segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Crazy... no meio da tempestade

     Junto ao mar revolto e a um extenso areal que não voa com o vento, pelo peso da chuva.

   Se esplanada lembra sol, brisa amena e maresia, nada como acordar para o mundo e ver-me protegido pelo envidraçado gotejado, uma ou outra vez escorrido por um fio de água que se deixa atrair pelo chão.
    Como se de restos de um naufrágio se tratasse, lá fora veem-se pedaços de madeira, fitas de algas, um ou outro vasilhame de plástico sobre grãos indistintos de um manto café com leite pintalgado, junto às dunas, de alguns tufos de verde.
     Vem, então, ao meu encontro a voz de Patsy Cline acompanhada da música...   
Composição da década de 60 (1961), de Willie Nelson

                  CRAZY

Crazy, I'm crazy for feeling so lonely
I'm crazy, crazy for feeling so blue
I knew you'd love me as long as you wanted
And then someday you'd leave me for somebody new
Worry, why do I let myself worry?
Wond'ring what in the world did I do?
Crazy for thinking that my love could hold you
I'm crazy for trying and crazy for crying
And I'm crazy for loving you
Crazy for thinking that my love could hold you
I'm crazy for trying and crazy for crying
And I'm crazy for loving you.

     Seleção oportuna.
     Nova melodia, já com tantas versões depois desta, de Nina Simone:



     A mais recente dos Muse ou ainda a de Michael Bublé não me fazem esquecer uma outra a que assisti em televisão no ano que ora finda, com uma candidata (a vencedora, por sinal) do X Factor: Melanie Amaro.

Versão musical de Melanie Ferraro (Feeling Good)


        FEELING GOOD

Birds flyin' high you know how I feel
Sun in the sky you know how I feel
Breeze driftin' on by you know how I feel
It's a new dawn, it's a new day, it's a new life for me
yeah, its a new dawn its a new day its a new life for me ooooooooh
AND I'M FEELING GOOD

Fish in the sea, you know how I feel
River runnin' free you know how I feel
Blossom on the tree you know how I feel
It's a new dawn, it's a new day, it's a new life for me
And I'm feelin good

Dragonfly out in the sun you know what i mean dont you know
Butterflies all havin' fun you know what I mean
Sleepin' peace when day is done that's what I mean
And this old world is a new world and a bold world for me

Stars when you shine you know how I feel
Scent of the crime you know how I feel
Your freedom is mine, and I know how I feel
It's a new dawn, it's a new day, it's a new life for me
(Free styling)
OH I'M FEELING GOOOOOOOOOOOOOD
 

    Em dia de final de ano, não podia haver melhores músicas, com três grandes vozes, para descrever um sentimento e o anúncio do desejo.

    Aqui se fecha um ciclo; um outro se abrirá, e que bem que fora se pudesse ser sinal de que amanhã "It's a new day, it's a new life!", "and I'm feeling good".

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Entre o mal e o bem, entre os grandes e os pequenos

     Depois da trilogia de O Senhor dos Anéis, uma outra se apresenta protagonizada por uma das personagens da primeira saga.

     Do mesmo realizador cinematográfico (Peter Jackson) e do mesmo autor da obra (J. R. R. Tolkien), chega à grande tela O Hobbit (Uma viagem inesperada), centrado num dos habitantes de Bag End: o halfling ou ser com tamanho de anão e de pés grandes chamado Bilbo Baggins.


    Em contraste com a trilogia inicial, esta nova produção revela algumas passagens com efeitos de humor bem conseguidos, sem deixar de abordar seriamente o conflito de forças entre o bem e o mal, num jogo em que se impõe o claro desequilíbrio dos protagonistas do bem (anões em luta contra um dragão vindo do norte, orcs, trolls ranhosos, goblins e outras figuras grotescas sempre apresentadas como possantes e em número bem superior).
  Recupera-se a geografia de Bag End apresentada em O Senhor dos Anéis (A Irmandade do Anel), embora o calendário da intriga desta saga seja narrativamente posterior à de O Hobbit. É também na casa de Bilbo (ainda jovem) que Gandalf, o feiticeiro, aparece, desafiando o hobbit para uma aventura, uma viagem: a da reconquista do poder dos anões, a da recuperação de um reino rico e poderoso que fora destruído por um dragão (apresentado no início e no final do filme como Smaug). Ao encontro das duas personagens vem Thorin Oakenshield, o neto do rei Thror, desapossado da herança de um reino poderoso (Erebor) coberto de ouro e de riquezas, particularmente de uma pedra preciosa (Arkenstone) de que Smaug tomara posse.
    Nesta enfeitiçante,  misteriosa e desafiante intriga, o espectador tem cerca de três horas de película para ver e uma brilhante banda sonora para ouvir, ao estilo do que a orquestra filarmónica de Londres tem para oferecer.
    Duas personagens ressaltam na intriga: Bilbo Baggins (interpretado por Martin Freeman) e o rei dos anões, Thorin (desempenhado por Richard Armitage). Se ao primeiro cabe mais ou menos aceitar o convite da aventura formulado por Gandalf - que o levará até à Terra Média e ao Reino Sob a Montanha -, ao segundo cabe um papel em tudo semelhante ao de Aragorn de O Senhor dos Anéis: figura real que lidera e procura reforçar os representantes do bem. No caso de O Hobbit, estes são treze anões, que contarão com a ajuda de Gandalf (Sir Ian McKellen), do feiticeiro Radagast (Silvester McCoy, a representar um feiticeiro de trapos distraído, interessado na flora e fauna) e do exército élfico chefiado por Elrond (Hugo Weaving).

    Mais um exemplo cinéfilo para o imaginário e a mitologia (re)criados por John Ronald Reuel Tolkien pelos anos vinte e trinta do século passado, num jogo de escrita que conjuga linguagem, mitologia, heroísmo, humor com um forte pendor histórica e tipicamente inglês.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Depois da vinda do Pai Natal

       Isto de o Natal ter Pai tem muito que se lhe diga, para não falar da festividade em si.

      É costume referir-se Nicolau, bispo turco da cidade de Myra, no século IV, como a figura que terá dado origem ao Pai Natal, recuperando-se neste último, e de forma mais abrangente, o gosto que o primeiro tinha de ajudar pobres e crianças, dando-lhes presentes.
      Anteriores à cristianização são os rituais pagãos de caça no inverno, que povos nórdicos e germânicos associavam ao deus Odin - deus supremo, da guerra e da sabedoria, apresenta-se forte e com longas barbas brancas, viajando pelos céus num cavalo esvoaçante; libertará o mundo do caos, no fim dos tempos. A absorção destas vivências nórdicas e pagãs pelos festivais cristãos relativos ao nascimento de Jesus terá feito aparecer a figura de Santa Claus no Norte, em tudo semelhante ao lendário Pai Natal da cultura ocidental.
       Hoje discute-se também o presépio, particularmente a presença ou não do burro e da vaca (ou boi).
     É um dado que a questão do presépio é distinta dos factos bíblicos, os quais são por si só já uma representação bem distinta do que historicamente possa ter acontecido. Aí não havia presépios - terá que se avançar até ao século XIII para mais um motivo natalício aparecer, algures pelas terras amalfitanas. Da Bíblia, todos sabemos a composição textual tão diversa nos géneros e registos quanto multifocada, ao apresentar e representar variadíssimos autores, mentalidades, povos, culturas. Entre o poético e literário, o inspirado, o profético e o testemunho histórico, há de tudo um pouco. Porém, referências a burros e vacas no nascimento de Jesus é que não, pelo menos no evangelho segundo S. Lucas, o mais extenso quanto ao tópico - capítulo 2, versículos 1-9. Aí apenas se mencionam pastores e rebanhos. Só os livros proféticos, precisamente o de Isaías, predizem o nascimento do salvador em Belém com os ditos animais: "O boi conhece o seu dono, e o jumento a manjedoura do seu senhor, mas Israel não me conheceu" (Is 1, 3). Entre a analogia construída para relevar a discrição no nascimento predito e a indicação de que havia bois e jumentos no presépio foi um pequeno passo para estes aí figurarem.
       Como a questão da fé ultrapassa o ponto relativo aos animais, muito mais tem que o fazer relativamente ao próprio calendário. 
     Se é a 25 de dezembro que se celebra o dia de Natal, ninguém sabe ao certo em que dia terá ocorrido o nascimento de Jesus. Muito improvável é que seja esta data festiva, a julgar pelas evidências seguintes: seria inusitado que nesse frio mês houvesse pastores a vigiar os seus rebanhos (o normal seria entre a primavera e o outono); não se fariam viagens de longa duração com pessoas grávidas em condições climatéricas e locomotivas adversas (de Nazaré a Belém a distância é superior a cem quilómetros, num tempo sem carros nem aviões); seria mais provável uma deslocação dessas nos finais de setembro, por altura das chamadas festas dos tabernáculos, segundo costumes pagãos; a tradição de apresentar os bebés num templo religioso mais a purificação das mulheres, a ocorrer até aos vinte e um dias após o parto, coincidem com o facto de Jesus ter sido levado ao templo de Zacarias, segundo registos locais, num sábado de setembro - com os censos em Belém, no tempo de Herodes, a acontecer entre 10 e 24 de agosto, o sábado de apresentação situar-se-ia 21 dias depois, ou seja, em pleno setembro. 
    Suplantam-se estas evidências com uma decisão da igreja: a calendarização do nascimento de Jesus adaptada ao período das festas pagãs ao deus Sol. O solstício de inverno a 21 de dezembro aponta para o dia mais curto do ano a dar lugar, quatro dias depois, a uma celebração ou ritual associados à consciência de que os dias se tornavam maiores, com o regresso do sol por um período maior. Nascia, assim, um novo ciclo da natureza.

      Perante tudo isto, é questão de somenos importância a existência de uma vaca / um boi ou de um jumento (ou por que razão não uma jumenta) na história. Permanece a magia do natal para quem a toma como sinal de fé para o nascimento de um novo ciclo, uma nova vida, liberta dos males ou das contingências que a possam de algum modo ameaçar.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Palavras natalícias (des)(en)cantadas

      Deixo as palavras nos versos do poeta...

Ladainha dos póstumos Natais 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que se veja à mesa o meu lugar vazio 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que só uma voz me evoque a sós consigo 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que não viva já ninguém meu conhecido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem vivo esteja um verso deste livro 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que terei de novo o Nada a sós comigo 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que nem o Natal terá qualquer sentido 

Há-de vir um Natal e será o primeiro 
em que o Nada retome a cor do Infinito 

David Mourão-Ferreira, in "Cancioneiro de Natal"

      ... para que se cante alguma da magia perdida da época ou para que se lembre um Natal que também existe, tão (des)(en)cantado como os restantes dias.
      Votos de Bom Natal.

sábado, 22 de dezembro de 2012

No tempo delas...

       A época de Natal parece propícia a complexidades ou dúvidas da língua.

      Já foi aqui discutida a questão do Pai Natal (no que toca à variação em número). Hoje o motivo é mais comestível.
      Entre as iguarias da mesa natalícia, contam-se, dizem uns, as filhós, dizem outros, as filhoses.
     E uns e outros têm razão, considerando que há dicionários que admitem, respetivamente, a entrada filhó e filhós (ambas no singular): Dicionário da Língua Portuguesa (Lisboa, Verbo, 2006); Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001 / Lisboa, Círculo de Leitores, 2002); Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa / Editorial Verbo, 2001); Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves (Coimbra, Coimbra Editora, 1966). 
      O facto de haver dicionários que só admitem a entrada 'filhó', de que é exemplo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo (Lisboa, Bertrand Editora, 1996), leva a admitir que esta terá sido a forma original, como, aliás, na década de trinta do século passado, Vasco Botelho do Amaral o implicita no seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa (Porto, Editora Educação Nacional, 1938), ao registar o seguinte:

«Ouve-se com frequência: "Não é por aí que vai o gato às filhoses." 
O plural de filhó é filhós. Mas esta forma é tomada vulgarmente por singular. 
E o povo diz filhoses por analogia com nozes, vozes, etc. 
Em português também já houve os plurais ouríveses, arrozes, etc. 
Escrever filhoz é erróneo.»

Foto apresentada no blogue magiadoce 
(in http://magiadoce.blogspot.pt/2010/12/filhoses-da-beira-baixa.html)

     Assim, contemporaneamente toma-se o singular 'filhós' como variante de 'filhó', cada um dos termos apresentando a sua flexão no plural: o último com a simples adição do sufixo gramatical 's'; o primeiro com a adição deste mesmo sufixo antecedido de um 'e' epentético, tipicamente presente na formação do plural das palavras terminadas em 'r', 's' e 'z'. 
     Sobre este processo de uma forma plural poder também designar o singular, Evanildo Bechara refere-o como "plural cumulativo", na Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pp. 128-129).

       Concessões que o tempo atribui a uma língua viva, a que os utilizadores não são obviamente estranhos interessados.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A noite do absurdo de todos os dias

      Saí de uma câmara de morte com tudo para a vida, à boa maneira existencialista.

     "In camera" (Huis Clos, no título francês) é o espetáculo levado à cena pelo In skené - grupo de Teatro de Amadores de Gondomar, até ao próximo dia 22, na Sala Monte Crasto - Multiusos de Gondomar.
    Apoiado no texto de Jean-Paul Sartre, pela tradução de Sofia Araújo e encenação de João Ferreira, há um percurso dramatúrgico a que os espectadores não são estranhos: o do acordar para a vida; o das máscaras colocadas nas caras e o dos jogos de força e sedução levados a cabo na existência; o dos caminhos dirigidos a um só fim. E depois...

Vídeo de Ricardo Pita

      A sugestão do vazio, do gelo, da gota que cai continuamente no balde de metal cruza-se com uma luz que dá a ver o que se foi e o que se descobre ser, como se todo o passado tivesse sido vivido em mera sombra. Libertos da caverna, e como se do mito platónico se tratasse, essa mesma luz fere, encandeia, até que dá a ver o que nem sempre se quer.
    Tudo meticulosamente preparado, colocado à disposição de um tempo eterno, feito de renovada estabilidade, qual estátua sem possibilidade de mudança.
      Em torno e ao nível de um palco que também é o do espectador (com um pé na vida real e outro na ficção pós-morte), o vazio vai sendo ocupado por uma angústia tão existencialista quanto desafiante nas forças, nos desconcertos e nos limites. Três passados, três existências dominadas por traços viciosos ou defeitos (Garcia, Inês e Estela) são discutidos, confrontados e analisados até à consciencialização do absurdo de um destino colocado frente aos olhos de todos, mas que ninguém parece querer ver.
      Com a obra, Sartre põe o dedo na ferida; com a peça, torna-se presente todo o ser, vivificam-se a ironia e o sarcasmo que destroem tantas máscaras da existência; arrancam-se risos denunciadores da avaliação de páginas de vida (redescobertas na morte), particularmente naquilo que elas já não podem mais ser ou fazer. Resta-lhes não poder escapar a um ciclo que se fecha, se repete na clausura: a de uma porta que, mesmo aberta, não é trespassada, por causa do que cada um interpreta de si mesmo e dos outros.

      Nessa condição, abandona-se a câmara, regressa-se à vida já não com a luz do dia, mas o escuro que impede o ser humano de ser transparente. Clara foi a qualidade do texto; das palavras recriadas no drama; das vozes escutadas; das representações a refletir, na perfeição, a atitude de desorientação e confusão face às vivências, bem como a fazer cair o "em-si" (recuperando o conceito filosófico de Sartre para a existência do mundo, nada mais sendo para além do que simplesmente se é) num "para-si" (mais do domínio da consciência analítica do espectador). Fragmentos de vida que só pela ficção se situam após a morte. Mais uma ótima representação do 'In skené'.
      

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Casas Pardas - do passado ao presente ou do presente no passado

     (ou o voo dos pássaros negros)...

    A encenação de Nuno Carinhas para este "romance em cena", numa adaptação dramatúrgica de Luísa Costa Gomes para a narrativa de Maria Velho da Costa, é uma autêntica polifonia de vozes e linguajares cruzados com uma policronia feita de várias coordenadas: a do jogo de tempos entre o passado e o presente vividos pelas personagens; a do passado que evolui para um presente análogo ao tempo da representação; a de um presente da representação que se revê nas crises de um passado (metaforizado no voo dos pássaros negros).
    É um tempo de crise que se impõe na intriga representada: "Casas Pardas" é a Lisboa do final da década de sessenta no século passado, sociedade agónica no período salazarista e salazarento, de conturbação política e social, com ecos da guerra colonial e das revoluções estudantis; é o tempo de uma ditadura pardacenta, hipócrita, que assiste ao terramoto trazido pela democracia, numa mudança que se perspetiva pela sensibilidade diferente e pela crítica acutilante de Elisa relativamente à mãe, à irmã Mary, ao cunhado (que corporiza a dissimulação e a perversão dominantes).
    Chegado o novo tempo - o da cara da aurora lavada na nascente -, reconhece-se uma nova realidade social, uma vivência mais aberta ao corpo, aos sentidos e às sensações - tempo de máscaras quebradas, derrubadas para que se possam construir novas memórias (combatendo os desmemoriados simbolizados pelo pai de Elvira).
     A deriva proposta em termos de tempo contrasta com a economia do espaço cénico. Este invade a plateia, numa aproximação significativa ao espectador, configurando a multifuncionalidade de um pátio (que, entre outros, é casa; que é estação; que é hospital; que é interior; que é exterior). Nele desfilam adereços, personagens, inconsciências, consciências, classes sociais, corpos, vidas, tempos em vaivém - ou, como a poetisa Ana Luísa Amaral o sugeriu no poema "Pardas Casas": 

"Pátios de fazer guerra contra as coisas
que podres deitam ramos e ruínas, 
e preparam os passos de passar".

     E porque tudo passa e se tende a desmemoriar, o espectador revisita, nesta encenação e neste cenário, sinais do "voo dos pássaros negros", crises políticas e sociais de um passado com tanto de comum ao presente. Por isso, a identificação com a personagem Elisa é inevitável, acabando-se por desejar uma "crise que combine comigo" / connosco, tal a distanciação construída entre o texto representado e o momento da representação (como se de uma dramaturgia de Brecht se tratasse).

      ... (à espera de uma cara da aurora lavada na nascente).

domingo, 16 de dezembro de 2012

E assim a vida trágica não pode ser bela...

     À medida que as novas chegam acerca da trágica vivência na Sandy Hook Elementary School, cada vez mais se torna complicado entender que tudo isto possa ser real.

     No sufoco, na angústia e no desespero de um momento e ambiente infernais, sabe-se que uma jovem professora tentou salvar um grupo de crianças da morte iminente.
     No limite, a realidade tornou-se tão sórdida e grotesca que só pôde ter uma resposta excecional (para situações excecionais medidas excecionais): transformá-la num jogo, para que a sobrevivência acontecesse. Fechadas num armário, como se fosse um instante de esconde-esconde, houve crianças poupadas ao instinto assassino que um ser humano não conseguiu, por alguma razão, controlar.
      Parece a realidade a imitar a ficção, como se esta pudesse predizer o que nos vai acontecer; ou, então, parece a ficção, o possível a lembrar o que pode vir a ser ou ocorrer, por mais longe que tal se queira.
      Lembrei-me, então, de um excerto do belíssimo filme 'A Vida é Bela':



        A prova de que o jogo está para a lição de sobrevivência é a tradução das falas do oficial nazi:
- Alguém aqui fala alemão?
- Estão aqui para trabalhar.
- Se não obedecerem levam um tiro na cabeça.
- Vocês estão aqui para servir a pátria alemã.
- Há 3 regras: não fugir, não criar conflitos e não pedir comida.
- Se obedecerem, não vos acontecerá nada.
- Mais uma última coisa: se ouvirem um apito é para responderem imediatamente.
- Trabalhando aqui, têm tudo o que acabei de vos falar.
        No fim, o prémio anunciado pelo pai: quem ganhar o jogo receberá um tanque de guerra. Não sobrevive o progenitor para o ver, mas o jovem...


       A história repete-se, não em grande tela; sem tanques de guerra, sem heróis ou heroínas. Ainda com a exterminação da vida real de inocentes reais.

          Qualquer semelhança com a ficção é a pura, ou melhor, dura realidade.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Um papel... que fiz eu?

     Na organização de tantos papéis que dariam uma bela fogueira, encontrei um. Salvo-o do interior de um dossiê, para ficar à vista e me afastar da escuridão dos tempos.

    Chegou-me às mãos na passada quinta-feira com uma lembrança de Natal. Uma voz já me havia anunciado, no corredor, que ia ter uma surpresa. Confirmou-se.
     Já na sala, outra voz questiona: "Gosta?"
     Como havia de não gostar? O certo é que, no desconcerto do momento, só saía a pergunta: "Porquê?"
     A resposta, sob a forma de interrogação, veio rápida e certeira: "Não é costume dar prendas no Natal?"
     Sem nada preparado, sem nada para trocar, constato o facto de nada ter para retribuir. E, de novo, a reação tão imediata quanto desarmante: "Isso não importa!".
     O agradecimento cumpriu-se, por mais que me soubesse a pouco.
     Dentro da lembrança, lá estava ele...


      ...um papel em forma de estrela. 
     Assim encontrei uma pequena luz no meu caminho, quando esta tem sido o bem que mais me tem faltado. 

      E ainda bem que não importa, RV, porque, em vez de uma estrela, teria de te oferecer o sol.

E o fim do mundo chegou mais cedo

     A televisão noticiou hoje uma das piores notícias a que o mundo pode assistir.

    Numa escola infantil em Connecticut (Sandy Hook Elementary School), um jovem de vinte anos (Adam Lanza) atirou sobre um grupo de crianças, levando vinte delas à morte, ferindo outras, aterrorizando muitas mais. 
   Uma professora cumpriu o seu dever, protegendo algumas delas no desespero pela sobrevivência, e pagou com a vida esse seu gesto, junto com mais seis adultos.
   Trata-se de uma das maiores tragédias na história dos Estados Unidos da América e está a colocar em discussão a facilidade de aquisição de armas, a ponto de as tornar acessíveis a um jovem que, no mínimo, a par da declarada quietude e timidez, só podia ser portador de uma disfuncionalidade mental (por momentânea que seja) a ponto de ser dominado pela loucura que o conduziu ao massacre de crianças inofensivas.
   Olhar para a cara de doze delas, numa montagem fotográfica feita de sorrisos, alegria, inocência e avidez perante a vida, é sinal de incredulidade; também da atrocidade, da brutalidade e do horror de que o Homem é capaz, na impotência assumida perante forças e instintos que o dominam, impedindo-o de ver o bem que possa estar à sua frente.

    Dia 14 - o fim da vida para muita gente que procurava construir, numa escola, a extensão da vida, o renovar dos ciclos de humanidade. É o fim do mundo, por aquilo que não se consegue explicar e por tudo aquilo que um país, uma sociedade, uma família, um ser não conseguiram fazer.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Dos mitos do fim do mundo

       Depois da sequência mágica, vem a lembrança fatídica.

       Duas alunas abeiraram-se de mim, entre o envergonhado, o assustado e o curioso, colocando a questão: se eu acreditava que o mundo ia acabar no dia 21.
     Disse-lhes que sim... e que devíamos agendar uma festa de despedida para o dia anterior. Riram-se.
       O facto é que insistiram, na busca de algum apaziguamento. Queriam perceber a razão por que toda a gente fala nisso. E foi o fim do mundo para mim: perdi o meu intervalo.
     Fi-las lembrar o que elas tinham ouvido aquando da passagem do milénio; fi-las saber que já muito antes tinha sucedido o mesmo com todos os milénios; muito rapidamente dei-lhes a saber algumas vidências e profecias que, no tempo em que foram formuladas, não tiveram o resultado anunciado (felizmente, para alguns casos; infelizmente, para outros).
      O ano 2012 teve já tratamento fílmico, numa abordagem do que a civilização maia previa como ano crítico para um povo, num jogo numerológico em que o dia 21 de dezembro se apresenta como fatal.
     Hoje pode dizer-se que o "fim do mundo" para essa civilização foi muito antecipado.
   Sabe-se também que muitos dos conhecimentos, das crenças, das divindades, dos costumes associados condicionam a visão do mundo e nessa relativização tudo deve ser equacionado - nomeadamente a mudança de ciclos. A alteração de qualquer ritmo no que fosse o aparecimento da luz solar seria visto como um sinal divino e ameaçador, particularmente para uma entidade suprema para a vida desta civilização mesoamericana (Kulkulcán era a versão maia do deus Quetzalcóatl asteca). Um eclipse solar teria, por certo, um significado muito para além daquele que atualmente pode ser cientificamente descrito. E este seria apenas um incidente no meio de tantos outros a contemplar.
     Foi então que perguntei às minhas interlocutoras o que elas achavam se, neste mesmo dia, um satélite deixasse de funcionar e, por exemplo, inviabilizasse o funcionamento de todos os dispositivos eletrónicos no mundo (telemóveis, multibancos, telefones, televisores, rádios, internet, só para falar dos mais familiares). A resposta veio pronta e válida, para qualquer data do que ainda resta de 2012 ou de anos vindouros: "Era o fim do mundo!"

      Lá está: aos nossos olhos, com os nossos costumes, conhecimentos e vivências o fim do mundo também é falado / previsto / previsível, sem uma data concreta, com tanto de catastrófico quanto das dependências que temos a todo e qualquer momento. Conclusão: é o próprio homem a construir o fim do mundo (pelo que deve ter mais medo de si mesmo e das necessidades que cria).

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Doze em dose tripla

     O dia fez-se do "doze", inclusive no mês e no ano.

     Tanta coincidência causa alguma estranheza, curiosidade. Há quem veja nisso sinal de qualquer coisa (não sei se boa, se má).
      É um dado que a vida humana se encontra marcada por este número: o calendário anual apresenta doze meses (o gregoriano, por contraste com o juliano, que só tinha dez meses); o povo babilónico estabeleceu a sua base numérica em torno do doze (não do dez, como o nosso sistema numérico atual); doze signos associam-se a doze casas do zodíaco; doze eram os apóstolos, bem como as tribos de Israel; havia doze portas na cidade de Jerusalém; a Bíblia refere o número dos eleitos como sendo 12 vezes 12.000 (cifra representativa da totalidade dos santos).
     Nos arcanos maiores do Tarot, XII é a carta do Enforcado - símbolo da sujeição e servidão. Suspenso pelo pé, a posição antinatural do homem é entendida como provação, malogro em toda e qualquer busca de aquisição material. A única saída parece ser da ordem do espiritual.
    O 12 é, efetivamente, o fecho de um ciclo: fim e evasão fora da matéria; tudo o que foi adquirido de material deve ser abandonado, numa espécie de renúncia forçada, de sacrifício (ofício sacro) pessoal e de desapego capaz de conduzir ao espírito.
      No abandono do material, do físico, a libertação é possível, mas pela ordem do abandono voluntário, do recuo, do castigo que se impõe como saída para uma dimensão distinta.

    Não bastasse tudo isto, diz-se ainda que 21.12.12 vai ser, segundo a civilização maia, a data do fim do mundo - o primeiro não é um doze, mas o seu inverso. 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Voltando ao plural do 'ão'

       Perguntavam-me uns alunos, há dias, se o plural de 'camião' podia ser 'camiães', por alguém lhes ter assegurado essa possibilidade.

       A questão aponta para uma dúvida (ainda que sentida como estranha) resultante da formação de plurais diversos nos nomes terminados em 'ão', nomeadamente aqueles que admitem duas ou mais formas de flexão quanto ao número (ex.: anão > anões, anães; aldeão > aldeãos, aldeões, aldeães; corrimão > corrimãos, corrimões; refrão > refrãos, refrões). Todavia, o caso apontado não é tão duvidoso assim, atentando nas regularidades estudadas para esta flexão ou mesmo na questão do uso generalizado.
         Relembrado o estudo do ano anterior, recuperou-se inicialmente o cenário revelador da proximidade do Português à sua origem latina (curioso é mesmo ver como os jovens acabam por se aproximar do latim, ao reconhecerem a lógica de construção do plural e ao procurarem "adivinhar" como seria a palavra nessa língua ou em estádios mais recuados do português). Esquematicamente, é possível traduzir essa conclusão da seguinte forma:


      Todavia, nem todos os casos se explicam na base deste raciocínio diacrónico - como, aliás, o provam as ocorrências duplas e triplas de plural para uma só palavra, ou mesmo o facto de não haver correspondência total no raciocínio construído (ex.: capitães, para 'capitānus' [e não *'capitānis']; tabeliães, e não *'tabeliões', para 'tabellĭōnis' ).
     No caso de camião não é sequer o latim que está diretamente em jogo, pois o termo vem do francês 'camion'. Pensando no termo francófono, chega-se, analogicamente, ao plural no português pela vogal sublinhada: CAMION > CAMIÕES. A par disto, a manutenção da vogal 'o' em palavras da mesma família (ex.: camionagem, camionete, camionista) é o que induz, por sistematicidade morfológica, à formação flexional em número (plural) proposta.
     Acresce, portanto, à tese etimológica e diacrónica da língua, a consciência de mais um conjunto de factos linguísticos a concorrer para a explicação do plural dos nomes terminados em 'ão': primeiro, é bem mais abundante o número de palavras com o plural em 'ões'; segundo, a tendência geral da língua é para, em palavras relativamente recentes, formar o plural de 'ão' segundo a ordem abundante ('ões'), até por questões de lexicalização (corrimão > corrimões); terceiro, o recurso à família de palavras de um termo auxilia na previsibilidade de formação do plural; quarto, razões geográfico-sociais estão também na base explicativa de alguns usos da língua, muito mais atinentes à consciência sincrónica das realizações linguísticas.

     E, assim, um exemplo normalmente encarado de irregularidade morfológica e/ou de excepcionalidade não deixa de ter algo de regular e sistemático. Por outro lado, e a par da formação do feminino (com grande número de mecanismos de construção, muitos deles não flexionais), também a formação do plural com acrescento de 's' é apenas uma dimensão morfológica com muita variedade, a julgar pelo número do que é encarado como exceção. Complexidades de uma língua viva!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Quando deixar não é autorizar nem partir

      "Por mares nunca dantes navegados..."

      É com este verso que me lanço à resposta da questão proposta:

     Q: Na frase “Nas naus estar se deixa, vagaroso, /Até ver que o tempo se lhe descobre”, surgem-me várias dúvidas: (i) “Deixa estar” é complexo verbal, sendo “deixa” auxiliar? Parece-me que cumpre alguns critérios de auxiliaridade (*deixa não estar; deixa-se estar /*deixa estar-se), mas não outros (“deixa que esteja” é possível, por exemplo, embora me pareça que há mudança de sentido); (ii) “nas naus” é predicativo do sujeito, entendendo “deixa estar” como complexo verbal e sendo, portanto, o principal a selecionar semanticamente os complementos? (iii) “vagaroso” é predicativo do sujeito ou modificador?

     R: Primeiro de tudo, há aqui um enunciado cujo pendor literário desafia qualquer perspetiva analítica da língua, no que esta tem de pendor sugestivo e criativo. 
       Depois, recompondo o enunciado na sua ordem mais natural, ter-se-ia a construção 'Deixa-se estar nas naus, vagaroso, até que se lhe descobre o tempo'. Não há aqui nenhum complexo verbal ('deixa estar'), mas a construção 'deixar-se estar' - uma realização transitiva predicativa, na linha de um subgrupo ou subtipo de construções muito particulares, conforme o estudado pelo Professor Joaquim Fonseca sob a designação de 'Predicação do Complemento Direto' (in Estudos de Sintaxe-Semântica e Pragmática do Português, Porto, Porto Editora). Enquadram-se aqui construções de causatividade, como a proposta pelo verbo 'deixar' (X DEIXAR alguém estar > X DEIXAR-se estar), associadas a predicações (estar nas naus / estar vagaroso). Estas predicações, por outro lado, são ainda depreendidas de uma estrutura subjacente, configurável numa redução léxica (deixar-se estar nas naus > ficar nas naus / deixar-se estar vagaroso > ficar vagaroso).
       Assim, o verbo 'deixar' é um verbo principal (causativo), seguido de um pronome na posição de complemento direto (construção acusativa, reflexiva) e de uma construção predicativa configurada como subordinada não finita infinitiva (estar nas naus / estar vagaroso). 
      Vejo o "vagaroso" como uma extensão justaposta da estrutura predicativa 'estar nas naus' ('estar vagaroso' seria um coordenado assindético), circunscrevendo-me ao enunciado proposto. Admito que a contextualização deste último possa trazer uma outra leitura. Sublinho, ainda assim, que todo o raciocínio está apoiado na realização 'deixar-SE + V'.

    E nesta navegação penso noutras frases com outros verbos que também admitem realizações transitivas predicativas: fazer, dizer, declarar, saber. Não sendo padronizáveis ou frequentes, não sendo estas as realizações dominantes, não deixam de existir na língua. Tratá-las-ia, contudo, como exemplos atípicos, não na perspetiva da gramática assente no ensino das regularidades - para isto ficaria por aquelas que o citado linguista considera ser realizações transitivas predicativas em sentido restrito.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Linhas curvas no feminino

     Este era o seu traçado preferido: curvo, ondulante, sensual. A visão feminina da arquitetura.

    Era desta forma que, em quase oitenta anos de carreira, Oscar Niemeyer via a sua intervenção no mundo - mais de seiscentas obras espalhadas pelo mapa na concretização desse traçado arquitetónico. Apenas um exemplar existe em Portugal (insular): o do Hotel e Casino Pestana, na cidade do Funchal (datado de 1966 e inaugurado dez anos depois, com algumas modificações introduzidas pelo seu colaborador Viana de Lima).
    O famoso brasileiro, considerado um dos revolucionários na visão moderna e contemporânea da arquitetura, morreu hoje aos 104 anos, deixando a sua marca na cidade de Brasília (catedral, Palácio do Planalto), Nova Iorque (sede das Nações Unidas), Paris (Sede do Partido Comunista Francês), Milão (editora Mandadori), Avilés - Espanha (Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer), Havana (Escultura para Cuba), Argel (Mesquita da cidade e Universidade Constantine), só para mencionar alguns casos.


     Detentor de vários prémios (Prémio Prtizker de Arquitetura 1988; Príncipe das Astúrias 1989, Medalha de Ouro do Royal Institute of British Architects 1998), em 2001 foi galardoado com o Prémio Unesco 2001 na categoria Cultura.
      Dele ficam também as palavras:

     "Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo..."


"Meu trabalho não é sobre “a forma seguindo a função”, 
mas sobre a “forma seguindo a beleza” ou, melhor ainda, 
“a forma seguindo o feminino"

     Fica assim registada a despedida daquele que não quis "mais nada além do que a felicidade geral".

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Algumas novas (já velhas) no ensino privado

    O problema das generalizações é sempre o mesmo: afetar aqueles que, pelo bom exemplo, escapam ao retrato geral que é construído.

     A reportagem da TVI ("Dinheiros públicos, vícios privados") sobre colégios e ensino privado é a exposição do que há muito já se ouviu na boca de pais, de alunos, de colegas de trabalho que vivem ou já viveram situações relacionadas com abuso de funções e cargas horárias excessivas, pressões nas classificações, aceitações ou recusas de matrículas, trocas de favores, jogos de influências.
     Os representantes do setor dizem que não; os que deles dependem também (não); imagens e vozes distorcidas testemunham práticas, no mínimo, dúbias e, no máximo, ilegítimas e irracionais; os que se acomodam ficam entre o alegado desconhecimento e a denúncia velada e os que confirmam aberta e frontalmente os problemas ficam entre o registo do delírio, das falsidades por provar ou das verdades inventadas (na perspetiva dos primeiros). Resta-lhes os dramas por que passaram, que os marcaram e que condicionam o sentido normal da sobrevivência tanto profissional como pessoal. 
     Entre as negações contraditas em documentos assinados por governantes, as escusas de dirigentes que dizem não ter conhecimento do que acontece nos seus estabelecimentos, as interrogações retóricas de quem mascara o que não diz ou quer dizer (sabe-se lá para fugir de quê) ou outras estratégias discursivas que desviam os verdadeiros problemas para enfeites ou efeitos decorativos (de "gosto" ou de "embelezamento"), estão em causa questões de colégios privados com contratos de associação, financiados pelo próprio estado (vinte e seis, de norte a sul do país, segundo a reportagem), sob o pretexto de a escola pública não suportar a inscrição de um maior número de alunos. Contudo, a evidência na duplicação de oferta educativa e de financiamento é inquestionável, para não falar na duplicidade de atuações: fica, para um mesmo destinatário (os alunos), o que não pode acontecer na escola pública a par de decisões particulares na distribuição de horários, nas adaptações da gestão curricular e nas infidelidades de práticas tanto junto de professores como de alunos. E a sociedade aceita e paga tudo isto.


      Entretanto, não se entende qual o papel da inspeção, quando há diretores de escolas, ex-presidentes de associações de pais, encarregados de educação, professores que reconhecem claros favorecimentos, sinais de riqueza exterior incompatíveis com a responsabilidade de trabalho contínuo, atento, integrador e ajustado na educação.

      Promiscuidades que ninguém deveria tolerar, a par de muitas outras como as que também grassam tanto nas escolas públicas como nas privadas: as de alunos subsidiados sem necessidade (a julgar pelas vivências e pelos percursos realizados após a escolaridade obrigatória e/ou secundária), as de formações integralmente pagas para quem pouco dá ou nelas investe (seja em estudo seja em trabalho), as de aceitação de tudo e mais alguma coisa em estabelecimentos interessados mais nos valores económicos "per capita" do que na valorização de uma formação qualificada / socializada, qualificante / socializante e qualificadora / socializadora - em suma, integrada, integral, integrativa e integradora.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

'O Substituto': desligado de si, preso ao mundo

     Título para um filme com tanto de realidade como de ficção.

     Do realizador Tony Kaye, 'O Substituto' conta com a participação do oscarizado Adrien Brody ('O Pianista') no papel de um professor substituto (Henry Barthes). 
     Em registo próximo da crónica e de apontamentos reflexivos assumidos (pelo prisma de um educador atento e crítico) face ao que foi todo o seu percurso biográfico e profissional, é apresentada a realidade americana de um professor substituto em contacto com estabelecimentos de ensino marcados por traços de frustração, desilusão e esgotamento; alunos de ambientes multiculturais e multiétnicos com vivências desestruturadas; profissionais saturados na vida e na função, excluindo aqueles que ainda vão tentando responder, com medidas excecionais, a situações também elas excecionais; interesses e discursos de ocasião, que caem à mínima avaliação de desajustamento; contextos adversos ao código de valores sociais dominante.
     A par de tudo isto, há também a vida do próprio professor, encarando a sua função como a de restabelecer a ordem e não a de ensinar (por, segundo ele, não haver condições temporais para o fazer); lidando com questões familiares e vivências de um passado mal resolvidas; procurando afastar-se de ligações que o envolvam afetivamente, pela contingência e pela efemeridade que pautam o seu exercício profissional. 


     Todavia, a visão que este docente tem dos conhecimentos vitais à sobrevivência acaba por resultar num elo de aproximação aos jovens que com ele interagem. Resulta daqui a descoberta, para o professor, de uma forte ligação emocional aos alunos (que lhe reconhecem a autoridade, o exemplo, o lado empático,a diferença), a colegas (que procuram entendê-lo, ainda que com dificuldades no desvelar de todo o seu mistério), a uma adolescente recolhida das ruas para o mundo muito personalizado do "substituto" - de vida e de morte, de crueldade, de algum desamor, mas com alguma nota de esperança.
    Num retrato contemporâneo de indivíduos que se isolam, mas acabam por sentir a necessidade de estabelecer ligações com outros, há as cores do desconcerto, do incómodo no retrato de um professor angustiado pela consciência do poder que tem sobre os seus alunos (por mais que o procure esbater); há uma postura, uma linguagem, um reconhecimento de que não se pode ser compreendido quando se eleva demasiado o referencial de valores e de códigos (que não são reconhecidos por quem se encontra muito distante daquilo que 'devia ser'); há um sentido do que é um peso institucional, social, impeditivos de alguma naturalidade nas coisas.
     O choque instala-se (inclusive pela semelhança com algumas vivências escolares tão próximas), para que (também) se possa dar importância a uma outra forma de (vi)ver o mundo.

    Não posso dizer que seja um filme que dê bem-estar. Tem, contudo, a vantagem de fazer pensar. E, para tal, a citação de Camus, no início do filme, não é algo que surja por acaso: "Quanto mais me sinto desgarrado de mim, mais fico preso ao mundo."

domingo, 2 de dezembro de 2012

Só para conferir...

    Quando as implicações sintáticas não chegam para analisar os verbos, nada como considerar a estrutura argumental destes.
  
   Q: Vítor, gostaria de saber a tua opinião sobre uma questão: o verbo sublinhado em "Esta observação sugeriu que o stress pré-natal e as hormonas do stress são capazes de programar circuitos neuronais e conferir sustentabilidade à adição a drogas de abuso ao longo da vida" é A) transitivo-predicativo / B) transitivo indireto / C) transitivo direto e indireto / D) transitivo direto?

     R: No âmbito de uma subordinada completiva (para a sequência subordinante 'Esta observação sugeriu que X'), o verbo 'conferir' surge, no contexto proposto, com o comportamento típico dos verbos dandi (de transferência de um dado / um objeto / uma propriedade para uma entidade assumida como beneficiária) - ou seja, com um complemento direto ("sustentabilidade") e um complemento indireto ("à adição a drogas de abuso"), conforme se pode concluir pela permuta possível do verbo em causa por outros da mesma área semântica - 'atribuir', 'conceder'.
     Neste sentido, segundo uma classificação sintático-semântica (assente na noção da estrutura argumental), trata-se de um verbo transitivo direto e indireto - portanto, a resposta c).
    Sublinho o facto de estar em análise uma realização do verbo no contexto da ocorrência frásica proposta. Outras realizações admitiriam que o verbo 'conferir' pudesse ser um verbo transitivo direto, mas, nesse caso, não poderia relacionar-se com a área temática acima considerada. Teria de ser algo associado a realizações similares aos verbos 'ver', 'verificar', 'administrar' (como o que se sugere no título deste apontamento).

     Uma classificação desta natureza tem de se apoiar numa realização contextualizada, na exploração lógica e proposicional dos argumentos necessários à produção da frase - e, no caso, esquematicamente há que verificar que 'conferir' está para três argumentos lógicos (CONFERIR [X, Y, Z]), ou seja um verbo trivalente, à luz da gramática de valências - não admitindo a resposta b) ou d).

sábado, 1 de dezembro de 2012

Lá se vai / foi o 1º de dezembro...

     Prenunciando-se o fim do feriado, o último calha em pleno fim de semana.

      Anunciado o fim do feriado (temporário ou não), não deixa de se (re)lembrar o facto histórico.
   Foi o que pretenderam aqueles que quiseram recordar o momento e o episódio da restauração da independência, tão heroicamente representados nalguma toponímia portuguesa e numa linguagem que, de tão nacionalista, até deturpa o verdadeiro sentido do inimigo (mais implicado na adoção de medidas que comprometeram uma política levada a cabo, por cerca de sessenta anos, do que na figura coletiva do povo espanhol).


     Ironia histórica parece ser o facto de presentemente ainda estarmos tão dependentes da Espanha (pelo menos em termos económicos) quanto a crise vivida por esta se refletir num país que dela se quis separado, não obstante a autonomia gozada, em alguns níveis, até meados do século XVII, para além da projeção cultural então vivida (e que não era, por certo, de desprezar).
   Todavia, os sinais de descontentamento eram crescentes: os impostos aumentavam e a população encontrava-se cada vez mais pobre; a burguesia comercial sofria com a crescente insatisfação nos seus interesses comerciais; a nobreza preocupava-se com a progressiva perda dos seus privilégios, postos e rendimentos; o império territorial era ameaçado pela ação interesseira e interessada de ingleses e holandeses, que procuravam aproveitar alguns descuidos revelados pelos governadores filipinos. Certo era também todo um contexto político controverso vivenciado pela Espanha no seio de uma Europa e de uma América em cujos domínios espanhóis havia forte questionação e ameaça independentista. E na onda desses movimentos resistentes e revoltosos, Portugal não se fez rogado.
     Coincidências demasiado fortes com o século XXI.

   Passados quase quatro séculos, o exemplo dos conjurados e o de um D. João IV (qual reencarnação sebastianista) mantêm-se pertinentes para lidar com outras duquesas de Mântua (de uma Sabóia bem mais central e de cara merkeliana), cujos "secretários" também merecem ser lançados pela janela (pelas medidas que teimam em não tomar, para que esta crise seja social, justa e distribuidamente encarada).

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A escrita dos nossos ofícios

     Assim vai a escrita oficial, tecnologicamente especializada, virtual (mas não virtualizada) e cada vez mais exposta. E surge isto no dia em que morreu um dos maiores da literatura portuguesa. É, no mínimo, irónico.

    O exemplo não é perfeito, à semelhança do que já se foi encontrando noutras situações de âmbito educativo / formativo, nas quais o exemplo deveria mesmo vir de "cima".
     Hoje de manhã, recebi um mail com um texto que me deixou deveras estupefacto, não só pelo conteúdo (algo duvidoso, pelo que requer de celeridade e pelo que enigmaticamente prenuncia como "todos os processos que se vão desenvolver já a partir do ínicio de 2013") mas também pela forma excessivamente incorreta de registo.
    Creio poder dizer, com alguma felicidade, que alguns alunos meus do ensino básico já poderiam explicitar o que está mal, através do código de correção por mim utilizado.


    Contudo, para os que não o saibam, cá vai a legenda (mesmo à moda dos exercícios que já se vão fazendo em aula, para a explicitação de conhecimentos da língua):
    1 - ausência da marca de vocativo (vírgula);
    2 - ausência de vírgula a abrir o encaixe de um modificador (neste primeiro caso, entre o sujeito e o predicado da frase; mais adiante, entre o verbo nuclear do predicado e o complemento direto sob a forma de subordinada não finita infinitiva);
    3 -  ausência de vírgula a fechar o encaixe de um modificador (subordinada adverbial final) entre o sujeito e o predicado;
    4 - incorreta separação do verbo auxiliar (modal deôntico) face ao verbo principal, no interior do complexo verbal;
   5 - incorreta utilização de maiúscula após a utilização do sinal de dois pontos (que deveria introduzir uma enumeração de elementos separados por vírgula);
    6 e 7 - progressão deficiente da enumeração anunciada (bem) por dois pontos e que, na lógica do autor deste texto, pode ser feita com frases completas segmentadas e marcadas por pontos finais (enfim!), num comprometimento claro do que são segmentos textuais subordinados relativamente aos subordinantes;
    8 - inconsciência quanto à identificação da sílaba tónica (no caso, ['ni], pelo que o acento agudo deve ser colocado no 'i' desta mesma sílaba);
     9 - a incorreta utilização de uma só vírgula a separar o verbo que introduz o predicado do respetivo complemento direto, num desconhecimento sistemático de que os modificadores encaixados devem ter uma vírgula a abrir e outra a fechá-lo (no fundo, a reiterada deficiência assinalada em 2, com implicações da regra geral de que nunca se deve separar o sujeito do predicado por uma só vírgula; o mesmo não deve acontecer entre o verbo do predicado e os complementos por ele selecionados).
      Para finalizar, em termos textuais, há uma declarada incoerência discursiva: para um texto que se anuncia no registo da terceira pessoa ("a DGAE"), esquece-se esse facto para passar a ter a primeira do plural (entre o institucional e majestático "Agradecemos", na vez do simples "Agradece-se") e terminar com a primeira do singular ("Refiro", em lugar de "Refira-se") - em análise discursiva, isto daria para problematizar bastante se estaremos ou não perante um caso de verdadeira "máscara" ou de desvelamento progressivo de quem se apagou, no início, e se quis ou acabou por se deixar revelar, no fim.

      E é assim que todos vamos tendo acesso a material exemplificativo, para demonstrar e explicar o que não deve ser feito na escrita - material autêntico, a merecer revisão por parte das instituições oficiais que produzem e difundem "estas pérolas" textuais.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Quem é a Lídia?

   A pergunta, por vaga ou caricata que seja, foi-me colocada por um antigo aluno, depois de, infrutiferamente, este não ter recebido resposta da pesquisa feita na internet.

      Ainda que não saiba o propósito dela (da questão), o certo é que se trata da Lídia de Ricardo Reis.
     Imagino o que terá sido a procura, na ânsia de encontrar uma realidade corpórea, uma existência física com cabeça, tronco e membros. Isto de ver a literatura como a cópia, o depósito, o reflexo de uma realidade que é a nossa tem muito que se lhe diga, ainda que entre aquela e esta possa haver relações que não passam da dimensão fictiva mais ou menos próxima do mundo por nós vivido e/ou percecionado.
      É admissível que, no caso de Pessoa, a construção heteronímica propicie essa ilusão de que tudo se assemelha à realidade, com retrato físico, nascimento, formação, vivência, morte para alguns casos. Mas a verdade é que a multiplicação de papéis que possa existir entre o ser-autor e os seres-criações poéticas não impede a construção ficcional e recursiva destes noutras entidades que os comple(men)tam. É o caso de Lídia.
    Trata-se de uma personagem, sem existência real, criada por Fernando Pessoa para figurar como companheira nalguns poemas do heterónimo Ricardo Reis. É uma figura feminina sem voz, a quem o sujeito poético se dirige para dar conta de uma visão contida, serena e conformada do amor. 
     A característica dominante e inspiradamente clássica da poesia de Ricardo Reis compõe-se segundo influências, entre outras, das odes de um escritor romano da Antiguidade: Horácio. Também este poeta se referia, nos seus poemas, a uma entidade feminina com o nome Lídia, só que esta última tinha voz, falava nos versos produzidos. Com Ricardo Reis, Lídia mantém-se silenciosa; só é falada enquanto companheira dessa viagem que é a vida. Neste sentido, ela é uma presença no discurso poético com a função de ouvir, sem responder e sem agir, os conselhos sapientes dessa voz masculina ricardiana, crente na existência de divindades pagãs e na força de um destino superior, que as domina e que pré-determina o próprio curso ou fluir da vida. É esta lição que Lídia, à semelhança de duas outras figuras femininas evocadas (Neera e Cloe), recebe silenciosamente das palavras de Ricardo Reis.
    Contudo, a origem e a sobrevivência de Lídia estão aquém e além de Reis: se originalmente é Horácio que passa o testemunho (Lídia) ao heterónimo pessoano, essa figura feminina chega ao século XX, na literatura portuguesa, pelas mãos de Filinto Elísio e Almeida Garrett; suplanta as primeiras décadas desse século nos versos de Alexandre O'Neill, de Sophia de Mello Breyner e de Natália Correia ou mesmo na prosa de um José Saramago, que "ousou" matar Ricardo Reis (O Ano da Morte de Ricardo Reis, em 1984).

Imagem retirada do site "Design e Comunicação Visual", de Patrícia Magalhães

   Nem tudo se encontra na internet (é certo!) e, por vezes, o que há é muito duvidoso ou mesmo errado. Espero ter contribuído para se construir a "imagem da senhora" procurada.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Quando tudo fica pela metade...

     A imagem circula no Facebook, como foto da RFM.

     Diz que é só para inteligentes...


     Esta inteligência anda um pouco por baixo (limitada ao visível, ao sensível) e pela metade.

     E mais não digo, porque quero manter o resto no sigilo inteligível (para que não se reduza tudo ao plano da perceção visual).

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Dele(s) e dela(s)

      Há razões que são mais do que injustificáveis, quando o tempo é de (pseudo) certificação e de revisões científicas algo duvidosas.

    Q: Colega, estou a trabalhar com um manual de 7º ano que, num anexo informativo gramatical, apresenta a frase "Os amigos deles estão ali" para exemplo de um determinante possessivo: 'deles'. Acho estranha esta classificação, até porque está depois do nome. Concorda com este determinante?

    R: Naturalmente que não concordo, pois não é confundível um determinante com a contração de uma preposição (de) com o pronome pessoal (eles).
      Se é verdade que há uma aproximação entre a construção genitiva 'os amigos dele' e 'os seus amigos', em termos de elementos constituintes não há confusão possível, nomeadamente na configuração das classes de palavras neles representadas.


     Registo, ainda, um reparo quanto ao pressuposto assumido para os determinantes, quando aponta que estes não se encontram depois do nome. Sendo típica a localização deles a anteceder os nomes (com os quais mantêm concordância de género e número), não deixa de acontecer que eles possam e/ou devam aparecer em posição pós-nominal, como em situações de nomes antecedidos de quantificador interrogativos ("Quantos livros teus levas?"), de exclamativas ("Que exemplos estes!"), de algumas  retomas com relativas não restritivas ("As dificuldades são muitas, situação esta que não permite gastos não planificados"),  de enunciados exortativos ("Alunos meus portam-se em condições"), vocativos formais e tipificados ("Senhora minha!").
   
    Perante o exposto, mais se confirma que os "selos" das certificações, revisões e validações valem o que valem. E, por vezes, simplesmente não valem, não sendo garantia de qualidade. Espero que este seja apenas um exemplo perdido (ainda que péssimo) na qualidade do material em causa.

domingo, 25 de novembro de 2012

Ser vil e servil

      Hoje é tempo de poesia concreta, poesia feita dos sentidos que os tempos têm reconfigurado, nas relações entre o escrito e o visualmente construído.

      O exemplo é de Alexandre O'Neill (e de como já ele previa bem os emoticons destes tempos).



      Tal como me sinto: ser vil e servil.

     É o balanço que me dá, depois de um fim de semana a corrigir testes.

sábado, 24 de novembro de 2012

Do valor dos terraços - pouco caros à língua.

     Não me rendi à publicidade nem à compra de imóveis.

     Há, contudo, um interesse que me leva a divulgar esta pequena nota publicitária retirada de um panfleto da empresa imobiliária "ERA". O propósito da venda pode ser grande, o valor proposto também; mas, no que toca à utilização da língua, estamos no domínio do zero.
     A questão crítica é a da translineação da palavra 'terraço'. É de consabido saber que, nos casos de grafemas duplos, a partição da palavra se faz de modo a colocar a letra duplicada em locais separados: uma no final da linha; outra no início da linha seguinte. Assim, adotando uma notação convencional para exemplificar essa partição (marcação de ponto), ter-se-ia 'ter.raço' como a forma correta de translinear a palavra.
     Esta convenção ortográfica é recorrentemente contrariada por alguns alunos e, também, por materiais escolares que induzem à confusão do que, por um lado, é a realização gráfica da língua (em termos da escrita e das convenções ortográficas) e, por outro, a realização fónica (em termos de silabação e produção sonora, oral). É, aliás, esse exemplo de confusão que esta nota publicitária também evidencia.
    Há poucos dias, uma colega perguntava-me se tinha havido alguma mudança nas normas da translineação, porque tinha reparado num material que propunha a divisão de 'passado' como 'pa-ssa-do'. Naturalmente, esta proposta está errada. E uma outra, sem exemplo, perguntava-me como é que eu fazia a divisão silábica das palavras, se era da mesma forma que translineava. Em tão pouco tempo, a preocupação comum fazia-me lembrar a necessidade de um apontamento sobre a questão.
      Desde logo, proponho que a notação a utilizar não recorra ao uso de hífen, pela confusão que pode criar, em termos ortográficos, com contextos de tmese (mesóclise) ou mesmo de pronominalização justaposta a formas verbais / formas pronominais (e cria, por certo, tantas vezes quantas as de haver alunos que separam as terminações dos verbos, por exemplo). A notação de pontos ou de parêntesis retos é, assim, mais adequada. 
    Acresce a isto a necessidade de se consciencializar dois níveis de análise da língua, os quais, esquematicamente, podem ser demonstrados da seguinte forma:

      Distinguir as convenções da oralidade relativamente às da escrita requer cuidados notacionais, além de se assumir fundamentalmente a diferença entre o que é percecionar auditivamente um som (que se procura reproduzir, na escrita, por vezes com mais do que uma letra) e o que é ler uma letra (convenção escrita).

    Caso para dizer que já era! Estivesse eu interessado na compra e pedia já um desconto, por falta de credibilidade no anúncio publicitário.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Assim se faz a sexta-feira

     Depois de uma semana de trabalho (sobrecarregado este e sobrecarregada ela), anuncia-se um fim de semana trabalhoso.

     Chegado a sexta-feira, é assim que vejo este dia (um pouco melhor do que Garrett, que o encarava como 'aziago'):


      Os tempos são outros. Não com literatura, mas com música, tinha de ser com uma melodia e um grupo à medida do que é grande. Não é para fazer por menos. Sexta-feira é "Paradise", pela libertação que representa (nem que seja por lembrança de outras sextas-feiras muito bem passadas).

      Paradise 

When she was just a girl
She expected the world
But it flew away from her reach
So she ran away in her sleep

And dreamed of para-para-paradise
Para-para-paradise
Para-para-paradise
Every time she closed her eyes

Ooohh

When she was just a girl
She expected the world
But it flew away from her reach
And the bullets catch in her teeth

Life goes on
It gets so heavy
The wheel breaks the butterfly
Every tear, a waterfall
In the night, the stormy night
She'll close her eyes
In the night
The stormy night
Away she'd fly

And dreams of para-para-paradise
Para-para-paradise
Para-para-paradise
Whoa-oh-oh oh-oooh oh-oh-oh

She'd dream of para-para-paradise
Para-para-paradise
Para-para-paradise
Whoa-oh-oh oh-oooh oh-oh-oh

La-la-la-la-la

And so lying underneath those stormy skies
She'd say oh-oh-oh-oh-oh-oh
I know the sun must set to rise

This could be para-para-paradise
Para-para-paradise
Para-para-paradise
Whoa-oh-oh oh-oooh oh-oh-oh

This could be para-para-paradise
Para-para-paradise
This could be para-para-paradise
Whoa-oh-oh oh-oooh oh-oh-oh
Do álbum Mylo Xyloto (2011)
   
      E com a passagem do tempo, os registos - no que dizem respeito à música - vão mudando... e melhorando (e muito)! Não é um registo do Dragão, mas não anda longe do que lá se viveu.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Uma questão de 'mos'

      Este blogue já está a ficar uma sala de aula virtual.

      A pergunta é de um aluno preocupado (como muitos outros deveriam estar).

      Q: Professor, quando é que se põe tracinho no 'mos'?

      R: Primeiro de tudo, esquece o tracinho e passa a dizer 'hífen', por favor. Até pareces a entrevistadora daquele programa da manhã da RTP1 ("Bom Português") a perguntar se as palavras levam traço ou não (o que é seguramente mais um caso de "Mau Português").
      Quanto à questão que propões, pensa sempre que, se colocares o pronome 'nós' antes do verbo que tenha o tal 'mos', nunca utilizas hífen (estarás perante a terminação do verbo na primeira pessoa do plural; por isso, nunca a separas do verbo). Só no caso de serem outras as pessoas gramaticais conjugadas nos verbos é que optas pela separação (por se tratar da contração dos pronomes pessoais 'me' mais 'os').
       Verifica este esquema, comparando as duas situações, a que não tem separação (Vmos) e a que tem (V-mos):


      Além desta técnica, tens sempre o teste da negativa: se o 'mos', numa frase afirmativa, mudar de posição pela transformação negativa (para junto do advérbio 'não', antes do verbo), então, é separado por hífen; caso contrário, escreve-se tudo junto com o verbo (sem hífen).
       Repara, agora, neste outro esquema:


       Esclarecido?
       Lembra-te que nos casos de verbo conjugado na primeira pessoal do plural (nós) não há lugar à utilização de hífen (por se tratar da terminação que faz parte do própria forma verbal).
       Bom estudo.
      
      Esperemos que, além de ser virtual, isto tenha alguma virtude!