segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Voltando ao plural do 'ão'

       Perguntavam-me uns alunos, há dias, se o plural de 'camião' podia ser 'camiães', por alguém lhes ter assegurado essa possibilidade.

       A questão aponta para uma dúvida (ainda que sentida como estranha) resultante da formação de plurais diversos nos nomes terminados em 'ão', nomeadamente aqueles que admitem duas ou mais formas de flexão quanto ao número (ex.: anão > anões, anães; aldeão > aldeãos, aldeões, aldeães; corrimão > corrimãos, corrimões; refrão > refrãos, refrões). Todavia, o caso apontado não é tão duvidoso assim, atentando nas regularidades estudadas para esta flexão ou mesmo na questão do uso generalizado.
         Relembrado o estudo do ano anterior, recuperou-se inicialmente o cenário revelador da proximidade do Português à sua origem latina (curioso é mesmo ver como os jovens acabam por se aproximar do latim, ao reconhecerem a lógica de construção do plural e ao procurarem "adivinhar" como seria a palavra nessa língua ou em estádios mais recuados do português). Esquematicamente, é possível traduzir essa conclusão da seguinte forma:


      Todavia, nem todos os casos se explicam na base deste raciocínio diacrónico - como, aliás, o provam as ocorrências duplas e triplas de plural para uma só palavra, ou mesmo o facto de não haver correspondência total no raciocínio construído (ex.: capitães, para 'capitānus' [e não *'capitānis']; tabeliães, e não *'tabeliões', para 'tabellĭōnis' ).
     No caso de camião não é sequer o latim que está diretamente em jogo, pois o termo vem do francês 'camion'. Pensando no termo francófono, chega-se, analogicamente, ao plural no português pela vogal sublinhada: CAMION > CAMIÕES. A par disto, a manutenção da vogal 'o' em palavras da mesma família (ex.: camionagem, camionete, camionista) é o que induz, por sistematicidade morfológica, à formação flexional em número (plural) proposta.
     Acresce, portanto, à tese etimológica e diacrónica da língua, a consciência de mais um conjunto de factos linguísticos a concorrer para a explicação do plural dos nomes terminados em 'ão': primeiro, é bem mais abundante o número de palavras com o plural em 'ões'; segundo, a tendência geral da língua é para, em palavras relativamente recentes, formar o plural de 'ão' segundo a ordem abundante ('ões'), até por questões de lexicalização (corrimão > corrimões); terceiro, o recurso à família de palavras de um termo auxilia na previsibilidade de formação do plural; quarto, razões geográfico-sociais estão também na base explicativa de alguns usos da língua, muito mais atinentes à consciência sincrónica das realizações linguísticas.

     E, assim, um exemplo normalmente encarado de irregularidade morfológica e/ou de excepcionalidade não deixa de ter algo de regular e sistemático. Por outro lado, e a par da formação do feminino (com grande número de mecanismos de construção, muitos deles não flexionais), também a formação do plural com acrescento de 's' é apenas uma dimensão morfológica com muita variedade, a julgar pelo número do que é encarado como exceção. Complexidades de uma língua viva!

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