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sábado, 1 de fevereiro de 2025

Conselho de futuro

      A abrir o mês, fica a previsão e o conselho de futuro.

      Não se pode dizer que não faça sentido entre o inicialmente constatado (anunciado?) e o conselho respondido:

Interações que só o tempo (verbal) denuncia e a pragmática admite (retirado do Facebook)

      A ironia da coerência interativa é evidente: quem constatou queria passado e fez deste futuro; quem respondeu pôs-se na posição de quem, humoristicamente, ainda vai a tempo de remendar o que já não tinha remédio.

    Isto de confundir, na escrita, pretérito (com terminação em 'ram') com futuro (em 'rão') só merece uma boa gargalhada (apesar de haver quem chore) e um aviso sério: estude!

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Constância... já foi mais constante

       O nome da localidade anda presentemente pelas ruas da amargura.

      Cheguei a lá ir em tempos, com alunos, na senda de alguns sinais da presença camoniana, sempre em articulação com outras áreas de saber (particularmente quando o poeta não deixou de ser exemplo de homem completo nos saberes, tendo numa mão a espada e noutra a pena).
      Hoje parece não haver muita constância, estabilidade económica numa terra que apresenta sinais de fragilidade, com uma grande empresa de tupperwares em condição de insolvência. Assim o foi noticiado e (pasme-se!) legendado:

Incertezas televisivas com orientações / nivelações distintas 
(na legendagem da RTP1, captada pelo olhar atento da ARS, a quem agradeço o contributo)

       Caso para dizer que nem constância nem coerência, pelo menos no que à língua diz respeito.
   "Pairar" combinado com "sob" aponta para incompatibilidade de níveis (superior e inferior, respetivamente). Nada como 'pairar' com outra preposição, de modo a escapar à incoerência criada.

       As incertezas ou 'pairam sobre' ou 'pairam em' (uma questão de seleção a partir do verbo usado).
      

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Classificações... a quanto (n)os obrigam!

      Veio a pergunta e logo se ativaram os focos de análise.

      Por mais respostas que se queira dar, há vários pontos de vista analíticos a considerar, alguns dos quais conduziriam à que se revela mais aceitável / adequada / correta.

      Q: Olá, Vítor. Quando puderes, diz-me, por favor, como classificas as orações na frase: "Ouve o CD do Pedro Abrunhosa, que é muito bom." A professora de uma explicanda minha diz que é subordinada adjetiva relativa explicativa. Se não fosse adjetiva relativa, só poderia ser adverbial causal.

       R: Viva. Perante a minha divergência face às respostas citadas, direi o seguinte: 

       i) a hipótese de uma subordinada adjetiva relativa (explicativa), eu colocá-la-ia de parte, uma vez que o suposto pronome relativo "que" me levanta questões de forte ambiguidade quanto à construção sintática da complexidade na frase e quanto ao referente retomado (será "o CD do Pedro Abrunhosa", que não sei qual é apesar da determinação e que necessitaria de uma relativa restritiva para a sua identificação precisa, ou será "[d]o Pedro Abrunhosa", que não vou apreciar na forma e nos termos apontados no enunciado);

      ii) o cenário de a segunda oração ser uma adverbial causal levanta-me sérias reservas quanto ao facto de as subordinadas adverbiais tipicamente admitirem inversão dos termos da construção (*"Que é muito bom, ouve o CD do Pedro Abrunhosa" resultaria numa clara construção agramatical);

    iii) a expressão lógica da causalidade-explicação do enunciado é admissível, conforme se encontra introduzida na segunda oração, configuradora de uma explicação / justificação para o que se enuncia na primeira oração; porém, não tomaria esta última como subordinante nem aquela como subordinada;

    iv) o foco de análise pragmático a colocar no segmento "Ouve o CD do Pedro Abrunhosa" permite entender este último como um ato diretivo (conselho, sugestão) na interação produzida entre um 'eu' e um 'tu', conforme se depreende do modo verbal imperativo usado em 'ouve'; simultaneamente, a apreciação feita com a segunda oração resulta numa orientação justificativa (assente numa apreciação) / explicativa de um 'eu' para o ato de fala assumido na primeira oração.

Problemáticas de identidade (e classificação) do 'QUE'

   Assim, numa perspetiva de análise pragmático-sintática, assumo que a oração inicial é uma coordenada (que não admite troca na ordem sintática com a segunda oração), seguida de uma coordenada explicativa introduzida pelo conector 'que' (a iniciar a oração coordenada explicativa). 

  Desta forma, concluo o seguinte: um "que" sinónimo de "pois" aponta para construções coordenativas; um "que" sinónimo de "porque" nem sempre corresponde a uma subordinação, a qual, sintaticamente, apresenta propriedades típicas não confirmadas com o enunciado em análise.

domingo, 7 de agosto de 2022

O elogio (que foi o) de ser filho da mãe

      As palavras têm muito que se lhe diga... e muito para contar.

    Nem tudo o que parece é, por certo. Se o que é tomado por insulto começou por ser elogio, razões houve para que o uso assim o determinasse.
    Conta-o e esclarece-o Sérgio Luís de Carvalho, na base do aconselhamento de um livro (Elogio da Palavra, de Lamberto Maffei) e na explicação que dá a propósito da expressão "filho da mãe":

História do Filho da Mãe (ou de como do elogio se faz insulto)

    Quem diria que, não obstante a condição de bastardia, estaríamos a referenciar relações em que realeza e espiritualidade se cruzaram. Longe desses universos (dos tempos de D. João V e das suas  frequentes paixões freiráticas), atualmente estamos mais para a expressão do insulto, do ofensivo (que uns focam no filho e outros na mãe, para não falar nos que se sentem ofendidos por ela e por si mesmos, alegando ainda assim a defesa apenas da primeira). Um outro claro caso de deriva, variação, evolução na língua, portanto.

      Prova de que as palavras, em particular, e a língua, em geral, são fruto da circunstância de quem a(s) usa, a quem a(s) dirige, quando e onde a(s) utiliza, com a intenção visada. Fale-se de pragmática e, inclusivamente, de pragmática histórica, marcando a variação temporal dos usos.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

A propósito do 'é que'

     Retomemos a noção de construção clivada no português e o operador 'é que'.

     Já lá vai algum tempo. Pronunciei-me sobre a questão já há alguns anos. Uma nova questão permite-me recuperar esse escrito.
 
    Q: Olá, Vítor! A professora da filha de uma colega classificou como pronome relativo o "que" presente nesta frase: "Por isso é que tens de ir à escola". Sinceramente, eu não concordo; no entanto, também não sei como o classificar quanto à classe de palavras. Vejo que está associado à forma verbal "é", pelo que, para mim, é uma expressão de realce. Será que me podes dar uma ajuda, por favor? 

    R: Olá. Com a expressão 'é que', estamos perante um processo de gramati-calização, ou seja, um  processo de mu-dança linguística pelo qual uma pala-vra muda de estatu-to, passando a ser equacionada em ter-mos mais funcionais ou gramaticais. Mais do que a classifi-cação dos termos quanto à classe de palavras, estes valem pela funcionalidade de realce / destaque atribuída a um segmento discursivo-textual. 
   Assim, enquanto unidade, a expressão em causa proporciona uma funcionalidade discursiva própria, tomando-se o 'que' como um operador de uma estrutura ou construção clivada ou de clivagem (cf. M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 2003, págs. 685-694). Concordo contigo quanto a este 'que' não ser um verdadeiro pronome relativo. A sua classificação situa-se mais no plano de análise discursivo-textual, da gramática de texto, do que no da tradicional gramática da frase. Neste sentido, é no âmbito de um alto grau de gramaticalização e do estudo do que João Andrade Peres e Telmo Móia designam de construções enfáticas ou construções de foco (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, p. 91, nota 12) que nos devemos situar.
      Ainda que, nalguns estudos, se aborde o 'é que' como expressão em construção aparentada com as relativas livres (e daí a eventual classificação mencionada na tua questão), creio estarmos perante uma situação bem distinta no exemplo dado. Distinguiria bem os exemplos seguintes:

(i) O queijo (é que) foi comido pelos convivas.
(ii) Os convivas (é que) comeram o queijo.
(iii) O que é que a jovem comprou? (< O que comprou a jovem?)
(iv) Porque (é que) fizeram isso?
(v) Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Se i a iii podem ser encaradas como construções aparentadas com as orações relativas (com o 'que' eventualmente a destacar o constituinte retomado de uma frase - o sujeito da passiva em i e o da ativa em ii; o complemento direto em iii, depreendido como o objeto interrogado), o mesmo já não sucede em iv e v, mais associadas a sentidos pragmáticos decorrentes de atos de fala.
     Atendendo ao exemplo v, 'é que' funciona como introdutor de um ato de fala que sai realçado ou enfatizado no seu conteúdo na sequência de uma razão ou motivo a dar lugar a uma necessidade (consequente). É o que se pode depreender na relação dialógica dos enunciados A e B:

(vi) (A) - Ainda não sei ler / escrever.
       (B) - Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Num só enunciado, vi A e B poderia ter a seguinte configuração, se resultante de um só enunciador para com o seu enunciatário:

(vi a) Ainda não sabes ler / escrever. Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Face à constatação / asserção de um dado (primeira sequência de vi a), surge o conselho consequente (segunda sequência), destacado face ao ato de fala anterior (tomado como premissa para um raciocínio consequente). Responsável pelo realce / destaque atribuído ao ato consequente , 'é que' (enquanto unidade) proporciona uma funcionalidade discursiva própria, específica ao 'que', tomado como um operador do que os estudos linguísticos designam estruturas ou construções clivadas
      Em suma, a classificação deste 'que' situa-se mais no plano de análise discursivo-textual, da gramática de texto e da pragmática do que no da tradicional gramática da frase. Encaixa-se na definição proposta, no Dicionário Terminológico, para a entrada 'Marcador discursivo', onde se encontram os operadores discursivos com a função de reforço argumentativo.

      Apetece dizer que há níveis distintos de análise na língua. Convocar classificações típicas para realizações linguísticas que requerem níveis de análise mais complexos não me parece ser a prioridade de trabalho para determinado tipo de alunos e de situações de aprendizagem, onde as regularidades devem ser mais exploradas (particularmente quando o objetivo de estudo parece ser o da classificação e não o da análise de especificidades nas condições de produção discursiva). Espero ter ajudado.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Dúvidas na planificação da gramática

       Tanta coisa há a resolver que, às vezes, escapa a todos o essencial.

     Perguntavam-me há dias algo sobre a planificação de conteúdos gramaticais nas "Aprendizagens Essenciais" do Português, no nível secundário:

      Q: Olá, Vítor! O complemento do advérbio faz parte das Aprendizagens Essenciais (AE)? E o valor temporal? Agradecia que me esclarecesses, por favor, pois achava que não.

    R: Olá. A leitura das Aprendizagens Essenciais, quanto ao domínio da gramática, no ensino do Português do nível secundário, propõe algumas especificidades para cada um dos anos de escolaridade (10º, 11º e 12º anos). Fazendo uma abordagem comparativa dos conteúdos propostos, é possível verificar o conjunto de dados seguinte:

Leitura comparativa do domínio gramatical nas Aprendizagens Essenciais de Português (Secundário)

      Este é o "programa" gramatical referenciado para os três anos de escolaridade do secundário (10º à esquerda; 11º ao meio; 12º à direita).
      Ora, quando no ano terminal deste nível de ensino se lê "Realizar análise sintática com explicitação de funções sintáticas internas à frase, ao grupo verbal, ao grupo nominal, ao grupo adjetival e ao grupo adverbial", uma função sintática interna ao grupo adverbial é precisamente a do complemento do advérbio. Pode mesmo indicar-se que há uma progressão, complexificação neste ponto do domínio, pois, no 11º ano, interessa "Sistematizar o conhecimento dos diferentes constituintes da frase (grupo verbal, grupo nominal, grupo adjetival, grupo preposicional, grupo adverbial) e das funções sintáticas internas à frase" (ao nível superior da frase, portanto), enquanto no 12º o foco se situa ao nível interno dos grupos, para além do da frase. De referir, ainda, que já no 10º ano se prevê o trabalho do complemento do nome e do adjetivo (isto é, funções sintáticas internas ao grupo nominal e adjetival, respetivamente).
        Quanto ao valor temporal (depois da abordagem dos valores modais, no 10º ano, e dos aspetuais no 12º), não se poderá dizer que desapareceu do "programa" (se confrontarmos com o que acontecia nas Metas de Aprendizagem). Trata-se de um conteúdo gramatical que acabará por, implicadamente, ter de ser abordado a propósito dos processos de coesão textual contemplados no 11º e 12º anos (nomeadamente, quando se tem de utilizar / abordar / explicitar a correlação de tempos na construção de enunciados e a localização das situações nestes referidas).
        Uma leitura comparativa mais completa das Aprendizagens Essenciais, iniciadas há dois anos no 10º ano de escolaridade e alargadas ao 12º no presente ano letivo, pode ser encontrada aqui, de acordo com os domínios de aprendizagem considerados no ensino secundário.

       Hoje em dia, a preocupação é capacitar os professores de competências digitais (até se responde a um inquérito que visa diagnosticar os níveis de competência docente nesse domínio). Anuncia-se formação futura para tal, como prioritária; esquece-se que pouco disso vale, quando a formação didática e específica é tida como algo mais do que adquirido, do tipo "o ar que respiramos".

terça-feira, 9 de julho de 2019

Contributos (alguns) para a escrita

        Porque a escrita é um domínio complexo, exigente, a requerer muitas entradas / saídas para a aprimorar.

      Há dias, numa consulta de algumas obras que abordassem a questão da escrita - na perspetiva da transposição didática -, encontrei  a obra de Nazaré Trigo Coimbra, A Escrita em Projeto (2009), da Edições ECOPY. Entre várias referências, aparecem citados alguns contributos de uma colega e amiga (Dulce Raquel Neves), bem como os meus (com ela partilhados), numa publicação conjunta que recupero: Sobre o Texto: aprendizagens teóricas para práticas textuais (Porto, Edições ASA, 2001). 
    De vez em quando lá volto, para dar conta de algumas indicações que continuo a achar pertinentes para o trabalho de transposição didática sobre a escrita. Em contextos de formação, resultam ainda em oportunidades de discutir, (re)ativar princípios que todos os professores de língua devem considerar, na construção e na estruturação de materiais ou instrumentos que presidem ao ensino-aprendizagem da escrita.
       E porque alguém mais também o achou, seguem-se alguns desses tópicos, citados e referenciados em obra posterior (oito anos após) à minha:

      Tópico um: explicitação dos quatro princípios discursivos associados à construção / constituição da competência textual

(págs. 83-84)

     Tópico doisexplicitação das regras textuais de coerência - da repetição (1), da progressão (2), da não-contradição (3) e da relação (4)

(págs. 85-86)

     Tópico três: Sentido operatório das tipologias textuais e das classificações tipológicas na transposição didática
(...)
 
(págs. 88-89)

(pág. 94)

       Visionadas as citações, a convergência para os trabalhos de oficina de escrita é um novo passo, com indicações precisas relativamente ao trabalho de produção escrita (textualização) e (revisão):

Alguns dos diapositivos (dezoito) de um Powerpoint ao serviço da revisão escrita

       Passaram-se já quase vinte anos. Revivalismo? Algum. Pertinência para o trabalho? Também.
      
      No final, fica a sensação de que alguma coisa deve ter sido feita há uns tempos para, hoje, se poder retomar, reafirmar, consolidar e, curiosamente, avaliar como (ainda) válido.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Do citador ao citado... qual o prestígio da citação?!

      Está no Facebook (na página do 'Acorda Portugal'), aos olhos de quem quiser ler.

      Já nem me pronuncio por quem é citado ou por quem cita. Fico-me pelo que é citado:

in https://www.facebook.com/AcordanossoPortugal/

    Não há prestígio efetivo que aguente com tanta falta de qualidade no português utilizado: "Alguns poucos deputados PÕE...". Põe-se verdadeiramente em causa a qualidade do escrito e de quem escreveu a 'coisa' (por não ter ou não querer, por agora e aqui, usar termo mais indecoroso). 
     Quanto aos deputados e ao parlamento, nas próximas eleições, há que fazer melhores escolhas, por certo. No que toca ao português, seria bom que fosse mais legitimador da crítica pretendida, sob pena de se ridicularizar mais a forma de expressão do que o suposto fundo de verdade da mensagem.
     
   Um verdadeiro caso de violação da coesão frásica, no que à concordância do sujeito-predicado (particularmente no núcleo verbal) diz respeito. Caso para dizer "Fecha os olhos, Portugal!"

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Olha eu... noutro blogue!!!

    Encontrar-me citado num apontamento de um blogue não é novidade, mas não deixa de ser surpresa.

      Isto de nos vermos espelhados nos textos / trabalhos dos outros é um sinal de que andamos a fazer alguma coisa neste mundo. Bem ou mal, que o avaliem os outros. Por mim, vai sempre dando para acreditar que vou fazendo qualquer coisinha de jeito, para bem dos que partilham a minha área de trabalho.
      Procurava eu alguns dados sobre coesão e coerência e revi-me:

Pormenor da página http://recursosabertosdeportugues.blogspot.com/2014/10/coesao-lexical.html

   Agradeço a consideração ao blogue "Recursos Abertos do Português", que selecionou alguma da informação por mim facultada (ainda que, em rigor, esta precisasse de ser mais completa para corresponder ao por mim escrito sobre coesão referencial / lexical).

      Ainda assim, o agradecimento nesta experiência "interblogueada".

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

De quem ou de onde tanto faz!

       Desde que seja grito!

       Acabaram-se as férias. Não sei se por cansaço (já!) se por falta de vontade, ou ainda por não ter entrado no ritmo que se impõe, a chegada do primeiro fim de semana pós-retoma do trabalho está a revelar-se como o 'grito do Ipiranga'. Quando dizia isto, alguém perguntava: "De quem?".
       Pois... isto de utilizar referências ou expressões que nem todos dominam pode comprometer a comunicação. No caso, deu lugar a explicação, começando pela reformulação da pergunta "De quem?" para "De onde?". Não se trata de alguém, mas de um lugar, junto às margens de um rio - Ipiranga -, onde aconteceu o que ficou conhecido como a declaração de independência do Brasil, em 1822. Os universos de referência ou conhecimentos de mundo determinam os efeitos comunicativos - assim o diz a pragmática. A História também ajuda.
       O universal (só para alguns) "Independência ou morte", proferido pelo então príncipe regente D. Pedro do Brasil (a governar em nome do seu pai, o rei D. João VI), fez-se ouvir no centro da atual cidade de S. Paulo, onde corria um pequeno "rio vermelho" (na língua tupi 'Ipiranga').

Independência ou Morte, do pintor paraibano Pedro Américo 
(óleo sobre tela, 1888).

     Facto ou lenda, o grito associa-se ao dia de hoje, considerado feriado nacional no Brasil e celebrado, oficialmente, como o Dia da Independência. Três anos demorou o reconhecimento da independência da colónia pela metrópole (entre 1822-25). Digamos, contudo, que o grito teve o seu efeito.

     Vem o fim de semana - só dois dias; não vou ficar independente do trabalho, inclusive neste curto período de tempo de suposto descanso. Ainda assim o grito de libertação resulta em alívio, face a "essenciais", "flexibilização", despachos e decretos surgidos em período de férias para lançar o arranque de mais um ano letivo.

sexta-feira, 9 de março de 2018

A propósito de anáforas... bem distintas.

      Feita a devida distinção entre o mecanismo linguístico de retoma e a figura de retórica, tudo vai bem.

       O problema está mesmo quando os dois processos são confundidos.

      Q: Quando aparecem palavras repetidas ao longo de uma frase, pode dizer-se que estamos perante a figura de estilo da anáfora? Estou a considerar o seguinte exemplo: "Quando a cidade acorda, não há cidade com a paz do campo. Não há cidade com paz."

      R: Não generalizaria a questão desse mundo, particularmente no que à figura de estilo diz respeito. Em termos de coesão do segmento proposto, pode dizer-se que há uma relação anafórica na repetição do termo 'cidade', mas a questão, neste caso, fica centrada na construção de uma cadeia de referência baseada na reiteração ou repetição lexical. Os três termos não são exemplo de anáfora como figura de estilo, mas de uma repetição sinónima de retoma (do já referido) que pode eventualmente resultar sugestiva no diferencial e no destaque que esse espaço adquira no texto em que surge - ainda assim, não a anáfora como recurso estilístico, por não se tratar de repetição de palavra em frases (ou versos, no caso de um poema) ou sequências sucessivas.
     Em termos de estilo, o exemplo que propõe pode apenas ilustrar a figura de estilo da anáforana construção 'não há cidade com [...]. Não há cidade com', na medida em que persiste, em frases / orações sucessivas, uma cadência de escrita apoiada na repetição não só do vocábulo 'cidade' mas também de uma construção sintática ('não há cidade com'), colocada no início de orações principais e tomada como fator cadenciado e sucessivo de construção.
     Não tomaria, portanto, o uso do primeiro 'cidade' na relação com os seguintes como exemplo de uma figura de estilo, mas sim de um mecanismo coesivo baseado num processo referencial anafórico (enquanto mecanismo linguístico). Aproximaria o segundo 'cidade' do terceiro (no seio de toda a sua construção frásica similar) enquanto efeito estilístico, sugerido por um ritmo cadenciado de segmentos sintáticos sucessivos (seja em prosa seja em verso), familiar a uma retórica literária interessada na exploração de efeitos expressivos e significativos motivados por uma intencionalidade distinta de sentidos mais literais, denotativos e/ou imediatos.
      Lausberg, no seu Elementos de Retórica Literária, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian ([1963] 1993: 174-175), apresenta a figura de estilo como sendo do tipo "... / X... /X...", em que X é a palavra, expressão ou construção repetida em segmentos sucessivos. É este o tipo que se revê em "..., não há cidade... Não há cidade...".

      Um mesmo nome (anáfora) não quer dizer que signifique o mesmo ora quando de mecanismo linguístico se fala ora quando de processo retórico e estilístico se trata.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Desassossego(s) escusado(s)

      Quando as soluções não ajudam.

     Do bom exemplo que os profissionais devem dar quando se confrontam com soluções indesejáveis (pois, as das bandas esquerdas / direitas dos manuais que alguns dizem ser uma mais-valia):

      Q: Ao ler um fragmento do Livro do desassossego, de Bernardo Soares, faz-se a progressão das expressões "nas costas do homem" para "nas costas do meu adiantado" (do homem que está adiante). Num exercício do manual, pede-se o mecanismo de coesão exemplificado e a solução dada é "coesão lexical por substituição (sinonímia)". Fiquei com dúvida, pois acho que se trata de um exemplo de correferência não anafórica.

     R. Trata-se, de facto, de correferência não anafórica. Nem se trata de uma questão lexical apenas, pois não é um caso de substituição sinonímica entre termos / vocábulos, com equivalência comprovável em termos de dicionário (não se pode concluir, obviamente, que 'adiantado' seja sinónimo de 'homem'). 
     Está em jogo a construção de uma cadeia referencial assente na progressão da expressão "(costas d)o homem" para "(costas d)o meu adiantado", com a perífrase 'o meu adiantado' a associar-se a 'o homem'. Tal associação é configurada por grupos nominais que não têm implicação obrigatória / necessária entre si: nem todo o adiantado tem de ser (o) homem, nem o homem tem que estar adiantado. Se o está no texto / fragmento (são termos correferentes), é por conhecimento textual equiparável a conhecimento de mundo / enciclopédico resultante do que se lê. É na pragmática da relação leitor-texto e na realidade extralinguística dos enunciados lidos que a relação das expressões sai construída.
       Em suma, desfaça-se a dúvida e esqueça-se a solução.

     Tal como o título da obra de Bernardo Soares o indica, as soluções dos manuais fazem destes, por vezes, um "livro de desassossego".

domingo, 5 de novembro de 2017

Voltando à(s) coesão(ões)

     O fim de semana permanece como tempo de trabalho para muitos professores.

    Porque há testes ou trabalhos para corrigir, matérias para preparar, fichas para produzir, leituras a fazer,... quando o ritmo da semana é alucinante e insuficiente: não dá para tudo o que cumpre ser feito junto dos alunos (e não só). 
    Vale o facto de este também ser o tempo de reencontro(s) com propósitos formativos.

    Q: Vítor, qual o mecanismo de coesão presente no enunciado "Poesia 2, de J. Sena, estende-se por 900 pp. (...) cuja escrita corresponde ao tempo de publicação dos seus LIVROS, desde "Peregrinação" até "Exorcismos"? O nome "livros", relativamente aos títulos enumerados, é um elemento que garante a coesão lexical - interfrásica - temporal - referencial? Eu digo lexical; porém, há quem aponte para a referencial. Serão as duas? Quando puderes, diz-me o que achas.

     R: Olá. Viva.
    A propósito das questões de coesão, tive já oportunidade de me pronunciar nesta "carruagem", particularmente acerca da noção de coesão referencial e de coesão lexical. Estas últimas concorrem para a construção de uma cadeia de referência num texto / segmento textual, mas só se pode falar de coesão lexical quando o foco do mecanismo linguístico utilizado se circunscreve ao uso do léxico / vocabulário.
   Ora, no caso em concreto, há coerência referencial entre 'livros' e os títulos mencionados, sendo todos estes termos constituintes de uma cadeia de referência, com anáforas de natureza nominal. Que esta última se constrói com base no léxico também não há dúvidas (até pela relação hiperonímica de 'livros' face aos hipónimos assumidos pelos títulos dos livros referidos), por mais que se trate de um caso de correferência não anafórica.
     Portanto, conjuga-se aqui a existência de uma cadeia referencial (coesão referencial) apoiada em léxico (coesão lexical). Só quando a primeira se faz em termos estritamente mais gramaticais (pronomes, determinantes, advérbios, entre outros) é que se fica pela designação de coesão referencial (onde cabe falar de anáforas, catáforas, deíticos, construções elípticas, por exemplo).
      Pensando num exercício de escolha múltipla, não colocaria como hipóteses a selecionar as duas atrás mencionadas, pois ambas são validáveis pelo enunciado em análise, com a segunda (a lexical) a poder estar também implicada na primeira (referencial).

      Neste sentido, pode dizer-se que a coesão referencial é uma das propriedades textuais mais genérica, pela sua natureza léxico-gramatical; a coesão lexical foca- -se, mais especificamente, nas relações lexicais textualmente representadas.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Ser igual ao litro

       Em dia de aniversário de uma amiga, nada é igual ao litro.

      O dia começou com uma colega a perguntar a origem da expressão - sabia o sentido pragmático, mas queria conhecer como tudo começou (isto de regressar às origens tem muito que se lhe diga, quando à língua diz respeito).
      Com alguma pesquisa, deu para concluir que, em tempos idos, o litro servia como medida para quase tudo (dado ser uma medida de volume e não de líquidos propriamente ditos). Assim lembrei, por exemplo, de ir à feira e ouvir alguém pedir um litro de feijão. Além disso, cabe também aqui referir o valor de um salário (palavra que veio de 'sal'), fazendo-se a distinção entre o valor do salário bruto (ilíquido) e o do líquido (na verdade, a diferença não é igual ao litro, por certo). Isto para não deixar de considerar também que o líquido deu para medir o tempo - as clepsidras, ou relógios de água, foram exemplo disso. Estou aqui estou a recuperar o pensamento de Heráclito de Éfeso, quando este pré-socrático dizia que o homem não se banhava duas vezes na mesma água de um rio. De novo a água (líquido), em passagem, tal como o homem se revela diferente, em mudança. O tempo passa (conta) e tudo muda.
      É verdade que a amiga aniversariante também vê o tempo passar; também ela muda (até mudou de escola). E a colega curiosa vive a mesma condição de existência, no que à fluidez do tempo diz respeito. Também eu. Todos contamos o tempo - já não com clepsidras - e, nesse aspeto, custa a acreditar que tudo seja igual ao litro!
       Depois disto tudo, apetece-me concluir que 'dei o litro' (também para medir / quantificar o esforço) neste objetivo de explicar uma expressão idiomática e no de retomar o curso desta "carruagem".

      Duas outras amigas queixavam-se de esta "Carruagem 23" andar muito parada (que paradoxo, isto de 'andar parado!). Hoje, vai "circular" um pouco, porque a reclamação não me foi igual ao litro. O problema é que há também muitas outras coisas que não mo são. Talvez algumas delas até sejam (mesmo muito) importantes, mas, por momentos, vão ter de ser iguais ao litro. Dei-lhes peso (ou medida) relativo(a), porque há quem me mereça a consideração de também ser ouvido / escutado.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Mas algum humano acredita nisto?!

     Nem Freud! (Não é argumento de autoridade. É crença, mesmo!)

    Quando procuro descomprimir, está visto que não dá para ir ao Facebook. Não é por nada, mas quando se lê isto (um catafórico, por anunciar o que ainda não é explicitamente textual, só pairando na minha mente) não é possível ficar indiferente, incólume ou corroborar o impensável.
      Cá vai:

A circular no Facebook 
e a haver quem ache, pelo lamento crescente, que não devemos ser de ferro...
mas de aço!

       Perigoso! Nem Freud o aceitaria, seja no dever seja na resposta a dar à vida!
    A acreditar nisto, e a aceitá-lo, pouco falta (espantemo-nos!) para crer em fundamentalismos e extremismos... É tão medieval o pensamento quanto o ferro humano que, na imagem, me sugere a armadura ou a malha dos que faziam da vida luta, duelo ou morte.
      Máquinas, com avarias anunciadas no final, já Álvaro de Campos propôs na "Ode Triunfal": "Ah não poder ser eu toda a gente em toda a parte!" Popularmente, dir-se-ia "Quem tudo quer tudo perde". 
       Cedo ou tarde, por mais que se ache que os telhados de vidro não existem, a pedra cairá (não sei se na cabeça de alguém, mas que seja, no mínimo, na consciência). Talvez a vida venha a ensinar muita gente que não somos nem aço nem ferro. Humanos, sim, com falhas e nem sempre porque as queremos, mas porque elas existem connosco ou vêm ao nosso encontro e nos derrubam. Pensar o contrário só no discurso do lamento ou negando que, na vida, há pequenas coisas que fazem os dias diferentes.
     Na realidade, a verdade não é a do pensamento citado; é muito outra e é pena que muitos humanos dela se esqueçam. Só se lembram dela nos momentos de choque, e talvez aí já seja um pouco tarde. É pena que da história não se faça da memória! E a história muitas vezes é a nossa! 
     Felizmente, quero acreditar que há quem a ajude a (re)escrever e a (re)viver de outra forma.
    Mais não digo - melhor: não escrevo, para não repetir o exemplo de alguns alunos que, ao escrever num teste escrito. dizem que fala(ra)m. Oh, vã ilusão!

    Não gosto, não aceito, não acredito e só o entendo quando tudo corre bem (e não será, certamente, para todos o que procuram sobreviver nas situações ou nos tempos mais críticos). Pena é quem haja que ainda subscreva o pensamento, tal como apresentado na imagem! E há! Oh se há!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Um tempo de contrastes, se de tempo for...

      No meio de tanta coisa, nem sei por onde começar.

      Esta é a reação que revelo quando há muitos pontos e tantas outras "pontas" para pegar. 
      Tudo começa quando a pergunta surge:

      Q: Colega, gostaria que me desse a sua opinião sobre a frase "Enquanto que o luar é dissuasor para Miguel Forjaz, Matilde de Melo vê-o como sinal de liberdade": a primeira oração tem o valor de uma adverbial temporal?

   
    R: Vejo dificuldade no valor temporal, na medida em que a frase proposta reflete um contraste de entendimentos relativamente ao significado do 'luar' para duas personagens de Felizmente Há Luar! (de Sttau Monteiro).
      Ver 'enquanto' como articulador / conector temporal implicaria a aceitação da substituição dele por 'ao mesmo tempo que / durante o tempo em que' (*Ao mesmo tempo / Durante o tempo em que o luar é dissuasor para Miguel Forjaz, Matilde de Melo vê-o como sinal de liberdade), o que não se prefigura como frase aceitável, até por se estar a referir intervalos de tempo bem distintos, no que à obra mencionada diz respeito.
      O valor de temporalidade é bem evidente em sequências do tipo:
    . Enquanto esperava, lembrava-se dos momentos que haviam passado juntos ou Ouve música enquanto estuda, demonstrativas de intervalos de tempos simultâneos e/ou coincidentes para 'esperar'-'lembrar-se' e 'ouvir'-'estudar' (processos associados a um mesmo sujeito sintático e a uma simultaneidade temporal);
    . Enquanto a crise se agudizava, o desemprego disparou, exemplificativa de como uma situação pontual ('disparar') ocorre no interior de um intervalo de tempo mais lato ('agudizar');
    . Não saio da tua beira enquanto não melhorares, evidenciadora de uma situação durativa sem limites definidos para o futuro e com o conector tomado como sinónimo da expressão 'durante o tempo em que'. Neste último exemplo, é também significativo o valor de condição implicado no enunciado (cf. 'Não saio da tua beira se não melhorares').

       "Enquanto" pode apresentar valor de comparação / contraste acumulado com o de temporalidade, por exemplo, em:

    . Enquanto ela falava ao telefone, eu preparava o jantar, com os sujeitos sintáticos das orações (subordinada / subordinante) a operarem ações distintas ('falar'-'preparar') no mesmo intervalo de tempo.

      Todavia, não é impossível considerar apenas o de contraste:
      . Enquanto D. João IV apoiava Pre. António Vieira, D. Afonso VI não o via com bons olhos.

       Um último dado prende-se com o conector usado na frase proposta: "enquanto que". Seja por analogia com "ao passo que" (no contraste) ou "ao mesmo tempo que" (na temporalidade) seja por interferência do francês ("tandis que" / "pendant que"), está usada uma forma por muitos considerada inadequada à realização padronizada do português, mais conforme à construção "Enquanto o luar é dissuasor para Miguel Forjaz, Matilde de Melo vê-o como sinal de esperança". É certo, porém, que há alguns poucos estudos que vão apontando para o uso deste articulador, encarado no seu valor comparativo / contrastivo (e não temporal), ainda que seja reduzido o número de gramáticas que o consideram - lembro-me apenas de uma, a Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, de 2013 - vol. II, pág. 2006. Mais uma razão para a leitura contrastiva das orações e do significado do articulador / conector.

      No que toca ao valor, pode dizer-se que 'enquanto' é muito polivalente, pelo «potencial de significado» (na expressão do linguista Michael Halliday) implicado ou decorrente de significados ajustados aos contextos e ao objectivo comunicativo.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Obrigado, RAP!

     Com o agradecimento devido à OC, também, por me ter feito chegar aos olhos (porque de leitura se trata) a última crónica de Ricardo Araújo Pereira (RAP, sem que de música se fale).

        Estava eu a ler a dita cuja tão contentinho - porque de Linguística não deixa de ser (mesmo que em registo cómico) -, e eis senão quando sou abalroado pela bombástica novidade: "... já quase ninguém se chama Vítor".
       Se do "vós" pouco se pode argumentar quanto ao desuso (mais do que evidente), do Vítor nem sei que diga! Vítor Pereira, com desgosto, vai deixar de treinar e comentar futebol, para não falar de um outro que nem vai mais apitar ou arbitrar! E Vítor Oliveira (não eu), no momento também a treinar lá para os lados de Portimão, está aqui está a fugir para África! É certo que Vítor Baía já não defende as balizas do Futebol Clube do Porto, mas não deixa de ser por aí muito badalado à conta de outras eventuais aspirações. Ainda desiste! E o Chefe Vítor Sobral?! Larga a cozinha. Até Vítor Norte vai deixar o teatro, com a tragédia anunciada! Para isto, muito deve ter contribuído Vítor Gaspar, com uma subida tão brutal nos impostos que nenhum paizinho nem nenhuma mãezinha de juízo quiseram dar tal nome a um seu descendente. Resta ao Senhor Padre Vítor Melícias rezar, a bem do bom nome que já foi de Papa e de Santo.
     Segundo o RAP, estou em desuso. Estou aqui estou tal igual (como diria Mia Couto) a arcaísmo. Bem... pior seria se o meu nome fosse grafado com 'c' (em verdade vos digo que nada tem a ver com o Acordo Ortográfico). Por isso, sempre que me apresento, digo "Muito prazer, Vítor Oliveira, sem 'c' e com acento no 'i'". Sempre dá um ar de modernidade, mais fresco e desempoeirado, não sei se percebeis (cá está o vós).
      Hoje, sinto-me, portanto, "avis rara" com a crónica "Até que o vós me doa" do RAP, publicada na revista Visão:

(clicar na imagem para aumentar o texto)

    Depois disto, não vos riais, que para mim é assunto muito sério! O desuso do pronome (que mais parece majestático, face ao banalizado 'vocês') e a raridade dos "Vítores" precisam de uma comissão de trabalho e de estudo já, para não falar de uma petição imediata, visando a resolução de duas questões críticas nacionais. Pelo menos, a dos "Vítores", claro está!

     E para ir ao encontro do RAP, antes que vos vades embora (este conjuntivo do verbo 'ir' na segunda pessoa do plural é um primor!), ficai sabendo que o nosso cronista da "Boca do Inferno" (vira essa boca para lá!) muito usou e abusou do "Vítor" (ou melhor, do "Senhor Vítor"). Tantas vezes o disse que disso não fez vitória. Imaculada Conceição me valha (por o dia feriado ser dela), com uma ajudinha de São Vítor, ora pois então!

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Coesão... com alguma confusão

     Quando se trata de organizar a coesão, nem sempre os manuais têm razão.

     A questão coloca-se em termos de coesão frásica:

   Q: Olá, Vítor. No caderno de atividades do manual adotado na minha escola, há um exercício colocado na ficha da 'Coesão Frásica', que consiste em detetar erros de conexão. A frase dada é "Esqueci-me da chave dentro do automóvel, mas estava com pressa" e assume-se que há nela um erro por o conector não ser adequado. É um bom exemplo para coesão frásica? Não sei porquê, mas considerá-lo-ia mais na interfrásica.

     R: Viva. Concordo plenamente. O foco da coesão frásica orienta-se para mecanismos verificáveis ao nível da frase simples, nomeadamente, questões de concordância (no interior dos grupos de palavras ou entre sujeito e predicado, por exemplo), de ordenação sintagmática das palavras e de seleção de complementos pelos núcleos.
      Efetivamente, o que se encontra destacado nesse exemplo é o conector / articulador, na ligação de orações distintas - daí o âmbito interfrásico - e a lógica implicada nessa conexão de frase complexa.
    Acrescento, ainda, que só uma contextualização muito circunscrita desse exemplo inviabiliza ou torna inadequado o conector. Em termos pragmáticos, admitiria sempre a produção de um discurso que aponta para uma primeira oração de tipo constativo ('Esqueci-me da chave dentro do carro') seguida do articulador 'mas' a introduzir uma reação ou um comentário do falante relativizando / minimizando uma conclusão associada ao anteriormente proferido - isto é, 'esquecer a chave dentro do carro' aponta para a conclusão de uma situação impensável; 'ter pressa' admite uma desculpa, um cenário para uma conclusão de algo que não é (tão) impensável. Daí a lógica de contraste ou, melhor, de refutação poder ganhar algum sentido - nesta medida, o erro de conexão não existe perante um enunciado que combina dois atos de fala, a remeter para conclusões distintas, interligados por um conector com uma orientação argumentativa ajustada à contestação, objeção, refutação, .
       Face à tipologia de coesão há, portanto, um exemplo mal concebido e face ao erro indicado tenho algumas reservas, por não conhecer o contexto em que o enunciado foi / está produzido (a ponto de assumir a impossibilidade de um sentido potencial).

    Em síntese, um caso a evitar, tanto pela classificação do tipo de coesão como pela solução apontada.
      

quarta-feira, 20 de abril de 2016

"Aqui respira-se, em Portugal abafa-se"

   Frase de Amadeo de Souza-Cardoso, referindo-se ao "aqui" (deítico) que é Paris.

   Não espanta, portanto, que o documentário, hoje mundialmente estreado e transmitido pela RTP1, seja francês; que Paris se renda a uma exposição dedicada ao pintor português modernista, no Grand Palais (em exibição desde hoje até 18 de julho). Parece que os homens do primeiro modernismo português estão destinados a ser conhecidos desta forma: assim foi com Pessoa, com Mário de Sá-Carneiro,...
   Numa mestria de movimentos, na intensidade do brilho e na policromia das pinturas, a genialidade do jovem português de Manhufe (Amarante) impõe-se no centro cultural europeu de então, bem como nos Estados Unidos - palcos abertos a uma rede de influências marcante e que muito contribuíram para o reconhecimento daquele que se afirmou na sensibilidade estética e artística dos movimentos de vanguarda, pela expressão cubista, futurista e expressionista, sem dela fazer escola, a bem da pluralidade que sempre defendeu.

Vídeo sobre a exposição no Grand Palais (Paris)

   Falece, com apenas 30 anos, em Espinho, em 25 de outubro de 1918. Refugiou-se nesta localidade numa tentativa inútil de escapar à epidemia de Gripe Espanhola (pneumónica), depois de ter auxiliado a mulher e a irmã na mesma luta.
    Seis anos antes vira desaparecer um amigo - Manuel Laranjeira - que conhecera na localidade onde havida passado os verões da juventude, numa casa da família localizada muito perto da praia (praticamente ao lado do atual Casino, e da qual presentemente não resta nenhum vestígio).

     Programa televisivo de relevo para um artista excecional, na breve vida longamente silenciada e praticamente esquecida por um regime que o fechou à visibilidade por ele conquistada.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Modalidade(s) de 'poder'

      Entre as várias multifuncionalidades que 'poder' tem, para lá da que decorre de uma capacidade / habilitação para algo, vem também a que se impõe pela crença e pelo desejo.

      Tudo a propósito de uma dúvida que me chega pela manhã (é nesta que se começa o dia):

     Q: Que modalidade e valor pensas estar presente neste segmento: "Não pode ser, não pode ser. Deus não podia consentir em tal" (Maria, em Frei Luís de Sousa). Obrigada.

       R: Comecemos por situar o "tal" - o tema / assunto de que se fala.

    "E pensar que havia de morrer às mãos de mouros, no meio de um deserto, que numa hora se havia de apagar toda a ousadia refletida que está naqueles olhos rasgados, no apertar daquela boca! Não pode ser, não pode ser. Deus não podia consentir em tal."

Telmo (João Villaret) e  Maria (Maria Dulce) 
no filme "Frei Luís de Sousa" (1950) 

       Na interlocução de Maria com Telmo (cena I do ato II), o enunciado proposto é revelador de uma crença do falante (Maria) face a um acontecimento. 
      Convocando uma crença religiosa assumida, a filha de Madalena e Manuel de Sousa Coutinho não acredita num facto que, naturalmente, não deseja e que, em função do contexto e da época representados na ação (príncípios do século XVII, conforme se lê na didascália inicial do primeiro ato), alimentou a esperança sebastianista do tempo: a da morte do jovem rei (condição necessária para que o seu regresso pudesse efetivar-se).
    Focando o segmento sublinhado, este reflete uma construção com o verbo modal 'poder' a transmitir a negação de uma possibilidade, matizada por uma subjetividade assente numa crença ("Não pode ser. Não pode ser") que acaba por ser projetada para um futuro (a ler-se na forma 'podia' do enunciado seguinte: "Deus não podia consentir em tal").
     Esta forma ‘podia’ atende a características específicas, à semelhança do que acontece em inglês com o contraste 'can / could'. Segundo Tim Stowell1, estes modais apresentam-se frequentemente neutralizados na sua interpretação presente/passado, em determinados contextos sintático-semânticos. Não obstante a forma do pretérito imperfeito, 'podia' ('could') não tem necessariamente interpretação de passado - o que pode ser exemplificado com o final da réplica de Maria. A negação, a recusa que subjaz a 'não podia' aponta para várias implicaturas: não querer que D. Sebastião tenha morrido; a morte de D. Sebastião é uma tragédia; Deus não permite que tal tragédia possa acontecer. Resulta, assim, uma enunciação a refletir uma posição pautada pela incerteza velada face à factualidade (a morte de D. Sebastião) e por um perigo iminente face à crença (a de que Deus possa agir de alguma forma contra o rei). 
     Em suma, exprime-se a não factualidade (desejada) da situação e uma crença (sujeita aos limites de qualquer fé), implicando uma força argumentativa próxima da expressão do desejo do falante.
     Consideradas as condições pragmáticas na produção do discurso e uma vez analisada a realização de 'poder' neste segmento textual, evidencia-se uma réplica que está para o ato da recusa, da rejeição, encarado pela personagem Maria, no plano da modalidade epistémica marcada pelo valor do impossível, mais matizado pelo fator das crenças e dos desejos do que pelo da realidade ou factualidade das certezas - um 'poder' que, não o sendo, é a possibilidade negada ou a impossibilidade subjetivamente equacionada.
    É neste enquadramento que a linguista americana Angelika Kratzer2 refere o conceito de modalidade "bulética" (numa tradução livre e literalmente aportuguesada, a partir de ‘bouletic’), para transmitir, enquanto subtipo da modalidade epistémica, o que é possível ou necessário no âmbito dos desejos ou das expectativas do falante.
NOTAS: 
1) STOWELL, Tim (2004:621-636) - "Tense and modals" 
in GUÉRON, Jacqueline e LECARME, Jacqueline (eds.) - The syntax of time, Cambridge, MIT Press

2) KRATZER, Angelika (1981: 38-74) - "The notional category of modality",
in EIKMEYER, H-J.e RIESER, H. (eds) - Word, worlds, and contexts: new approaches to word semantics
Berlin, W. de Gruyter

      A (im)possibilidade das crenças sempre moldou o saber e o conhecer - pelo menos, enquanto assim se desejou.