Na linha de um "ridendo castigat mores" aplicado à época setecentista e com evidentes ecos no tempo contemporâneo, Pierre Marivaux viu muito além do seu tempo (ou aquilo que fica, porque somos nós que passamos).
Uma adaptação e combinação de vários textos de Marivaux (L’Amour et la vérité, Le Chemin de la fortune, La Réunion des amours, Félicie e Le Cabinet du philosophe) é o manto que a adaptação e encenação de Luís Miguel Cintra propõe aos espectadores para uma noite no Teatro Nacional de S. João, com a peça Os Desastres do Amor, levada à cena pelo Teatro da Cornucópia. Nela assiste-se à representação de um mundo composto de alegorias para valores, virtudes que se perde(ra)m ao longo do tempo(s).
Passam os séculos, a mudança impõe-se paulatina e repetidamente. Aspira-se a novos padrões, novos princípios, mas o confronto final é feito sempre com o que se julgava já perdido. Entre balanços e confrontos com visões da vida, passamos.
Do Cupido-menino, que cresceu e se tornou 'Amore', a um Dom Cupidom que radicaliza a vivência amorosa, evidencia-se a decadência dos costumes (inclusive a de uma herança cultural, mitológica, desconstruída ao longo de gerações), pela forma de um 'palácio da Fortuna' cuja piscina seca dá lugar a um palco de cruzamentos, animações, festas para entreter personagens com percursos feitos de desequilíbrio, injúria, despudor, arrogância, poder inconsistente, interesseiro e interessado no que há de mais físico, material e centrado no prazer de ser, sentir e ter.
Do Cupido-menino, que cresceu e se tornou 'Amore', a um Dom Cupidom que radicaliza a vivência amorosa, evidencia-se a decadência dos costumes (inclusive a de uma herança cultural, mitológica, desconstruída ao longo de gerações), pela forma de um 'palácio da Fortuna' cuja piscina seca dá lugar a um palco de cruzamentos, animações, festas para entreter personagens com percursos feitos de desequilíbrio, injúria, despudor, arrogância, poder inconsistente, interesseiro e interessado no que há de mais físico, material e centrado no prazer de ser, sentir e ter.
Numa primeira parte, há o tempo para se "apostilar o exórdio": um homem (Amor) e uma mulher (Verdade) dialogam para que todos saibam que a mentira está na cidade ("indigno comércio de complacências e de logros que a Lisonja aqui introduziu").
Os Desastres do Amor - Teatro da Cornucópia (foto de Sara Santos)
Na segunda, Felícia, uma viúva de meia-idade em busca da felicidade e da verdade, descobre não ser fácil (senão impossível) amar, mesmo dizendo que tudo controla na aproximação àquele que lhe oferece a oportunidade de vi-ver esse sentimento. Parece desconhecer os limites na apreensão do amor, em particular, e da vida, em geral; aprende-os pelo percurso feito, mas passa por eles praticamente incólume, sob a proteção constante de uma fada-madrinha (a Doutora, Diana, Fortuna, a dona do 'Palácio da Fortuna') que, pouco tendo de virtuosa, é uma espécie de deusa suprema, pondo à prova seres e almas que quer ver trabalhados e analisados num mundo composto por uma babel linguística (italiano, espanhol, francês, inglês, português). Nele brincam ricos e gaudérios, comportando-se como deuses do Olimpo. Sofrido e desiludido fica o "amador" Dimitri: um estrangeiro que amou; um pobre que procurou lutar e escolher uma vida que ele queria construída à medida das suas ideias e dos seus ideais.
Bem que podiam ser estas as palavras do apaixonado, revistas na inspirada e famosa canção napolitana dos anos trinta composta por Enzo Fusco:
DICITENCELLO VUJE
Dicitencello
a ‘sta cumpagna vosta
ch’aggio perduto ‘o suonno
e ‘a fantasia.
Ch’ ‘a penzo sempe,
ch’ è tutt”a vita mia.
I’ nce ‘o vvulesse dicere,
ma nun ce ‘o ssaccio dì.
‘A voglio bene
‘A voglio bene assaje.
Dicitencello vuje
ca nun mm’ ‘a scordo maje.
E’ na passione
cchiù forte ‘e na catena,
ca mme turmenta ll’anema
e nun mme fa campà.
Dicitencello
ch’ è na rosa ‘e maggio,
ch’ è assaje cchiù bella
‘e na jurnata ‘e sole.
Da ‘a vocca soja,
cchiù fresca d”e vviole,
i già vulesse sèntere
ch’è ‘nnammurata ‘e me.
Na lacrema lucente
v’è caduta,
diceteme nu poco:
a che penzate?
Cu st’ uocchie doce,
vuje sola mme guardate.
Levammoce ‘sta maschera,
dicimmo ‘a verità.
Te voglio bene.
Te voglio bene assaje.
Si’ tu chesta catena
ca nun se spezza maje.
Suonno gentile,
suspiro mio carnale,
te cerco comm ‘a ll’aria,
te voglio pe’ campà.
Te voglio pe’ campà!
"Dicitencello Vuie" na voz dos tenores Placido Domingo, Luciano Pavarotti e Jose Carreras
Sem sucesso. As palavras e a melodia não seduzem o coração feminino: Felícia rende-se à moral dominante, não explorando as possibilidades de realização e de felicidade oferecidas por quem a ama.
Duas vítimas jazem no palco: Modéstia, a companheira cedida pela fada-madrinha, que não permitira ousadias na busca da felicidade; um "escort" de luxo, Apolo, com muitas "artes de sobrevivência", mas sem final feliz.
E assim chega o momento de "apostilar o epílogo": se Escrúpulo é a personagem pela qual todos devem passar para entrar no "Palácio da Fortuna", neste último parece tudo haver, à exceção do amor terno e puro que não vence; a fortuna fica mais para a materialidade (a do prazer e do dinheiro) do que para a sorte ou destino, na virtude e na honestidade. Que escrúpulos são estes? Mudança de tempos, mudança de sorte, mudança de valores? O tempo o dirá.
Aqui vim e confirmei o que já tinha dito em http://olamariana.blogspot.pt/.
ResponderEliminarDe facto, havia muito para ver e ouvir melhor! Precisava de ver a encenação pelo menos mais uma vez!
A subversão dos mitos (Ai, o Apolo a tirar macacos do nariz em dia em que se celebra a poesia! Calhou! O Apolo que queria as mãos livres para “escrever melhor” o amor físico que impera atualmente na poesia, em particular, e na arte, em geral! )...
A subversão dos valores (A Virtude que se rende, por momentos, aos encantos de D. Cupidom! Pudera, era francesa!)...
A vitória do Mundo (Leia-se do verdadeiramente mundano!) sobre os homens e os deuses...
Como interpretar aquelas luzinhas içadas durante a representação? As luzes da ribalta que ofuscam e afastam os homens do caminho estreito da Honra? Uma espécie de "Põe bandeiras (neste caso, luzes) que é festa", tão ao gosto vicentino? O estelífero polo que é o Olimpo, espaço que aqui é o Palácio da Fortuna, mas que se justapõe, de certo modo, ao outro pela presença, quase omnipresente, de Mercúrio que vai convocando?
Estranho este deus mensageiro, tão próximo dos que buscam a verdade, o amor como dos que vivem pela lisonja!
Pois… eu devia ver isto tudo outra vez!
E esta canção! Ai, esta canção! Doce é este amor! Mas tão triste porque não se sabe correspondido. Faltam-lhe o arrebatamento, a coragem e o atrevimento para enfrentar o outro e obrigá-lo a definir-se! (isto a acreditar no que li na tradução inglesa: “let's take off our masks, and tell the truth”.)
Mas a verdade, às vezes, dói, porque nos torna vulneráveis… E volto, de novo, à primeira parte da encenação: a Verdade e o Amor! O feminino e o masculino!
Não digo mais. Vou ouvir pela quinta vez a canção, porque… porque em mim ficou desde anteontem!
Beijinho e até à próxima irreverência em palco, ou na tela!
IA
As luzinhas das festas, dos bailes de bairro - onde dançam aqueles que se julgam deuses (da fama) - são enganadoras... São luzes ensombradas pelo que já foram verdadeiramente (quais ideias platónicas). É como a cultura que se vai perdendo, com o passar dos tempos, da qual nos aproximamos quando nos libertamos das sombras...
EliminarIsto está muito platónico!
Este mundo de homens, entre o que se quer e o que se tem, é o de uma felícia "infeliz", o da verdade e do amor que não se atinge em pleno - só aquilo que é permitido e que é uma pequena parte do que podia ser.
Boa audição.
E, se preferires, podes variar a música e ir pelo "É o amor...", de Zezé Camargo (http://www.youtube.com/watch?v=1yX6K7mCVPY).
Bom domingo.
Beijinho.
É... Platão também aqui mora.
ResponderEliminarÉ o que eu digo: há muito mais para ver, ouvir, sentir e pensar! Estou como a Dulce, só queria ter acesso ao texto!
Quanto à cantiga proposta...
Grande, grande é esse teu sentido de humor! Nada que eu já não soubesse!:-) Arrancaste-me um boa gargalhada, logo pela manhã.
Retribuo com alguma irreverência, não no mesmo tom, mas em sentido ligeiramente oposto!
Ou se gosta ou não deste amor perspetivado na velhice também (aqui) acompanhado à viola, instrumento que muito se aproxima do (e se manuseia como o) corpo feminino... (Ai, Dom Cupidom, lá está ele a meter a flecha onde não é chamado!)
Deixo-te então este "One day, baby, we'll be old...", disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=A16VcQdTL80
beijinho e bom domingo!
IA
Não sejam os textos de um neoclássico...
EliminarPierre Marivaux devia estar a sentir-se com Luís Miguel Cintra se sentiu ao compor o guião da peça: perdido numa cultura que, de tão vulgarizada, estaria em contínuo esquecimento e onde passava a caber tudo (até qualquer coisa parecida com a contemporânea musiquinha de Zezé Camargo).
Beijo e bom domingo.
Gostei desta peça e, através de múltiplos registos, em palco convergiram muitas situações que o tempo não apaga, embora lhes dê outras feições.
ResponderEliminarO Teatro continua(rá) a mostrar muito da essência da Vida, com os diferentes sentidos que assume a palavra Fortuna.
Um abraço
M.
O ciclo do eterno retorno é 'topói' literário para qualquer género.
ResponderEliminarMarivaux conhecia-o, como qualquer pensador e humanista que sabe como o Homem, na sua existência finita, repete a sua condição em contextos por vezes bem diversos.
Por isso, às vezes, rimo-nos do que nos é dado a ver no palco e por aquilo que sempre temos sido.
Beijinho.
VO