Mais uma peça de teatro com tudo o que existe na vida.
A típica
história de um amor mal resolvido, conduzido para a vingança por uma mulher (a
menina de tranças ruivas, saída da sua terra natal a chorar e grávida, e
regressada como Clara Zachanassian - qual Zacharias, Onassis e Gulbenkian
feminina -, velha tão grotesca, desconjuntada e cheia de próteses quanto fetichista
e adepta de uma vivência amalgamada de meretriz, de besta e capitalista),
evolui para a abordagem sociopolítica de uma terra falida (Güllen), a qual irá
ser resgatada e refinanciada pela sua “boa filha”, a troco de esta última poder reaver a justiça que só a satisfaz no desejo de vingança e na prepotência que
representa. Este é um eixo dramático numa peça de Friedrich Dürrenmatt, autor
suíço do século XX ligado ao teatro épico, a esse género de cariz dramatúrgico destinado à reflexão alegórica que, no caso, é a da condição da crise dos
tempos, dos lugares e das pessoas.
Assim se vê a
terra a partir do teatro. Neste se ensaia a consciência crítica que as
linguagens performativas e artísticas propiciam a quem nelas se representa
e/ou com elas contacta. Se a intervenção no real pode não ser imediata, a questão de cidadania
constrói-se pela visualização de uma trágica comédia, na qual Güllen é terra
que sucumbe à pressão da(s) necessidade(s) – no fundo, toda e qualquer terra
que passa pela condição de crise; terra que “se aluga” e cujo “futuro radioso”
é o da roupagem de uma urbanização sem qualquer urbanidade ou humanidade.
Na
esteira de Brecht, o distancia-mento e a recontex-tualização reveem-se; no
alinhamento de Beckett, há tons de absurdo e gro-tesco; na contem-poraneidade e
atua-lidade do texto, há a sensação desconcer-tante de o espectador se rever no palco,
como se tudo o que estivesse a ser representado fosse a história real.
O final é destrutivo: afirma a vulnerabilidade da condição humana em contextos de
privação, capaz das maiores atrocidades, e a sublinhar a descrença nas
qualidades humanas; confirma o destino trágico do Homem, numa entrega à
imoralidade, à corrupção e à subversão dos valores sociais que irradiam de
jogos de interesse(s), de retórica, de palmas e de poder; de esquemas
demagógicos construídos por quem pretende preservar o seu estatuto e o seu
poder. A tetrarquia P – do professor (Luís Lucas), do político (Cândido
Ferreira), do padre (Jorge Falé) e do polícia (Tonan Quito) – compõe-se desses
tipos sociais que se alimentam de um poder coletivo corrosivo, manipulador,
degradante, capaz de treinar mentes vãs em corpos menos sãos para fins pouco
dignificantes. Inclusive Koby e Loby, gémeos colocados ao serviço da Velha
Senhora, se assemelham a uns sátiros transformados em simples dupla de servos
demoníacos: um a dizer mata, outro a dizer esfola; um a rir, outro a ecoar tudo
o que o primeiro faz; ambos a celebrarem o que nasce na maior das
falsidades e ilusões (há duplas tão representativas daquilo que acontece frente aos nossos
olhos que até dá para rir - quando devia ser chorar -, por serem tanto vistas em cena como lembradas no palco da vida).
Uma velha
senhora que diz “Quem não pode pagar tem de aguentar se quiser entrar na dança”
ou quem protesta energicamente a ponto de denunciar como ninguém
aciona o sinal de alarme neste país, mesmo em caso de alarme, são, no mínimo, ressonâncias
ou coincidências a mais para uma atualidade e para um Portugal em progressivo
definhamento, para não dizer falecimento. Resta-lhe, como a ‘Alfred ill’
(Horácio Manuel), ser conduzido num caixão para ficar num mausoléu em Capri, a
olhar para o azul profundo do Mediterrâneo? Será esse o prémio de se ser bom
aluno?
Um texto datado
de 1956, uma peça encenada por Nuno Cardoso e coproduzida por Ao Cabo Teatro,
Companhia Maior, Centro Cultural Vila Flor e o São Luiz Teatro Municipal que
os nossos atuais políticos bem podiam ver, para assistirem ao triste espetáculo
que nos dão a ver. Vantagem da Velha Senhora (Maria João Luís), que conseguiu, por três vezes, os aplausos que dirigentes da nossa pátria moribunda não
conseguem arrancar a quem é por eles governado.
Infelizmente, não pude assistir à representação da peça! Mas, a acreditar no que escreves, dá-me a sensação de que o enredo é demasiado familiar, porque real aos nossos "quotidianos" olhos...
ResponderEliminarTalvez a qualidade da representação no palco da vida seja inferior àquela que estes homens e estas mulheres do teatro te/vos ofereceram! Daí o Belo na arte que, amiúde, se ausenta do palco da comum e vil realidade.
beijinho
IA (às vezes, também Clara, ou Clarinha. Espero que nunca me confunda(m) com esta Velha Senhora!)
Descansa, amiga. Não te confundiremos.
EliminarJá outras duplas serão por certo menos belas do que as da Arte, porque demasiado reais e movidas por interesses muito desconcertados e desconsertado(re)s.
O tempo o dirá.
Beijinho.