quarta-feira, 10 de julho de 2013

Clara, Clarita, Clarinha… sem clareza nem claridade

Mais uma peça de teatro com tudo o que existe na vida.

A típica história de um amor mal resolvido, conduzido para a vingança por uma mulher (a menina de tranças ruivas, saída da sua terra natal a chorar e grávida, e regressada como Clara Zachanassian - qual Zacharias, Onassis e Gulbenkian feminina -, velha tão grotesca, desconjuntada e cheia de próteses quanto fetichista e adepta de uma vivência amalgamada de meretriz, de besta e capitalista), evolui para a abordagem sociopolítica de uma terra falida (Güllen), a qual irá ser resgatada e refinanciada pela sua “boa filha”, a troco de esta última poder reaver a justiça que só a satisfaz no desejo de vingança e na prepotência que representa. Este é um eixo dramático numa peça de Friedrich Dürrenmatt, autor suíço do século XX ligado ao teatro épico, a esse género de cariz dramatúrgico destinado à reflexão alegórica que, no caso, é a da condição da crise dos tempos, dos lugares e das pessoas.
Assim se vê a terra a partir do teatro. Neste se ensaia a consciência crítica que as linguagens performativas e artísticas propiciam a quem nelas se representa e/ou com elas contacta. Se a intervenção no real pode não ser imediata, a questão de cidadania constrói-se pela visualização de uma trágica comédia, na qual Güllen é terra que sucumbe à pressão da(s) necessidade(s) – no fundo, toda e qualquer terra que passa pela condição de crise; terra que “se aluga” e cujo “futuro radioso” é o da roupagem de uma urbanização sem qualquer urbanidade ou humanidade. 
Na esteira de Brecht, o distancia-mento e a recontex-tualização reveem-se; no alinhamento de Beckett, há tons de absurdo e gro-tesco; na contem-poraneidade e atua-lidade do texto, há a sensação desconcer-tante de o espectador se rever no palco, como se tudo o que estivesse a ser representado fosse a história real. O final é destrutivo: afirma a vulnerabilidade da condição humana em contextos de privação, capaz das maiores atrocidades, e a sublinhar a descrença nas qualidades humanas; confirma o destino trágico do Homem, numa entrega à imoralidade, à corrupção e à subversão dos valores sociais que irradiam de jogos de interesse(s), de retórica, de palmas e de poder; de esquemas demagógicos construídos por quem pretende preservar o seu estatuto e o seu poder. A tetrarquia P – do professor (Luís Lucas), do político (Cândido Ferreira), do padre (Jorge Falé) e do polícia (Tonan Quito) – compõe-se desses tipos sociais que se alimentam de um poder coletivo corrosivo, manipulador, degradante, capaz de treinar mentes vãs em corpos menos sãos para fins pouco dignificantes. Inclusive Koby e Loby, gémeos colocados ao serviço da Velha Senhora, se assemelham a uns sátiros transformados em simples dupla de servos demoníacos: um a dizer mata, outro a dizer esfola; um a rir, outro a ecoar tudo o que o primeiro faz; ambos a celebrarem o que nasce na maior das falsidades e ilusões (há duplas tão representativas daquilo que acontece frente aos nossos olhos que até dá para rir - quando devia ser chorar -, por serem tanto vistas em cena como lembradas no palco da vida).
Uma velha senhora que diz “Quem não pode pagar tem de aguentar se quiser entrar na dança” ou quem protesta energicamente a ponto de denunciar como ninguém aciona o sinal de alarme neste país, mesmo em caso de alarme, são, no mínimo, ressonâncias ou coincidências a mais para uma atualidade e para um Portugal em progressivo definhamento, para não dizer falecimento. Resta-lhe, como a ‘Alfred ill’ (Horácio Manuel), ser conduzido num caixão para ficar num mausoléu em Capri, a olhar para o azul profundo do Mediterrâneo? Será esse o prémio de se ser bom aluno?

Um texto datado de 1956, uma peça encenada por Nuno Cardoso e coproduzida por Ao Cabo Teatro, Companhia Maior, Centro Cultural Vila Flor e o São Luiz Teatro Municipal que os nossos atuais políticos bem podiam ver, para assistirem ao triste espetáculo que nos dão a ver. Vantagem da Velha Senhora (Maria João Luís), que conseguiu, por três vezes, os aplausos que dirigentes da nossa pátria moribunda não conseguem arrancar a quem é por eles governado.

2 comentários:

  1. Infelizmente, não pude assistir à representação da peça! Mas, a acreditar no que escreves, dá-me a sensação de que o enredo é demasiado familiar, porque real aos nossos "quotidianos" olhos...

    Talvez a qualidade da representação no palco da vida seja inferior àquela que estes homens e estas mulheres do teatro te/vos ofereceram! Daí o Belo na arte que, amiúde, se ausenta do palco da comum e vil realidade.

    beijinho
    IA (às vezes, também Clara, ou Clarinha. Espero que nunca me confunda(m) com esta Velha Senhora!)

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    1. Descansa, amiga. Não te confundiremos.
      Já outras duplas serão por certo menos belas do que as da Arte, porque demasiado reais e movidas por interesses muito desconcertados e desconsertado(re)s.
      O tempo o dirá.
      Beijinho.

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