sábado, 12 de janeiro de 2013

A gente passa, o tempo fica... na vida

     Esta foi uma das frases sublinhadas num espectáculo com muitos ensinamentos.

     Hoje o Teatro Nacional de São João esgotou, para a última representação de "Sombras (a nossa tristeza é uma imensa alegria)" - musical teatral de que já ouvira falar (e muito bem) aquando da sua primeira temporada no Porto, em novembro de 2010. Deslocado para Lisboa, regressou à Invicta (ou Inbicta, para respeitar o registo nortenho) em 2013, para três noites que - a julgar pela última - foram surpreendentes.
     Criação de Ricardo Pais com direção musical de Mário Laginha, um conjunto de artes performativas, de sons e de imagens oferece palavras e textos de três séculos da nossa cultura: o quinhentista (com a Castro, de António Ferreira), o oitocentista (com Frei Luís de Sousa, de Garrett) e o contemporâneo (com Figurantes, de Jacinto Lucas Pires). No entremeio, ouvem-se a "Carta da Corcunda para o Serralheiro" (de Pessoa), "Ai, Margarida" (de Álvaro de Campos), "Nós, Portugueses, somos castos", "Pântano" e "Nocturno" (de Pedro Homem de Mello) entre outros textos e poetas cantados por José Manuel Barreto e Raquel Tavares. É o género musical do fado que atravessa toda a representação, como se Portugal também quase e só vivesse o fado dos mitos trágicos ou dos temas portadores da (com)paixão sofrida, impositiva, partilhada.


    A nota dissonante é trazida por um par de personagens que, numa alternativa à mitologia e ao imaginário carregados da tradição, desconstrói o fatídico e trágico em festivo e cómico. Do sofrimento à vitalidade, estes compères (apresentadores de rádio, televisão e espetáculo) revelam-se uns 'figurantes' a protagonizar a desconstrução capaz de mudar o grito de vergonha de uma Madalena de Vilhena (na sequência de um Romeiro que se associa a D. João de Portugal) na  entusiasmada ânsia de um "É ele!", mitigando o drama; a intensa e pesarosa paixão na animada e carnavalesca fantochada, só permitida pelo distanciamento; a solenidade e teatralidade da cultura séria na banalidade de um "Oh", acompanhado de um braço erguido e atirado por cima da cabeça, para trás das costas. Tudo na sequência da oferta de um ramo de gerúndios brancos a uma mulher.
    Desta forma, a realidade assume-se infinitamente maior do que o sonho, pelo que dela e na vida se queira fazer, existindo. Podem o "barco ao sabor das ondas perdidas", as "Árvores de oiro (que) andam, de rastos, partidas todas ao meio" aspirar a alguma luz - até porque as sombras, para o serem, têm de se alimentar de alguma (por pouca que seja) luminosidade.

      Ó luar da meia noite, 
     alumia cá p'ra baixo, 
     que eu perdi o meu amor 
     e às escuras não o acho.

     Revisitado o passado, afirma-se a possibilidade de um futuro que, não apagando o primeiro, abre sempre a hipótese de conciliar a tradição com os sinais de modernidade.

     Ficam as palavras, os textos, um palco pleno de significado para a vida que Ricardo Pais quis dedicar ao Paulo Eduardo Carvalho, meu companheiro (e também da Emília Silvestre), no curso de Português-Inglês  na  FLUP, lá por meados da década de oitenta. Passou tão cedo, o Paulo... não ficou neste tempo que por cá anda.

4 comentários:

  1. Com este texto, ajudas a Ver a peça e a compreender os diferentes registos, assim como a descobrir os textos "fechados" entre as imagens do catálogo - reiterando-se a ideia de que é possível encontrar sentidos em lugares improváveis.

    Um beijinho
    Dolores

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    1. Obrigado, amiga.
      É bom ter noites como esta, capaz de fazer ver e sentir mais longe, encontrando sentidos que não sejam tão pesarosos.
      É preciso "luz" e, por certo, este foi um momento de muitas luzes e muitas estrelas que brilharam.
      Até um "raio" se impôs na noite escura! :)
      Beijinho.

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  2. É sempre bom ler em “sítios” diferentes o que vimos no mesmo sítio!
    Prova é de que os olhos selecionam em função da luz, das cores e das sombras que somos, que vamos sendo e deixando de ser… Porque “a gente passa” e só “o tempo fica… na vida”!
    Porque passar é ser gente, ou não o dissesse Pessoa na “Carta da Corcunda ao Serralheiro”, um dos textos de abertura deste espetáculo e que aqui tive a oportunidade de re(ver)ouvir:

    “… o senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém (…) e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela!”

    Foi, como já tive oportunidade de dizer em 'Olá Mariana', uma noite fantástica!

    Um beijinho para os dois, Dolores (primeiro, as senhoras!) e Vítor
    IA, também prima Zá

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    1. No mesmo sítio, à mesma hora, mas pessoas diferentes.
      Por isso é que os deíticos são tão personalizados: por trás de qualquer um deles (tempo, espaço), há sempre a pessoa que neles se inscreve; que os perceciona e representa à luz do que pode ou pretende ver. Daí a mesma coisa ser vista na ficção e na realidade; no sofrimento e na representação; na tristeza e na alegria.
      E na fantástica noite também houve lugar para o enfado (que o digam os suspiros de quem estava à minha esquerda, ansiando pelo fim do que, por mim, podia ter sido adiado).
      Beijinho.

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