segunda-feira, 19 de março de 2018

Viajando... de comboio?

     Não é a propósito desta carruagem, nem tão pouco de nenhum comboio. Nela, contudo, fica sem que nele se viaje... porque de tempo (acima de tudo) se trata.

     Em torno de uma narrativa epónima (de um nome apenas para três personagens, feitas de uma só), compõe-se uma viagem no tempo.
    Assim se lê "George", esse conto de Maria Judite de Carvalho que configura as três idades de uma mulher, surgida como adulta aos olhos do leitor, no início e no final da narrativa. É este o ponto de partida (e será o de chegada) para alguém que, regressando à sua aldeia de infância, se reencontra com Gi (George na sua juventude, próxima dos vinte anos). Não se trata de relembrar ou recordar o bem passado; antes um tempo que George quer ver apagado, para que não se sinta presa / condicionada (tudo o que a quarentona de sucesso parece não querer).
      O passado esfumado, qual memória que se vai esgotando, é tempo recuado em mais de vinte anos; é rosto fixado num retrato de uma mala qualquer. É uma jovem que podia ser uma filha da protagonista; porém, surge como esboço, como figura de alguém com disposição para a partida - alguém que levará uma mala velha, de cabedal, para sair do "cu de Judas" (onde fica Carlos, que, ao contrário dela, se deixa prender). A reconstrução da memória é como uma pintura: inicialmente, apenas um rosto vago sem contornos, com o sorriso dos dezoito anos (bem distinto do de Georgina); depois, um reencontro, espelhando e  revendo o que não se quer presentificado.
      O presente é o instante do regresso à vila, para vender uma casa (para que nada prenda a um tempo ou a um espaço), pois George é mulher que não se quer ver agarrada a nada (a não ser, talvez, ao "último dos seus amores"). É o momento da consciência do duplo (ou do múltiplo) e de um percurso de errância, sempre na predisposição de partir, de viajar - até porque a vida é feita de constantes partidas / viagens / percursos. É ainda o tempo de despedida do passado e de uma viagem de comboio, qual metáfora da passagem do tempo. É o agora de uma vivência que se faz em Amesterdão, com um trabalho que agrada e faz da adulta George uma pintora bem sucedida, que adora viajar; que prefere os pensamentos agradáveis (feitos de um gosto materialista e de uma propensão para um controlo do tipo quem tudo pode e tudo quer - porque tudo tem).
       O futuro é encarado no momento em que vai o "comboio a fugir de dantes". Aparece, então, um novo esboço, o de Georgina, uma idosa que se sente só (por causa desse "crime" da velhice), com necessidade de retratos (o da menininha que foi Gi, saída da vila com uma foto no fundo da mala). Vê pior, as mãos enrugadas tremem (nada pior para quem foi uma conceituada pintora) e o "mundo já não lhe pertence", aos setenta anos.
     20, 45, 70 anos - a passagem do sorriso do dia para o da noite. O 'eu' no reencontro, na descentração, com o outro 'eu' (o de outros tempos, sejam passados sejam futuros). Nenhum deles George quer. Só o presente, o instante, o momento que controla, à mesma lógica das emoções que são contidas ("uma simples lágrima no olho direito, o outro, que esquisito, sempre se recusa a chorar. É como se se negasse a compartilhar os seus problemas, não e não" / "Não tive desgosto nenhum, nenhum. Um encontro, um simples encontro...").

       A pretensa liberdade do 'eu'. A adulta que tudo julga controlar (inclusive o tempo). A pintora que expõe, que tem sucesso e acredita poder "fechar os olhos" a tudo o que lhe desagrada. Acredita que a mala cara, leve, de rodinhas não dará lugar a uma "carteira preta, cara, talvez italiana, italiana, sim". Porém, "tudo passa", por mais que a antecipação disso incomode George - título narrativo para um presente que dura (só até chegar o futuro).
      

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