidos, numa construção sintática densamente complexa cheia de hipérbatos, de anástrofes e de elipses, Nesta sequência, interessa, pois, reconstruir a ordem típica das palavras e explicitar a lógica discursiva associada ao pensamento transmitido. Ter-se-ia, então, na ordem padronizada, a frase 'Quem criou o mundo ter-me-ia criado outro, (se) tivesse desejado que eu fosse outro (diferente do) que sou'. 
       "Que eu fosse outro", na reconstrução feita, corresponde a uma oração subordinada substantiva completiva (a funcionar como complemento direto, introduzido pela conjunção completiva ou integrante 'que'), relativamente ao verbo 'desejar' configurado no pretérito mais-que-perfeito do conjuntivo ("tivesse... / ... desejado").

      No meio de tanta subordinação sucessiva (para a subordinante 'ter-me-ia criado outro'), há todo um processamento retórico e lógico-discursivo a complexificar a classificação de uma pequena palavra ("que") colocada no meio de um mar de complicações. Espero ter ajudado a desatar o nó.