quinta-feira, 7 de outubro de 2021

A propósito do 'é que'

     Retomemos a noção de construção clivada no português e o operador 'é que'.

     Já lá vai algum tempo. Pronunciei-me sobre a questão já há alguns anos. Uma nova questão permite-me recuperar esse escrito.
 
    Q: Olá, Vítor! A professora da filha de uma colega classificou como pronome relativo o "que" presente nesta frase: "Por isso é que tens de ir à escola". Sinceramente, eu não concordo; no entanto, também não sei como o classificar quanto à classe de palavras. Vejo que está associado à forma verbal "é", pelo que, para mim, é uma expressão de realce. Será que me podes dar uma ajuda, por favor? 

    R: Olá. Com a expressão 'é que', estamos perante um processo de gramati-calização, ou seja, um  processo de mu-dança linguística pelo qual uma pala-vra muda de estatu-to, passando a ser equacionada em ter-mos mais funcionais ou gramaticais. Mais do que a classifi-cação dos termos quanto à classe de palavras, estes valem pela funcionalidade de realce / destaque atribuída a um segmento discursivo-textual. 
   Assim, enquanto unidade, a expressão em causa proporciona uma funcionalidade discursiva própria, tomando-se o 'que' como um operador de uma estrutura ou construção clivada ou de clivagem (cf. M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, 2003, págs. 685-694). Concordo contigo quanto a este 'que' não ser um verdadeiro pronome relativo. A sua classificação situa-se mais no plano de análise discursivo-textual, da gramática de texto, do que no da tradicional gramática da frase. Neste sentido, é no âmbito de um alto grau de gramaticalização e do estudo do que João Andrade Peres e Telmo Móia designam de construções enfáticas ou construções de foco (Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, p. 91, nota 12) que nos devemos situar.
      Ainda que, nalguns estudos, se aborde o 'é que' como expressão em construção aparentada com as relativas livres (e daí a eventual classificação mencionada na tua questão), creio estarmos perante uma situação bem distinta no exemplo dado. Distinguiria bem os exemplos seguintes:

(i) O queijo (é que) foi comido pelos convivas.
(ii) Os convivas (é que) comeram o queijo.
(iii) O que é que a jovem comprou? (< O que comprou a jovem?)
(iv) Porque (é que) fizeram isso?
(v) Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Se i a iii podem ser encaradas como construções aparentadas com as orações relativas (com o 'que' eventualmente a destacar o constituinte retomado de uma frase - o sujeito da passiva em i e o da ativa em ii; o complemento direto em iii, depreendido como o objeto interrogado), o mesmo já não sucede em iv e v, mais associadas a sentidos pragmáticos decorrentes de atos de fala.
     Atendendo ao exemplo v, 'é que' funciona como introdutor de um ato de fala que sai realçado ou enfatizado no seu conteúdo na sequência de uma razão ou motivo a dar lugar a uma necessidade (consequente). É o que se pode depreender na relação dialógica dos enunciados A e B:

(vi) (A) - Ainda não sei ler / escrever.
       (B) - Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Num só enunciado, vi A e B poderia ter a seguinte configuração, se resultante de um só enunciador para com o seu enunciatário:

(vi a) Ainda não sabes ler / escrever. Por isso (é que) tens de ir à escola.

      Face à constatação / asserção de um dado (primeira sequência de vi a), surge o conselho consequente (segunda sequência), destacado face ao ato de fala anterior (tomado como premissa para um raciocínio consequente). Responsável pelo realce / destaque atribuído ao ato consequente , 'é que' (enquanto unidade) proporciona uma funcionalidade discursiva própria, específica ao 'que', tomado como um operador do que os estudos linguísticos designam estruturas ou construções clivadas
      Em suma, a classificação deste 'que' situa-se mais no plano de análise discursivo-textual, da gramática de texto e da pragmática do que no da tradicional gramática da frase. Encaixa-se na definição proposta, no Dicionário Terminológico, para a entrada 'Marcador discursivo', onde se encontram os operadores discursivos com a função de reforço argumentativo.

      Apetece dizer que há níveis distintos de análise na língua. Convocar classificações típicas para realizações linguísticas que requerem níveis de análise mais complexos não me parece ser a prioridade de trabalho para determinado tipo de alunos e de situações de aprendizagem, onde as regularidades devem ser mais exploradas (particularmente quando o objetivo de estudo parece ser o da classificação e não o da análise de especificidades nas condições de produção discursiva). Espero ter ajudado.

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