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domingo, 13 de abril de 2014

Dois homens para um poema

    Música, corpo e voz num palco-ancoradouro com cordas caídas do teto, tornadas amarras de um cais.

    Como que olhando para o porto, um engenheiro imagina o volante e o comando de um paquete que passa... Os primeiros versos fazem-se ouvir: "Sozinho no cais deserto, a esta manhã de verão /Olho prò lado da barra, olho prò Indefinido/...".


Vídeo com a declamação de Diogo Infante para alguns versos da "Ode Marítima", de Álvaro de Campos

    Metáfora para uma viagem ao interior do ser humano na recolha das sensações e na procura de “sentir tudo de todas as maneiras”. Assim surge a "Ode Marítima", de Álvaro de Campos, na representação que Diogo Infante compõe a partir da direção cénica de Natália Luiza.
    Na versatilidade de tons; no registo entre a reflexão imaginativa e a ânsia febril, maquinal, energicamente totalizadora, audaciosa e freneticamente esgotante; na selvageria em que tudo é sentido de mais para se poder continuar a sentir, houve o Campos metafísico, o Campos engenheiro sensacionista de amplo fôlego e de feroz e incoordenado grito (saudando a infração do convencional social e da escrita versificatória, marcadamente interjetiva e eufórica), o Campos nostálgico aposentado - variadas fases para uns, faces para outros. Para qualquer dos casos, uma totalidade avassaladora.
   Porque de teatro se trata, estiveram em palco as várias máscaras que o ortónimo produz(iu) e o heterónimo reproduz(iu). Porque de mar se cria o cenário, há ir e voltar da imaginação; há percursos, passagem, fluidez, movimento, deriva, fluxo e refluxo de marés, na aparente instabilidade e contradição (mais complementaridade de forças e sentidos dissonantes) que definem o ser humano na construção de uma identidade complicadamente presente a partir da sua ausência.

     No último dia do espectáculo no Teatro Nacional de São João, dois homens (Diogo Infante e João Gil) fizeram poesia - versos e música - em mais de uma hora de magia para e com um texto que Campos dedicou a Santa Rita Pintor. Poema dito nos seus mais de oitocentos versos magistralmente evocados e convocados na letra e no som, na nota e na luz que abrilhataram o ato de fazer, dizer, ser. No fim, apetece dizer como o poeta: "Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!"

sábado, 30 de novembro de 2013

Depois de uma noite feita de "Oh, les beaux jours" (ou "Happy Days")

        Só por ter sido trauteada, hoje a música não me sai da cabeça.

     A meio da representação de "Ah, os dias felizes" (1960-61) surgem os acordes da "Viúva Alegre" (1905), composta pelo austríaco Franz Lehár (1870-1948).
      Beckett construiu a personagem Winnie enquanto mulher que faz o balanço de um percurso de vida, composto das memórias, lembranças que o discurso e a linguagem permitem reconstituir; na encenação de Nuno Carinhas, associou-se-lhe a música e uma das composições ouvidas é a de Lehár.
      É dessa melodia que hoje não me livro:


      No dueto do tenor espanhol Plácido Domingo e da soprano porto-riquenha Ana Maria Martinez, fica esta versão da valsa que popularizou Lehár.

     Melodia para uma história de amor feita de encontros e desencontros, principalmente construída para emocionar”.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Uma noite com "Ah, os dias felizes"

      A noite foi de Beckett, para um texto desconcertante e uma representação dominantemente monologada por Emília Silvestre.

     Na reflexão feita sobre a vida e a condição humana, dois atos dão a ver uma mulher presa a uma pedra, com tanto de verticalidade na aspiração e elevação dos anseios como de horizontalidade sugestiva na laje sepulcral. No fluir do discurso, há um balanço de vida feito das lembranças que a memória ainda consegue reconstruir. Repetem-se alguns gestos - os possíveis, já que alguns vão sendo perdidos com a passagem do tempo. Espera-se (não por Godot, mas pela morte), na progressiva prisão que a monumental rocha vai moldando ao corpo, até que só há cabeça, pensamento e discurso; até que os olhos fecham e nada mais se ouve dizer.
      A isto assiste o espectador até que, no vaivém do diz ele-diz ela (um par de vultos evocados do passado), se sente invadido, observado por Winnie - como se a realidade estivesse com ela e o teatro passasse a ser vivido na plateia e nos varandins. À maneira de Beckett, representa-se a vida rotineira e banal pelo que esta tem de universal. A universalidade humana, afinal, reflete essa mesma vida sedenta de comunicar com o outro; de sentir a presença de alguém; de ver e de ser visto; de procurar ler o que não se consegue ver; de agarrar e organizar repetidamente aquilo que vai acabar por ficar invisível, mas que se vai 'saber', ainda assim, que estará sempre lá. É este, tem sido assim (como antigamente), o percurso que a Humanidade inscreve na sua vida, com a composição de sons ora alegres ora chorosos, ora pacíficos ora convulsos; com a nota de solidão (apesar das comunhões construídas); com a dimensão individual nos dilemas e receios (não obstante os laços afetivos que se mantenham, sejam estes presenciais sejam eles limitados à recordação). E no meio de tudo, há sempre o som estridente do despertador, compassando o tempo; marcando o acordar para a vida e para a construção dos atos.
     A profundidade humana surge equiparada às entranhas da terra, ligada a ela. Ambas são concretas, compostas, numa sedimentação que resiste até à ameaça do incerto, do desconhecido e do incompreensível, tornado fragmentário, nas camadas que as compõem.
     Pelo poder das palavras e do discurso produzido por Winnie, aqui e além acompanhado por Willie, ganha-se consciência da reflexão produzida: a do ser que vive na língua que usa, que o faz comunicar com os outros e consigo próprio (ocupando o tempo e o espaço que o circundam). A morte chega quando, mais enterrada na pedra, Winnie vai quebrando esse fio de pensamento e de expressão até ao momento em que não produz qualquer som para representar ou para (se) ouvir.
      "Ah, os dias felizes", numa fidelidade maior à tradução francesa de Happy Days (Oh les beaux jours), é o título para a convergência no gosto de um passado (como antigamente ou à moda antiga) e no sentido de vida voltado para um canto (mesmo que seja o lendário canto do cisne).
       A dissolução do ser faz-se, assim, na ansiada harmonia do inefável.

    "E no entanto ela move-se" é a máxima galileiana para se referir ao movimento da Terra que outros queriam negar; pode também valer para significar a progressão da vida, por mais que esta seja vivida nessa ideia de que a fração do segundo seguinte é igual à do anterior (o mestre Caeiro já nos ensinou que não, atento que estava à eterna novidade do mundo em cada instante).

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Áurea em momento áureo

     Um concerto ao vivo, na Avenida 8 (Espinho), com momento áureo.

     Foi assim na noite de hoje: a voz de Áurea para os espinhenses, num espetáculo de rua para todos os que a quisessem ouvir.
    Foram cerca de duas horas com muitos dos êxitos a serem cantados em palco montado em plena alameda junto ao Casino local.


      BUSY (for me)

I tried to call you
But you didn't answer the phone
I tried to pick you up
But you didn't come along
I tried to talk to you
But you didn't even answer me
I tried to reach you
But you're so high up above

Oh baby,

I try every day
I cry every night
For a second of your time
But you're so busy for me
You don't care for my plea
So I cry.Cry.Cry, cry... 

Oh... 
I tried to tease you
But you didn't even care
I tried to love you
But your heart closed its doors

Oh baby

I try every day
I cry every night
For a second of your time
But you're so busy for me
You don't care for my plea
So I cry, cry, cry, cry... 

So you didn't come along
You didn't answer
You didn't care
You closed your heart for me

Oh... 
(I tried to call you... Pick up the phone)

You're so busy...

     Quem assistia dançava e cantava ao jeito que Deus lhe deu - uns melhores, outros piores -, mas sempre acompanhados pela sonoridade e qualidade de uma voz que não precisava de arranjos técnicos para afinar:


       Okay alright

There's a long and open road
laying on my way now
I don't need to stop and think about it
'cause my heart will guide me through

you don't need to promise me the moon
just sit with me and watch the moonlight
then every little star will sing this song
and if you feel good, come on
just sing along

I'm okay, I'm alright
I got good feelings on my mind
I'm okay, I'm alright 
with you (bis)

Love is like a tiny little sparrow
you can't hold it on a cage no no you can't
it flies free through the morning breeze
only guided by a wild warm heart

'cause you don't need to promise me the whole sky
just sit with me and watch the sunrise
set yourself free and breathe deep inside
and while you do that, come on
and just sing along

come on now

I'm okay, I'm alright
I got good feelings on my mind
I'm okay, I'm alright 
with you (bis)

     Noite áurea para uma Áurea que deixou os espectadores a pedir mais, mesmo depois dejá se ter despedido e ter regressado ao palco. É que o 'encore', pelos vistos, não dá para três vezes. Só duas.

    Uma noite para se poder dizer "I'm OK, I'm alright (with you)'.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Clara, Clarita, Clarinha… sem clareza nem claridade

Mais uma peça de teatro com tudo o que existe na vida.

A típica história de um amor mal resolvido, conduzido para a vingança por uma mulher (a menina de tranças ruivas, saída da sua terra natal a chorar e grávida, e regressada como Clara Zachanassian - qual Zacharias, Onassis e Gulbenkian feminina -, velha tão grotesca, desconjuntada e cheia de próteses quanto fetichista e adepta de uma vivência amalgamada de meretriz, de besta e capitalista), evolui para a abordagem sociopolítica de uma terra falida (Güllen), a qual irá ser resgatada e refinanciada pela sua “boa filha”, a troco de esta última poder reaver a justiça que só a satisfaz no desejo de vingança e na prepotência que representa. Este é um eixo dramático numa peça de Friedrich Dürrenmatt, autor suíço do século XX ligado ao teatro épico, a esse género de cariz dramatúrgico destinado à reflexão alegórica que, no caso, é a da condição da crise dos tempos, dos lugares e das pessoas.
Assim se vê a terra a partir do teatro. Neste se ensaia a consciência crítica que as linguagens performativas e artísticas propiciam a quem nelas se representa e/ou com elas contacta. Se a intervenção no real pode não ser imediata, a questão de cidadania constrói-se pela visualização de uma trágica comédia, na qual Güllen é terra que sucumbe à pressão da(s) necessidade(s) – no fundo, toda e qualquer terra que passa pela condição de crise; terra que “se aluga” e cujo “futuro radioso” é o da roupagem de uma urbanização sem qualquer urbanidade ou humanidade. 
Na esteira de Brecht, o distancia-mento e a recontex-tualização reveem-se; no alinhamento de Beckett, há tons de absurdo e gro-tesco; na contem-poraneidade e atua-lidade do texto, há a sensação desconcer-tante de o espectador se rever no palco, como se tudo o que estivesse a ser representado fosse a história real. O final é destrutivo: afirma a vulnerabilidade da condição humana em contextos de privação, capaz das maiores atrocidades, e a sublinhar a descrença nas qualidades humanas; confirma o destino trágico do Homem, numa entrega à imoralidade, à corrupção e à subversão dos valores sociais que irradiam de jogos de interesse(s), de retórica, de palmas e de poder; de esquemas demagógicos construídos por quem pretende preservar o seu estatuto e o seu poder. A tetrarquia P – do professor (Luís Lucas), do político (Cândido Ferreira), do padre (Jorge Falé) e do polícia (Tonan Quito) – compõe-se desses tipos sociais que se alimentam de um poder coletivo corrosivo, manipulador, degradante, capaz de treinar mentes vãs em corpos menos sãos para fins pouco dignificantes. Inclusive Koby e Loby, gémeos colocados ao serviço da Velha Senhora, se assemelham a uns sátiros transformados em simples dupla de servos demoníacos: um a dizer mata, outro a dizer esfola; um a rir, outro a ecoar tudo o que o primeiro faz; ambos a celebrarem o que nasce na maior das falsidades e ilusões (há duplas tão representativas daquilo que acontece frente aos nossos olhos que até dá para rir - quando devia ser chorar -, por serem tanto vistas em cena como lembradas no palco da vida).
Uma velha senhora que diz “Quem não pode pagar tem de aguentar se quiser entrar na dança” ou quem protesta energicamente a ponto de denunciar como ninguém aciona o sinal de alarme neste país, mesmo em caso de alarme, são, no mínimo, ressonâncias ou coincidências a mais para uma atualidade e para um Portugal em progressivo definhamento, para não dizer falecimento. Resta-lhe, como a ‘Alfred ill’ (Horácio Manuel), ser conduzido num caixão para ficar num mausoléu em Capri, a olhar para o azul profundo do Mediterrâneo? Será esse o prémio de se ser bom aluno?

Um texto datado de 1956, uma peça encenada por Nuno Cardoso e coproduzida por Ao Cabo Teatro, Companhia Maior, Centro Cultural Vila Flor e o São Luiz Teatro Municipal que os nossos atuais políticos bem podiam ver, para assistirem ao triste espetáculo que nos dão a ver. Vantagem da Velha Senhora (Maria João Luís), que conseguiu, por três vezes, os aplausos que dirigentes da nossa pátria moribunda não conseguem arrancar a quem é por eles governado.

sábado, 8 de junho de 2013

Pacto de delicadeza com poesia na língua portuguesa

      Um balanço para um momento feito de canto e de palavras, com a delicadeza e a magia de uma voz.

    Mais conhecida como a abelha rainha da Música Popular Brasileira (MPB), Maria Bethânia partilhou com o seu público, nesta noite e no Teatro Nacional de São João, Bethânia e as Palavras: projeto que combina, intercaladamente e num fio condutor feliz, poesia em língua portuguesa, música e cantigas do repertório da artista.
     A iniciativa foi levada a cabo no e pelo Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), no âmbito das comemorações do ano do Brasil em Portugal, numa demonstração dessa relação apaixonada que a cantora mantém com as palavras, desde os tempos de infância e da aprendizagem feita, na Bahia, com o professor-poeta Nestor Oliveira.
     Entre os versos de Carlos Drummond de Andrade, de Fernando Pessoa, de Dorival Caymmi, de Manuel Alegre, de Sophia de Mello Breyner Andresen; as palavras de Guimarães Rosa e as de mais alguns escritores e compositores brasileiros (dos mais populares aos mais eruditos), surgiram a oportuna e clarividente apologia à escola pública e ao professor que nesta ainda convoca a magia da voz e da palavra; a afirmação da poesia nos lugares mais recônditos, num apelo à liberdade e à busca de sonhos e de luz para um mundo de corre-corre ilustrado com cores que parecem não ter senão preto e branco.
     Assim foi o tempero de uma noite, numa sala de espetáculo animada com os ritmos, o embalo dançante e o toque baianos, numa cidade e num país ameaçados de morrer à míngua - um país de músicos e poetas com a pátria na sua própria língua.


    Três andamentos soaram nessa noite abobada por uma grande estrela, com lembranças, partilhas, ecos musicais e versificados no idioma que se triangula num Atlântico europeu e afro-americano e que não deixou de rumar ao Índico, ao Pacífico, espalhando que tudo “Foi por vontade de Deus”.

      Com a declamação do poema VIII de Alberto Caeiro; o canto da língua, da poesia, dos sonhos e da alegria; o toque do chão e o encantamento índio de uma "força que nunca seca", ficou a alma dos espectadores mais cheia com a presença dessa filha de Seu Zezinho e Dona Canô; dessa "Maricotinha" que deixou um "grito de alerta"; que não pôde bisar com as palavras, mas se despediu com o som da sua voz, da sua música e magia.

sábado, 18 de maio de 2013

Faz um ano...

      Foi excecional a noite, por mais que chovesse.

     Havia cor(es), alegria nas palmas e nos gritos, espetáculo de luz, de fogo (tanto do de artifício como do de calor humano) e vozes (a de Chris Martin mais as do grupo, além de todas as outras do público que encheu todo um estádio de magia). 
      Há um ano foi assim: Coldplay no Dragão (dupla causa para emoção). Houve até razão para nova letra de canção: "Come up to Porto" foi a forma encontrada para iniciar "The Scientist".

"The Scientist" muito portuense (18 de maio de 2012)

   Outros, muitos, foram os sinais da entrega do grupo ao público entusiasta: desde o "Hello, everybody! Tudo bem?", depois do In my place, à bandeira portuguesa nas mãos do vocalista enquanto cantava a canção que fechou o concerto.
    O palco central foi ocupado mais do que uma hora, em atuação contínua. Um miniconcerto ocorreu ainda num dos recantos do estádio, junto dos espectadores que mais longe se encontravam (no chamado palco C).
     Foi a noite do começo das digressões europeias por estádios repletos de fãs ou de quem simplesmente aprecia as músicas de um dos melhores grupos musicais da atualidade.
      Ainda não tinham entrado em cena e já todos chamavam por eles, com os acordes do "Viva La Vida". Com os mesmos se fez a despedida.

      Tempo de música e momento para recordar - "just erodes in the rain, just erodes and see roses in the rain" (de Us against the world).

quinta-feira, 21 de março de 2013

Em dia de poesia, fiquei-me pelo teatro.

    Na linha de um "ridendo castigat mores" aplicado à época setecentista e com evidentes ecos no tempo contemporâneo, Pierre Marivaux viu muito além do seu tempo (ou aquilo que fica, porque somos nós que passamos).

    Uma adaptação e combinação de vários textos de Marivaux (L’Amour et la vérité, Le Chemin de la fortune, La Réunion des amours, Félicie e Le Cabinet du philosophe) é o manto que a adaptação e encenação de Luís Miguel Cintra propõe aos espectadores para uma noite no Teatro Nacional de S. João, com a peça Os Desastres do Amor, levada à cena pelo Teatro da Cornucópia. Nela assiste-se à representação de um mundo composto de alegorias para valores, virtudes que se perde(ra)m ao longo do tempo(s).
    Passam os séculos, a mudança impõe-se paulatina e repetidamente. Aspira-se a novos padrões, novos princípios, mas o confronto final é feito sempre com o que se julgava já perdido. Entre balanços e confrontos com visões da vida, passamos.
   Do Cupido-menino, que cresceu e se tornou 'Amore', a um Dom Cupidom que radicaliza a vivência amorosa, evidencia-se a decadência dos costumes (inclusive a de uma herança cultural, mitológica, desconstruída ao longo de gerações), pela forma de um 'palácio da Fortuna' cuja piscina seca dá lugar a um palco de cruzamentos, animações, festas para entreter personagens com percursos feitos de desequilíbrio, injúria, despudor, arrogância, poder inconsistente, interesseiro e interessado no que há de mais físico, material e centrado no prazer de ser, sentir e ter.
    Numa primeira parte, há o tempo para se "apostilar o exórdio": um homem (Amor) e uma mulher (Verdade) dialogam para que todos saibam que a mentira está na cidade ("indigno comércio de complacências e de logros que a Lisonja aqui introduziu").
Os Desastres do Amor - Teatro da Cornucópia  (foto de Sara Santos)
     Na segunda, Felícia, uma viúva de meia-idade em busca da felicidade e da verdade, descobre não ser fácil (senão impossível) amar, mesmo dizendo que tudo controla na aproximação àquele que lhe oferece a oportunidade de vi-ver esse sentimento. Parece desconhecer os limites na apreensão do amor, em particular, e da vida, em geral; aprende-os pelo percurso feito, mas passa por eles praticamente incólume, sob a proteção constante de uma fada-madrinha (a Doutora, Diana, Fortuna, a dona do 'Palácio da Fortuna') que, pouco tendo de virtuosa, é uma espécie de deusa suprema, pondo à prova seres e almas que quer ver trabalhados e analisados num mundo composto por uma babel linguística (italiano, espanhol, francês, inglês, português). Nele brincam ricos e gaudérios, comportando-se como deuses do Olimpo. Sofrido e desiludido fica o "amador" Dimitri: um estrangeiro que amou; um pobre que procurou lutar e escolher uma vida que ele queria construída à medida das suas ideias e dos seus ideais.  
      Bem que podiam ser estas as palavras do apaixonado, revistas na inspirada e famosa canção napolitana dos anos trinta composta por Enzo Fusco:

      DICITENCELLO VUJE

Dicitencello
a ‘sta cumpagna vosta
ch’aggio perduto ‘o suonno
e ‘a fantasia.

Ch’ ‘a penzo sempe,
ch’ è tutt”a vita mia.
I’ nce ‘o vvulesse dicere,
ma nun ce ‘o ssaccio dì­.

‘A voglio bene
‘A voglio bene assaje.
Dicitencello vuje
ca nun mm’ ‘a scordo maje.

E’ na passione
cchiù forte ‘e na catena,
ca mme turmenta ll’anema
e nun mme fa campà.


Dicitencello
ch’ è na rosa ‘e maggio,
ch’ è assaje cchiù bella
‘e na jurnata ‘e sole.


Da ‘a vocca soja,
cchiù fresca d”e vviole,
i già vulesse sèntere
ch’è ‘nnammurata ‘e me.


Na lacrema lucente
v’è caduta,
dice­teme nu poco:
a che penzate?

Cu st’ uocchie doce,
vuje sola mme guardate.
Levammoce ‘sta maschera,
dicimmo ‘a verità.

Te voglio bene.
Te voglio bene assaje.
Si’ tu chesta catena
ca nun se spezza maje.

Suonno gentile,
suspiro mio carnale,
te cerco comm ‘a ll’aria,
te voglio pe’ campà.

Te voglio pe’ campà!


"Dicitencello Vuie" na voz dos tenores Placido Domingo, Luciano Pavarotti e Jose Carreras

   Sem sucesso. As palavras e a melodia não seduzem o coração feminino: Felícia rende-se à moral dominante, não explorando as possibilidades de realização e de felicidade oferecidas por quem a ama. 
   Duas vítimas jazem no palco: Modéstia, a companheira cedida pela fada-madrinha, que não permitira ousadias na busca da felicidade; um "escort" de luxo, Apolo, com muitas "artes de sobrevivência", mas sem final feliz.

      E assim chega o momento de "apostilar o epílogo": se Escrúpulo é a personagem pela qual todos devem passar para entrar no "Palácio da Fortuna", neste último parece tudo haver, à exceção do amor terno e puro que não vence; a fortuna fica mais para a materialidade (a do prazer e do dinheiro) do que para a sorte ou destino, na virtude e na honestidade. Que escrúpulos são estes? Mudança de tempos, mudança de sorte, mudança de valores? O tempo o dirá.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A estalajadeira... ou simplesmente Mirandolina

        Na procura de comédias no cinema, tropecei numa de Goldoni no Teatro Nacional de São João.

        A peça, na tradução e encenação de Jorge Silva Melo, conta com a representação de Artistas Unidos: Catarina Wallenstein (Mirandolina), Américo Silva (Marquês de Forlipópoli), António Simão (Conde Albafiorita), Elmano Sancho (Cavaleiro de Rippafat), Rúben Gomes (Fabrício, empregado de Mirandolina), Maria João Falcão ("Baronesa" Hortênsia, de Palermo), Maria João Pinho ("Condessa" Dejanira, de Roma), João Delgado (Criado do Cavaleiro) e Tiago Nogueira (Criado do Conde).
       Da autoria do veneziano Carlo Goldoni, A estalajadeira (estreada em 1753) é o alvo nesse conflito setecentista entre uma velha aristocracia em decadência e uma burguesia em ascensão. Num teatro que reflete a mudança no Mundo, no realismo que espelha a questão social e a natureza das relações homem-mulher feitas também dos sentimentos matizados pela sociedade dominante.
     Num local de encontros (a estalagem), aprende o público as artes de sedução (da estalajadeira Mirandolina) e como não é credível dizer "nunca mais" (como o cavaleiro que, conscientemente afastado dos perigos femininos, acaba por se render aos encantos de Mirandolina); confronta-se com os vários estratos sociais, as expectativas e as frustrações vividas; partilha, com a heroína, as estratégias de uma sobrevivência que pode sair cara, quando levada ao limite dos estratagemas e dos artifícios. Daí o aviso final, com a moralidade típica do exemplo: "E vós, senhores, aproveitai de tudo o que vistes para vantagem e segurança dos vossos corações. E se alguma vez estiverdes numa ocasião de duvidar, quase a ceder, pensai nos artifícios que vistes. E lembrai-vos da Estalajadeira!"
      Mirandolina é "diretora" na representação do amor. É aquela que confidencia ao espectador o que nunca fará, para não cair nas malhas do duque arruinado ou do conde que usa e abusa do dinheiro que tem para tudo conseguir; é aquela que dá a conhecer tudo o que vai  ser feito para dominar um cavaleiro que se diz distante dos efeitos de sedução feminina. No exercício desse seu poder - que transforma as relações com o masculino num jogo cómico -, o controlo dos "cordelinhos" pode ser perdido. Mirandolina sabe-o, como o revela ao confrontar astutamente duas comediantes, senhoras sem condição social definida (e sem homem), frívolas, disponíveis para tudo e para todos. 


      Por isso, a dona da estalagem, no final e por opção própria, cumpre o que lhe está destinado, na sua própria situação: aceitar o que a realidade lhe dá (Fabrício, o homem que a deseja e que se encontra ao seu lado, no seu próprio espaço / universo), em vez de continuar com jogos de teatro, que a podem comprometer.

      Entre um duque, um conde e um cavaleiro, a estalajadeira é aquela que define o que quer da vida, dona de si e do seu nariz - um pouco à imagem da Inês Pereira: não quer cavalos que a derrubem (cavaleiro ou alguém de condição "superior"); fica com o "asno" (não tão tolo ou ingénuo quanto o original vicentino, mas alguém que sempre viveu e quis ser em função dela).

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Chuva com música

      Podia ser Vivaldi mais 'As Quatro Estações' (bem adequada ao clima vivido), mas a música foi outra.

    Em plena tarde chuvosa de inverno, os alunos de oitavo ano deslocaram-se até à Casa da Música, na Boavista (Porto). A visita de estudo foi organizada no âmbito da disciplina de Ciências Físico-Químicas e contou com o acompanhamento de vários outros professores de diferentes disciplinas. 
      Cinco turmas puderam assistir a um concerto ("Via Verdi"), no qual se procurava, através de uma encenação simples, aproximar os jovens não só de alguns conceitos (ária, dueto, libreto, allegro, adágio) mas também de algumas referências musicais. Basicamente, o escultor e pianista João Fígaro propõe-se concluir um busto inacabado de Giuseppe Verdi, mais a estátua de um pensador. O trio apresenta, assim, peças cantadas e inscritas nas óperas do compositor oitocentista,  explorando algumas situações de cómico.
    Cumprida esta etapa, prosseguiu-se com uma visita guiada à "Casa" projetada pelo arquiteto holandês Rem Koolhaas para o evento Porto - Capital Europeia da Cultura, em 2001 (ainda que a construção só ficasse concluída quatro anos depois). A forma e a estrutura singular do edifício são apelativas e desafiadoras; os mate-riais e os pormenores de construção, marcantes; as visões da cidade, fantásticas.
     A sala Suggia, dedicada à violoncelista portuense Guilhermina Suggia (mais conhecida internacionalmente do que no país ou na sua própria cidade), é o cartão de visita-mor do edifício: uma sala de concerto toda revestida a pinho e com pormenores de folha dourada; com duas grandes janelas de vidro ondulado, a norte e a sul; com um órgão de tubos a replicar a arte barroca e um segundo de traçado romântico. Impressionante é a preocupação acústica do espaço, nomeadamente nos pormenores do tecido das cadeiras, no suporte de braços em silicone, na ondulação do vidro que se compagina com a propagação sonora em múltiplos sentidos.
      Todos os participantes deram a tarde por recompensadora, tanto pela qualidade da visita guiada como pelo que foi dado a observar, a experimentar, a concluir.

     Na condição climatérica que tudo tinha para não dar certo, a tarde foi musical, harmoniosa com o toque agradável de uma despedida também feita dos parabéns recebidos pelo comportamento dos alunos. Palmas para eles, que deixaram os professores orgulhosos.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Fica a melodia

     É de mel o dia, quando voz(es), texto e música trazem alegria.

     Revisto o espetáculo que Ivan Lins protagonizou em Guimarães, aquando da Capital Europeia da Cultura 2012, um dueto com Raquel Tavares impõe-se: "Vieste".


          VIESTE

Vieste na hora exata
Com ares de festa e luas de prata
Vieste com encantos, vieste
Com beijos silvestres colhidos prá mim
Vieste com a natureza
Com as mãos camponesas plantadas em mim

Vieste com a cara e a coragem
Com malas, viagens, prá dentro de mim
Meu amor

Vieste a hora e a tempo
Soltando meus barcos e velas ao vento
Vieste me dando alento
Me olhando por dentro, velando por mim

Vieste de olhos fechados num dia marcado
Sagrado prá mim
Vieste com a cara e a coragem
Com malas, viagens, prá dentro de mim


   Boa voz, belo texto, linda composição em momento grandioso do evento, dirigido pelo maestro Rui Massena e orquestrado pela Fundação Orquestra Estúdio. Estava-se em novembro, pelos 24 dias.

     Fica o registo do que terá sido, por certo, um grande momento da música em português, só pelo que a televisão ainda vai deixando rever. Fica ainda a melodia, pelo que constata e pelo que deixa sempre sugerir.

sábado, 12 de janeiro de 2013

A gente passa, o tempo fica... na vida

     Esta foi uma das frases sublinhadas num espectáculo com muitos ensinamentos.

     Hoje o Teatro Nacional de São João esgotou, para a última representação de "Sombras (a nossa tristeza é uma imensa alegria)" - musical teatral de que já ouvira falar (e muito bem) aquando da sua primeira temporada no Porto, em novembro de 2010. Deslocado para Lisboa, regressou à Invicta (ou Inbicta, para respeitar o registo nortenho) em 2013, para três noites que - a julgar pela última - foram surpreendentes.
     Criação de Ricardo Pais com direção musical de Mário Laginha, um conjunto de artes performativas, de sons e de imagens oferece palavras e textos de três séculos da nossa cultura: o quinhentista (com a Castro, de António Ferreira), o oitocentista (com Frei Luís de Sousa, de Garrett) e o contemporâneo (com Figurantes, de Jacinto Lucas Pires). No entremeio, ouvem-se a "Carta da Corcunda para o Serralheiro" (de Pessoa), "Ai, Margarida" (de Álvaro de Campos), "Nós, Portugueses, somos castos", "Pântano" e "Nocturno" (de Pedro Homem de Mello) entre outros textos e poetas cantados por José Manuel Barreto e Raquel Tavares. É o género musical do fado que atravessa toda a representação, como se Portugal também quase e só vivesse o fado dos mitos trágicos ou dos temas portadores da (com)paixão sofrida, impositiva, partilhada.


    A nota dissonante é trazida por um par de personagens que, numa alternativa à mitologia e ao imaginário carregados da tradição, desconstrói o fatídico e trágico em festivo e cómico. Do sofrimento à vitalidade, estes compères (apresentadores de rádio, televisão e espetáculo) revelam-se uns 'figurantes' a protagonizar a desconstrução capaz de mudar o grito de vergonha de uma Madalena de Vilhena (na sequência de um Romeiro que se associa a D. João de Portugal) na  entusiasmada ânsia de um "É ele!", mitigando o drama; a intensa e pesarosa paixão na animada e carnavalesca fantochada, só permitida pelo distanciamento; a solenidade e teatralidade da cultura séria na banalidade de um "Oh", acompanhado de um braço erguido e atirado por cima da cabeça, para trás das costas. Tudo na sequência da oferta de um ramo de gerúndios brancos a uma mulher.
    Desta forma, a realidade assume-se infinitamente maior do que o sonho, pelo que dela e na vida se queira fazer, existindo. Podem o "barco ao sabor das ondas perdidas", as "Árvores de oiro (que) andam, de rastos, partidas todas ao meio" aspirar a alguma luz - até porque as sombras, para o serem, têm de se alimentar de alguma (por pouca que seja) luminosidade.

      Ó luar da meia noite, 
     alumia cá p'ra baixo, 
     que eu perdi o meu amor 
     e às escuras não o acho.

     Revisitado o passado, afirma-se a possibilidade de um futuro que, não apagando o primeiro, abre sempre a hipótese de conciliar a tradição com os sinais de modernidade.

     Ficam as palavras, os textos, um palco pleno de significado para a vida que Ricardo Pais quis dedicar ao Paulo Eduardo Carvalho, meu companheiro (e também da Emília Silvestre), no curso de Português-Inglês  na  FLUP, lá por meados da década de oitenta. Passou tão cedo, o Paulo... não ficou neste tempo que por cá anda.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Para lembrar

     RTP 2 lembra o espetáculo de Ivan Lins, no Multiusos de Guimarães, no passado dia 24 de novembro.

    Um concerto de Lusofonia - com Português do Brasil, de Portugal, de África - foi o que o compositor brasileiro acabou por apresentar, cantando ao lado de nomes como os de Paulo Flores, Raquel Tavares e Paulo de Carvalho.
      "Lembra de mim" foi uma das canções interpretadas com Raquel Tavares, artista de mão cheia, bem para lá da fadista que é:


       LEMBRA DE MIM

Lembra de mim!
Dos beijos que escrevi
Nos muros a giz
Os mais bonitos
Continuam por lá
Documentando
Que alguém foi feliz...

Lembra de mim!
Nós dois nas ruas
Provocando os casais
Amando mais
Do que o amor é capaz
Perto daqui
Há tempos atrás...

Lembra de mim!
A gente sempre
Se casava ao luar
Depois jogava
Os nossos corpos no mar
Tão naufragados
E exaustos de amar...

Lembra de mim!
Se existe um pouco
De prazer em sofrer
Querer te ver
Talvez eu fosse capaz
Perto daqui
Ou tarde demais...

Lembra de mim!...


     Os merecidos aplausos sublinham um momento bem sucedido, porque bem interpretado, emotivo... mágico no evento.


sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A noite do absurdo de todos os dias

      Saí de uma câmara de morte com tudo para a vida, à boa maneira existencialista.

     "In camera" (Huis Clos, no título francês) é o espetáculo levado à cena pelo In skené - grupo de Teatro de Amadores de Gondomar, até ao próximo dia 22, na Sala Monte Crasto - Multiusos de Gondomar.
    Apoiado no texto de Jean-Paul Sartre, pela tradução de Sofia Araújo e encenação de João Ferreira, há um percurso dramatúrgico a que os espectadores não são estranhos: o do acordar para a vida; o das máscaras colocadas nas caras e o dos jogos de força e sedução levados a cabo na existência; o dos caminhos dirigidos a um só fim. E depois...

Vídeo de Ricardo Pita

      A sugestão do vazio, do gelo, da gota que cai continuamente no balde de metal cruza-se com uma luz que dá a ver o que se foi e o que se descobre ser, como se todo o passado tivesse sido vivido em mera sombra. Libertos da caverna, e como se do mito platónico se tratasse, essa mesma luz fere, encandeia, até que dá a ver o que nem sempre se quer.
    Tudo meticulosamente preparado, colocado à disposição de um tempo eterno, feito de renovada estabilidade, qual estátua sem possibilidade de mudança.
      Em torno e ao nível de um palco que também é o do espectador (com um pé na vida real e outro na ficção pós-morte), o vazio vai sendo ocupado por uma angústia tão existencialista quanto desafiante nas forças, nos desconcertos e nos limites. Três passados, três existências dominadas por traços viciosos ou defeitos (Garcia, Inês e Estela) são discutidos, confrontados e analisados até à consciencialização do absurdo de um destino colocado frente aos olhos de todos, mas que ninguém parece querer ver.
      Com a obra, Sartre põe o dedo na ferida; com a peça, torna-se presente todo o ser, vivificam-se a ironia e o sarcasmo que destroem tantas máscaras da existência; arrancam-se risos denunciadores da avaliação de páginas de vida (redescobertas na morte), particularmente naquilo que elas já não podem mais ser ou fazer. Resta-lhes não poder escapar a um ciclo que se fecha, se repete na clausura: a de uma porta que, mesmo aberta, não é trespassada, por causa do que cada um interpreta de si mesmo e dos outros.

      Nessa condição, abandona-se a câmara, regressa-se à vida já não com a luz do dia, mas o escuro que impede o ser humano de ser transparente. Clara foi a qualidade do texto; das palavras recriadas no drama; das vozes escutadas; das representações a refletir, na perfeição, a atitude de desorientação e confusão face às vivências, bem como a fazer cair o "em-si" (recuperando o conceito filosófico de Sartre para a existência do mundo, nada mais sendo para além do que simplesmente se é) num "para-si" (mais do domínio da consciência analítica do espectador). Fragmentos de vida que só pela ficção se situam após a morte. Mais uma ótima representação do 'In skené'.
      

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Casas Pardas - do passado ao presente ou do presente no passado

     (ou o voo dos pássaros negros)...

    A encenação de Nuno Carinhas para este "romance em cena", numa adaptação dramatúrgica de Luísa Costa Gomes para a narrativa de Maria Velho da Costa, é uma autêntica polifonia de vozes e linguajares cruzados com uma policronia feita de várias coordenadas: a do jogo de tempos entre o passado e o presente vividos pelas personagens; a do passado que evolui para um presente análogo ao tempo da representação; a de um presente da representação que se revê nas crises de um passado (metaforizado no voo dos pássaros negros).
    É um tempo de crise que se impõe na intriga representada: "Casas Pardas" é a Lisboa do final da década de sessenta no século passado, sociedade agónica no período salazarista e salazarento, de conturbação política e social, com ecos da guerra colonial e das revoluções estudantis; é o tempo de uma ditadura pardacenta, hipócrita, que assiste ao terramoto trazido pela democracia, numa mudança que se perspetiva pela sensibilidade diferente e pela crítica acutilante de Elisa relativamente à mãe, à irmã Mary, ao cunhado (que corporiza a dissimulação e a perversão dominantes).
    Chegado o novo tempo - o da cara da aurora lavada na nascente -, reconhece-se uma nova realidade social, uma vivência mais aberta ao corpo, aos sentidos e às sensações - tempo de máscaras quebradas, derrubadas para que se possam construir novas memórias (combatendo os desmemoriados simbolizados pelo pai de Elvira).
     A deriva proposta em termos de tempo contrasta com a economia do espaço cénico. Este invade a plateia, numa aproximação significativa ao espectador, configurando a multifuncionalidade de um pátio (que, entre outros, é casa; que é estação; que é hospital; que é interior; que é exterior). Nele desfilam adereços, personagens, inconsciências, consciências, classes sociais, corpos, vidas, tempos em vaivém - ou, como a poetisa Ana Luísa Amaral o sugeriu no poema "Pardas Casas": 

"Pátios de fazer guerra contra as coisas
que podres deitam ramos e ruínas, 
e preparam os passos de passar".

     E porque tudo passa e se tende a desmemoriar, o espectador revisita, nesta encenação e neste cenário, sinais do "voo dos pássaros negros", crises políticas e sociais de um passado com tanto de comum ao presente. Por isso, a identificação com a personagem Elisa é inevitável, acabando-se por desejar uma "crise que combine comigo" / connosco, tal a distanciação construída entre o texto representado e o momento da representação (como se de uma dramaturgia de Brecht se tratasse).

      ... (à espera de uma cara da aurora lavada na nascente).

terça-feira, 30 de outubro de 2012

E agora o filme!

   Anunciada para o dia 13 de novembro, a estreia mundial.

   E não é que o que começou no Porto (a tour do Mylo Xyloto) parece não estar programado para a exibição fílmica?!


   E ainda por cima, logo no arranque, o Dragão impõe-se!

   Uma forma de rever um bom momento, por certo.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Bandeira com público ao rubro

     Depois de uma bandeira ao contrário, a lembrança...

   ... não dos tempos em que havia mais respeito (ou simplesmente mais jeito) por um dos símbolos nacionais.
      Simplesmente a lembrança de alguém que fez vibrar o público com a bandeira que dele recolheu e a ergueu à vista de todos, até se cobrir com ela.


     Quando o pouco se faz muito ou quando "every teardrop is a waterfall".

I turn the music up, I got my records on
I shut the world outside until the lights come on
Maybe the streets alight, Maybe the trees are gone
I feel my heart start beating to my favourite song

And all the kids they dance, all the kids all night
Until monday morning feels another life
I turn the music up
I'm on a roll this time
And heaven is in sight

I turn the music up, I got my records on
From underneath the rubble, sing a rebel song
Don't want to see another generation drop
I'd rather be a comma than a full stop

Maybe I'm in the black, Maybe I'm on my knees
Maybe I'm in the gap between the two trapezes
But my heart is beating and my pulses start
Cathedrals in my heart

As we saw oh this light I swear you, emerge blinking into
To tell me it's alright
As we soar walls, Every siren is a symphony
And every tear's a waterfall
Is a Waterfall
Oh
Is a Waterfall
Oh Oh Oh
Is a, Is a Waterfall
Every tear
Is a Waterfall
Oh Oh Oh

So you can hurt, hurt me bad
But still I'll raise the flag

Oh
It was a wa wa wa wa wa-aterfall
A wa wa wa wa wa-aterfall

Every tear
Every tear
Every teardrop is a Waterfall

Every tear
Every tear
Every teardrop is a Waterfall


     Falta dizer que foi em Maio, no estádio do Dragão, no fim de um espetáculo em duplo sentido (talvez esteja aí a diferença).

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Jogos com a descoberta de um livro

    Foram hoje abertos os Jogos Paralímpicos - Londres 2012. 

    Porque há quem faça das fragilidades força, cabe reconhecer que há filhos de um Deus que não é  menor e, portanto, nas suas dificuldades, dão o exemplo de que os limites existem para serem superados. Daí o símbolo da bandeira paralimpíada, o 'Agito' - 'eu movo', na língua latina. 
    Na cerimónia de apresentação dos jogos deste ano, o núcleo do espetáculo apoiou-se na apresentação de um livro: o Admirável Mundo Novo (Brave New World, segundo o título original inglês), da autoria de Aldous Huxley. 
  Inspirado numa réplica de Miranda na obra shakespeariana The Tempest, o título desta narrativa publicada em 1932 tem mais de atrativo no que sugere do que na história dá a ler: propõe a hipótese de um futuro no qual as pessoas se encontram genética e psicologicamente predeterminadas, conformadas a viverem harmoniosamente segundo leis e regras sociais de uma sociedade estratificada, organizada por castas. 
    Bernard Marx é o protagonista, descontente consigo mesmo por, em certa medida, se apresentar como fisicamente distinto dos outros elementos da sua casta.
    Nessa medida, numa espécie de reserva histórica, onde algumas pessoas continuam a viver conformes a valores e regras do passado, Bernard encontra um jovem que irá apresentar à sociedade asséptica do seu tempo, como um exemplo de outra forma de ser e de viver.

    "... chorava por estar sozinho, por ter sido escorraçado, sozinho, para o mundo sepulcral dos rochedos e do luar. Sentou-se à beira do precipício. A Lua estava atrás dele; mergulhou os olhos na sombra negra da mesa, na sombra negra da morte. Tinha só que dar um passo, um pequeno salto... Estendeu a mão direita ao luar. Do golpe do pulso ainda corria sangue. Com intervalos de alguns segundos, caía uma gota, sombria, quase incolor na luz morta. Uma gota, uma gota, uma gota... «Amanhã, e amanhã, e ainda amanhã ...
      Tinha descoberto o Tempo, a Morte e Deus. 
      - Só, sempre só - dizia o rapaz. Estas palavras acordaram um eco doloroso no espírito de Bernard. Só, só... 
    Eu também - disse ele num sopro de confidência. - Terrivelmente só. 
     - Você também? - John espantou-se. 
     - Pensei que Além ... Quer dizer, Linda,dizia sempre que nunca ninguém estava só. Bernard corou, contrafeito. 
     - É preciso esclarecer - continuou, gaguejando e desviando os olhos - que devo ser um pouco diferente da maioria das pessoas. Se acontece às pessoas serem diferentes desde a decantação ... 
     - Sim, é isso, precisamente. - O rapaz aprovou com um sinal de cabeça. - Ser diferente condena a uma fatal solidão. E a um tratamento abominável. Acredita que eles me mantiveram absolutamente afastado de tudo? Quando os outros garotos iam passar a noite nas montanhas - sabe quando é, quando se deve ver em sonho qual é o nosso animal sagrado -, não consentiram que eu fosse com os outros. Não quiseram confiar-me nenhum dos segredos. O que não impediu que eu o fizesse sozinho - acrescentou. 
     - Estive sem comer cinco dias, e depois fui uma noite sozinho para as montanhas, além. - E indicou-as com o dedo. 
     Bernard teve um sorriso protector. 
     - E você conseguiu ver qualquer coisa em sonho? - perguntou. 
     O outro fez um sinal afirmativo com a cabeça. 
  - Mas não posso dizer-lho. - Calou-se uns momentos, para acrescentar em voz baixa: - Um dia fiz uma coisa que os outros nunca tinham feito: fiquei de pé contra um rochedo, num meio-dia de Verão, com os braços estendidos, como Jesus crucificado. 
     - Mas porquê? 
  - Porque queria saber o que representa ser crucificado. Suspenso ali, em pleno sol ... 

     Não imaginando as implicações, os problemas e conflitos decorrentes da sua decisão, a personagem Bernard Marx acaba por, em cumplicidade com o autor, fazer de Admirável Mundo Novo um aviso, uma chamada de atenção aos totalitarismos, um apelo à consciência dos homens face aos perigos que ameaçam a humanidade, caso não haja resistência ao sedutor canto da sereia que anuncia (falsas) noções de progresso.

      Mensagem relevante para qualquer sociedade que, nas suas diferenças, tenda a tratar todos por igual, sem reconhecer os limites de cada um ou fazendo destes um qualquer padrão de comportamento (a que nem todos podem chegar). Que os nossos atletas paralímpicos revelem como são especialmente diferentes, por mais que frequentemente se sintam "suspensos ali, em pleno sol".

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Para cada passo à frente (também) há dois ou mais atrás

    Em pleno domingo, conforme o previsto lá para as terras da Senhora da Agonia, lá se cumpriu o evento de uma tourada anunciada.

    A polémica impôs-se ao longo da semana; houve a tourada em praça e arena montadas em terreno particular (por mais que este faça parte de uma terra que tinha decidido afastar-se dessas práticas) e a agitação entre os partidários da tauromaquia (por eles encarada como arte e cultura) mais os que nela veem uma afronta direta aos direitos dos animais (sem arte, sem cultura; só tortura).
      Lembro-me sempre destes parágrafos de Miguel Torga, no conto "Miura" de Bichos (1940), quando o tema se impõe:

      "Estava, pois, encurralado, impedido de dar um passo, à espera de que lhe chegasse a vez! Um ser livre e natural, um toiro nado e criado na lezíria alentejana, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!"
...

    "Com ar de quem joga a vida, o manequim de lantejoulas caminhava sempre (...).
       Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora.(...)
       Mais palmas ao dançarino. (...)
       O espectro doirado lá estava sempre."
...



      "Quando? Quando chegaria o fim de semelhante tormento?
  Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos congestionados o brilho frio dum estoque.
  Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!
       Calada, a lâmina oferecia-se inteira.
       Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume."
   
    Pior do que isto só a RTP1, quando passa largas horas, em serviço de canal público, a dar conta de espetáculos de "cor, brilhantismo, emoção, lide, força e pega" para o comum dos telespectadores que não deixa de assistir a jogos sangrentos entre vários animais, palmas para estocadas, "urras e vivas" para heróis que recebem flores pelas lutas que desencadeiam contra toiros instigados aos ferros tão desnecessariamente.

     Definitivamente, há espetáculos que deviam estar limitados a quem os aprecia por qualquer razão.

domingo, 12 de agosto de 2012

Final dos jogos olímpicos

     Londres 2012 deu lugar a jogos em Português.

  Esta começa por ser a grande diferença, programada para 2016. Quatro anos nos distanciam da sonoridade lusófona que sucede ao poder anglófono afirmado nos últimos quinze dias.
   Depois da cerimónia de abertura 'so british... too british', a de encerramento não foi menor, pelo que musicalmente as terras de sua majestade têm conseguido dar ao mundo.
   Dos mais clássicos aos mais contemporâneos, os cantores e os grupos musicais desfilaram em parada contínua.Tudo muito "british", só contrariado, no final, por "Aquele abraço" (composição e letra de Gilberto Gil) enérgico, sem preconceitos, aberto ao mundo e à sua multiculturalidade. Só por este sinal, está ganha a posta. Como se, da insularidade britânica, o 'go southwest' constituísse a descoberta de um novo mundo. Sê-lo-á, por certo, para os jogos olímpicos, que, pela primeira vez, são recebidos no continente sul-americano.


    E no continente, em extensão, americano, impõe-se o Português enquanto língua.

   Uma oportunidade para a lusofonia se abrir ao mundo, acolhê-lo, de modo a tê-lo "mais rápido, mais alto e mais forte". Assim o foi na História. Que o seja no Futuro!