sexta-feira, 9 de março de 2018

A propósito de anáforas... bem distintas.

      Feita a devida distinção entre o mecanismo linguístico de retoma e a figura de retórica, tudo vai bem.

       O problema está mesmo quando os dois processos são confundidos.

      Q: Quando aparecem palavras repetidas ao longo de uma frase, pode dizer-se que estamos perante a figura de estilo da anáfora? Estou a considerar o seguinte exemplo: "Quando a cidade acorda, não há cidade com a paz do campo. Não há cidade com paz."

      R: Não generalizaria a questão desse mundo, particularmente no que à figura de estilo diz respeito. Em termos de coesão do segmento proposto, pode dizer-se que há uma relação anafórica na repetição do termo 'cidade', mas a questão, neste caso, fica centrada na construção de uma cadeia de referência baseada na reiteração ou repetição lexical. Os três termos não são exemplo de anáfora como figura de estilo, mas de uma repetição sinónima de retoma (do já referido) que pode eventualmente resultar sugestiva no diferencial e no destaque que esse espaço adquira no texto em que surge - ainda assim, não a anáfora como recurso estilístico, por não se tratar de repetição de palavra em frases (ou versos, no caso de um poema) ou sequências sucessivas.
     Em termos de estilo, o exemplo que propõe pode apenas ilustrar a figura de estilo da anáforana construção 'não há cidade com [...]. Não há cidade com', na medida em que persiste, em frases / orações sucessivas, uma cadência de escrita apoiada na repetição não só do vocábulo 'cidade' mas também de uma construção sintática ('não há cidade com'), colocada no início de orações principais e tomada como fator cadenciado e sucessivo de construção.
     Não tomaria, portanto, o uso do primeiro 'cidade' na relação com os seguintes como exemplo de uma figura de estilo, mas sim de um mecanismo coesivo baseado num processo referencial anafórico (enquanto mecanismo linguístico). Aproximaria o segundo 'cidade' do terceiro (no seio de toda a sua construção frásica similar) enquanto efeito estilístico, sugerido por um ritmo cadenciado de segmentos sintáticos sucessivos (seja em prosa seja em verso), familiar a uma retórica literária interessada na exploração de efeitos expressivos e significativos motivados por uma intencionalidade distinta de sentidos mais literais, denotativos e/ou imediatos.
      Lausberg, no seu Elementos de Retórica Literária, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian ([1963] 1993: 174-175), apresenta a figura de estilo como sendo do tipo "... / X... /X...", em que X é a palavra, expressão ou construção repetida em segmentos sucessivos. É este o tipo que se revê em "..., não há cidade... Não há cidade...".

      Um mesmo nome (anáfora) não quer dizer que signifique o mesmo ora quando de mecanismo linguístico se fala ora quando de processo retórico e estilístico se trata.

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