domingo, 10 de março de 2013

Portugal? Qual?

      Cruzei-me com um poema de Alexandre O'Neill.

     Eram os anos sessenta e surgia Feira Cabisbaixa (1965), título de livro para um jogo ser-aparência, para a expressão da sátira e do manifesto que desvela um tempo de vida vazia, de um conformismo incomodativo. Um tempo para um país a descobrir ("se fosses só três sílabas" implicita que não o era à altura da escrita): do que era pintado a heroísmo para o que se revelava "cabisbaixo" e "desmanchado" como a feira.

(do programa da RTP "Um poema por semana", ideia de Paula Moura Pinheiro e declamação da jornalista Maria José Marques)


           PORTUGAL

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...


      Do verso nacional ao reverso poético, há um percurso feito de incomodidade, uma visão toldada de desajustamento, da insatisfação e do remorso.

      Mais valia dizer que me cruzei com um Portugal, aquele que, no poema, me parece a este tempo tão igual! Qual?! O de um país que foi posto a perder, com tantos por responsabilizar e por sofrer.

2 comentários:

  1. Que este Portugal de O'Neill, muito bem declamado (eu gostava de “dizido”) por Maria José Marques, cumpra a sua função.
    Que seja apenas um lamento no Muro das Lamentações, que a Poesia também é! E que a nossa alma se purgue!

    Mas, Deus meu, não fiquemos por aqui!
    Abandonemos a condição “Se fosses”, limitada por um advérbio “só”, tão só também como adjetivo… E ousemos o indicativo (que futuro seja!), mas que seja indicativo ou, como comummente dizemos, real! Talvez lhe (à frase) possamos acrescentar um também, bem mais integrador…

    Vim da Mariana, onde o espírito é de exaltação e não quero perdê-la, apesar de reconhecer a legitimidade e a atualidade da palavra do poeta que se chama Alexandre.
    Perdoe-me o poeta, mas também temos que saltar (será difícil derrubar) o tal muro das lamentações!
    Beijinho e tentemos o indicativo!
    IA

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    1. No caso de O'Neill seria lamentação mais para a denúncia de um Portugal que se impunha e não era verdadeiro.
      Não fiquemos, não! Nos anos sessenta não ficou, mas demorou uma década para a liberdade.
      E no que toca a saltar, eu saltava em cima de quem nos pôs neste mísero estado e não dá a cara pela desgraça construída (em vez disso, passeia-se pelo mundo, junto com outros facínoras que para aí andam).
      Eu tentava o conjuntivo com valor de imperativo: não nos desgracem!
      Beijo.

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