No andamento desta carruagem, vão chegando viajantes que vão dando sentido à continuidade do projeto.
Desta feita, a questão é sonora.
Q: Boa noite, Vítor!
Peço desculpa por estar a incomodá-lo, mas, ao "viajar" na Carruagem 23, que apanhei por um feliz acaso, pensei que talvez pudesse ajudar-me numa questão tola, decerto, mas para a qual já procurei e não encontro a resposta: ao classificarmos uma frase subordinada completiva, como se pronuncia a palavra "completiva"? Se a palavra é grave, a sílaba "ple" deve pronunciar-se com E aberto? Penso em palavras da família, por exemplo, completamento, completar, completado, ou completude e convenço-me de que o E deve ser átono, mas depois penso em completamente ou em outros exemplos - letivo, coletivo, seletivo, afetivo - e fico sem saber...
Se me pudesse esclarecer, ficar-lhe-ia muito grata. E, se me permite, gostaria de dar-lhe os parabéns pelo blog, pela pertinência, clareza e bom gosto. (Não é um cumprimento para obter um favor, mesmo que não me possa responder, mantenho a opinião ).
Muito obrigada.
R: Começo por agradecer as palavras simpáticas que me dirigiu a propósito da "Carruagem 23". Melhor do que tudo é o facto de contribuir para o "andamento desta carruagem", com a questão / dúvida formulada.
Esta última não é tola, definitivamente.
Pontos de articulação vocálica
Em termos linguísticos, a procura, por um lado, de alguma estabilização ou normativização não nega, por outro, o reconhecimento de fatores de variação muito difusos, nomea-damente nos domínios da fonética e fonologia. O Português é rico neste campo, bem como algumas línguas românicas, até pela própria proveniência latina.
Primeiro de tudo, há que referir que na classificação / caracterização das vogais, o traço aberto opõe-se a fechado (e não átono), atendendo ao movimento baixo ou alteado da língua; a natureza átona opõe-se a tónica e diz respeito às propriedades acentuais das sílabas (nomeadamente dos núcleos vocálicos).
Consultando um dicionário referencial com transcrição fonética (por exemplo o Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa), encontra-se padronizada a realização com 'e' aberto ([ɛ]), quando 'ti' é a sílaba tónica. Aliás, o exemplo proposto da palavra 'completamente', para me situar no contexto da mesma família de palavras, é outro caso exemplificativo: a sílaba 'ple' tem vogal aberta, sendo 'men' a tónica. Não há, portanto, incompatibilidade entre estes dois últimos dados. A par disto, e contrariamente a uma especificidade do Português Europeu - que aponta para a extrema redução das vogais átonas -, há contextos de exceção a este princípio geral (de natureza morfofonológica):
i) o caso das vogais átonas em sílabas terminadas em [l] (ex.: escaldado, falsidade, relvado, salgado, soldado < do verbo soldar>), que mantêm as respetivas propriedades fónicas de base, apesar da derivação: escalda > escaldado, falso > falsidade, relva > relvado, salga > salgado, solda > soldado);
ii) o das vogais átonas seguidas de semivogal com a qual formam ditongo (ex.: pautado < pauta, endeusar < deus, foicinha < foice).
Destacar o acento tónico de uma palavra (associado à sílaba tónica, pela intensidade e duração apresentadas na vogal que se constitui como núcleo silábico) não exclui a possibilidade de considerar outros acentos fónicos (etimologicamente motivados). Explica-se, assim, que, além do acento principal (o tónico), possa existir um acento secundário na mesma palavra. 'Completamente' tem o acento tónico na sílaba 'men' e um acento secundário em 'ple' - daí também a abertura desta última vogal. O mesmo sucede com 'completivo', assim como em vocábulos como 'facilmente, 'patetice', 'pazada', 'solteiro', 'vaidade', cujas sílabas átonas sublinhadas não dão lugar à típica redução sincrónica do núcleo vocálico. Assinala-se, desta forma, uma prova fónica de que há razões de ordem etimológica para a manutenção de vogais abertas. Contribui para isto a origem latina e o jogo deste idioma com acentos fónicos relacionados, por um lado, com a altura ou o tom e, por outro, com a intensidade. Acresce ainda a consideração de questões ligadas à quantidade fónica da própria sílaba latina (se era longa ou breve) e a processos de assimilação / dissimilação sonora.
Trata-se, portanto, de um assunto que se pode apoiar no domínio da fonética diacrónica ou histórica e com relações no que hoje se prende com a construção do ritmo da própria palavra. Extensivamente, podem ainda contemplar-se motivações sociológicas e/ou analógicas decorrentes da preservação das vogais abertas de termos derivantes (ex.: alerta > alertar, ambos com 'e' aberto) ou da tendência para manter abertas vogais átonas em posição inicial (ex.: exato, pronunciado também com 'e' aberto ([ɛ]); orelha, realizado com [ɔ] inicial) - mesmo não se tratando de realizações-padrão.
No que toca a sons, está aqui um breve apontamento de como o estudo da fonética e fonologia do Português contribui para a abordagem da história e do funcionamento interno da língua, nomeadamente da sua componente morfofonológica.
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