sexta-feira, 29 de março de 2013

Um(a viagem de) comboio na carruagem...

     Isto de meter o todo na parte tem coisa que se lhe diga (talvez porque esta precise dele, para o sentido que se quer e se vê na vida).

    Vem a nota a propósito do filme "Comboio Nocturno para Lisboa", realizado pelo dinamarquês Bille August e inspirado na obra homónima do suíço Pascal Mercier (pseudónimo para o filósofo Peter Bieri). Trata-se de uma co-produção levada a cabo em Portugal, Alemanha e Suíça, com um elevado registo de imagens da capital portuguesa no que esta tem de mais típico e internacional. O retrato de Lisboa é-nos facultado enquanto cenário para a movimentação da personagem principal - Raimund Gregorious, professor de Grego e Latim na Suíça -, tanto pelo percurso que nele faz como pela evocação de tempos gerada pelas personagens com que se cruza.
      A história focaliza-se na(s) viagem(ns), na procura que o professor empreende a partir de um livro ficcionado, escrito em língua portuguesa (Um Ourives das Palavras) e associado a um autor imaginariamente construído com o nome Amadeu de Almeida Prado - um jovem médico-escritor português, com origens numa família tradicional e aristocrata conforme ao regime ditatorial de António Oliveira Salazar. O novo membro da família assume-se, contudo, como um opositor, um resistente à ditadura. Pela descoberta do livro, por um bilhete de passagem de comboio com destino a Lisboa, pela impulsiva e compulsiva leitura a que se entrega, Raimund contacta com o pensador Amadeu; aproxima-se da língua portuguesa e da sua sonoridade, num autodidatismo natural e imediato;  abandona repentina e momentaneamente a sua profissão e a sua cidade de Berna, para descobrir a liberdade de ação e o sentido de vida que o preenchem. Assim, Gregorius parte para a capital mais ocidental da Europa, descobrindo a história e a vida de quem lhe deu a ler palavras fascinantes. Cruza-se com pessoas que o lembram e que traçam a recordação num fundo histórico-cultural dos anos sessenta / setenta do século vinte. Consciencializa-se - pela viagem feita em torno da sua própria pessoa - dos seus atos e de um princípio de liberdade partilhados no jogo das convicções e das possibilidades arquitetadas por crenças e vontades pessoais.


    Uma intriga romântica (com uma complexa rede de afectos a pintar um passado faseada e analepticamente revelado, mais uma relação a construir-se no presente), um conjunto de reflexões acerca do sentido da vida e da morte (na obra de Amadeu do Prado - tão imaginária e tão poderosa quanta a vontade que se tem de a encontrar e ler, pela aproximação ao que Bernardo Soares propõe no Livro do Desassossego), um enredo com notações político-pidescas (sem pretensiosismos de fundamento histórico, mas com o enquadramento necessário aos percursos de decisão e de liberdade desejados), um quadro de imagens urbanas (numa sucessão de postais turísticos atrativos) e um fundo sonoro de registo diverso (numa combinação que compagina fado, a guitarra portuguesa e sonatas de Mozart) fazem deste filme uma peça que toca a alma portuguesa e uma sensibilidade queirosiana tão "irremediavelmente" romântica.


      Nas mãos violentadas a um tocador de piano, nas que sedutoramente desafiam a pele de quem se ama, nas que salvam a vida humana independentemente das vontades mais imediatas, nas que folheiam um livro à procura da própria identidade, há obra de dolorosa resistência; de sofrido amor marcado por convicções pessoais; de superior humanismo face a quaisquer dilemas ideológicos; de descoberta e de afirmação pessoal. O discurso produzido por Amadeu no final do curso reflete-se no silêncio e no abandono evidenciados pelos partidários da ditadura, da omnisciência e omnipresença divina defendidas por uma igreja que coarta o que de mais íntimo e pessoal existe na definição dos indivíduos; que clama por promessas de vida eterna para os crentes. Aí, as mãos que batem palmas são as dos que, tal como Amadeu, entendem não poder haver nada pior do que ser condenado a viver para sempre na condição do já instituído.

     De um presente para um passado - progressiva e faseadamente revelado (como que numa analepse espiralada, da camada mais recente para a mais recuada e mais profunda dos tempos) -, afirma-se a condição da viagem. Entre a chegada e a partida de Lisboa, há diferentes instantes de presente - os últimos mais libertos e com possibilidades de futuro. A obra de Amadeu na obra de Pascal Mercier reflete, num efeito de espelho, o espírito de um pensador português no de um professor suíço a aprender um valor de liberdade (feito de impulsos) que não está isento de sofrimentos, vontades e escolhas individuais.


2 comentários:

  1. Adorei é o “adjetivo” que melhor pode definir/caracterizar a emoção que senti ao ver, ouvir, sentir este comboio para Lisboa, propositadamente noturno (Diurno não tinha o mesmo encanto, pois não?)!
    Partindo do que já afirmaste no teu artigo, não posso deixar de, aqui, abrir as mãos e soltar as palavras mistério e magia, “(a)casa(la)das” harmoniosamente pela lei do Acaso, como Amadeu Prado o perspetivava, e de que Pascal Mercier se serve para construir o fio condutor da narrativa.
    Com efeito, para além das escolhas pessoais que as personagens fazem, o Acaso (e repito propositadamente o termo) é impulsionador da mudança que as personagens (neste caso, Raimund) buscam e acabam por viver. É por acaso que o professor vê a rapariga prestes a saltar para a morte. É por acaso que ele encontra “O Ourives das Palavras”, o qual já tinha sido encontrado por acaso pela jovem acima referida. É por acaso que ele encontra os bilhetes de comboio. É por acaso que a bicicleta o atropela e ele parte os óculos, não conseguindo “ver direito” e, acabando, por encontrar – também por acaso – a mulher, o amor!
    Quase se poderia comparar Raimund com a personagem bíblica Saulo (depois, S. Paulo), que teve de cegar para descobrir o Amor por Cristo, mudando completamente a sua vida e, consequentemente, a identidade.
    O mesmo acontece com o professor de Grego e Latim – muda, transforma-se, porque viajou nos outros e redescobriu-se a si, viajou em si e abriu portas a outrem, neste caso outra! Só não mudou a identidade.
    E o Acaso também se faz real na vida de Amadeu, Estefânia e Jorge, em muitos momentos das diversas analepses que vão surgindo ao longo da narração. Não vou evocá-los.
    Vou render-me às palavras do livro que existe dentro do livro que dá origem ao filme e vou recolher-me na intimidade da PALAVRA aí vivida, que Amadeu diz ser refúgio.
    E claro, num comboio que é propositadamente noturno, a imaginação, que acompanha a intimidade, faz todo o sentido e dá sentido às linhas mais profundas da narrativa.
    Lembrando Pessoa que é (livremente) citado por Raimund: o verde sonhado é muito mais verde que o real!
    Por isso, devemos regressar a nós, aos lugares onde já fomos nós, sendo outros, porque o tempo era outro.
    E o Tempo aqui também dita as suas leis e vive! Vive, porque a morte existe.

    Obrigada, Vítor, por me/nos aconselhares o filme (falta-me ler o livro!) nesta carruagem que viaja sem horários pré-definidos, com destinos mais ou menos imaginados, mais ou menos íntimos - leia-se introspetivos e/ou comungados com outro(s)!

    Beijinho
    IA

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    1. Deus meu! Que tratado fílmico.
      Há acasos que fazem todo o sentido na vida. Para mim, este foi um acaso para a Vida. E não te esqueças do impulso, outra força que dirige a narrativa.
      Beijinho.
      VO

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