(ou o voo dos pássaros negros)...
... (à espera de uma cara da aurora lavada na nascente).
A encenação de Nuno Carinhas para este "romance em cena", numa adaptação dramatúrgica de Luísa Costa Gomes para a narrativa de Maria Velho da Costa, é uma autêntica polifonia de vozes e linguajares cruzados com uma policronia feita de várias coordenadas: a do jogo de tempos entre o passado e o presente vividos pelas personagens; a do passado que evolui para um presente análogo ao tempo da representação; a de um presente da representação que se revê nas crises de um passado (metaforizado no voo dos pássaros negros).
É um tempo de crise que se impõe na intriga representada: "Casas Pardas" é a Lisboa do final da década de sessenta no século passado, sociedade agónica no período salazarista e salazarento, de conturbação política e social, com ecos da guerra colonial e das revoluções estudantis; é o tempo de uma ditadura pardacenta, hipócrita, que assiste ao terramoto trazido pela democracia, numa mudança que se perspetiva pela sensibilidade diferente e pela crítica acutilante de Elisa relativamente à mãe, à irmã Mary, ao cunhado (que corporiza a dissimulação e a perversão dominantes).
Chegado o novo tempo - o da cara da aurora lavada na nascente -, reconhece-se uma nova realidade social, uma vivência mais aberta ao corpo, aos sentidos e às sensações - tempo de máscaras quebradas, derrubadas para que se possam construir novas memórias (combatendo os desmemoriados simbolizados pelo pai de Elvira).
A deriva proposta em termos de tempo contrasta com a economia do espaço cénico. Este invade a plateia, numa aproximação significativa ao espectador, configurando a multifuncionalidade de um pátio (que, entre outros, é casa; que é estação; que é hospital; que é interior; que é exterior). Nele desfilam adereços, personagens, inconsciências, consciências, classes sociais, corpos, vidas, tempos em vaivém - ou, como a poetisa Ana Luísa Amaral o sugeriu no poema "Pardas Casas":
"Pátios de fazer guerra contra as coisas
que podres deitam ramos e ruínas,
e preparam os passos de passar".
E porque tudo passa e se tende a desmemoriar, o espectador revisita, nesta encenação e neste cenário, sinais do "voo dos pássaros negros", crises políticas e sociais de um passado com tanto de comum ao presente. Por isso, a identificação com a personagem Elisa é inevitável, acabando-se por desejar uma "crise que combine comigo" / connosco, tal a distanciação construída entre o texto representado e o momento da representação (como se de uma dramaturgia de Brecht se tratasse).
... (à espera de uma cara da aurora lavada na nascente).
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