sexta-feira, 22 de março de 2013

A um pequeno GRANDE HOMEM e ENORME PROFESSOR

     Há nomes tão grandes que não desmerecem as pessoas exemplares que os têm, por mais pequenas que nos surjam aos olhos.

     Lembro-me, enquanto estudante do ensino secundário, que era dos nomes mais citados sempre que se pretendia referenciar ou desenvolver algum trabalho sobre literatura. A História da Literatura Portuguesa era, então, título consabidamente conhecido entre os jovens que se orientavam para os cursos de Letras (como eram então conhecidos, na década de oitenta do século passado). Não quer isto dizer que os de Ciências o desconhecessem, mas havia já um sentido de identidade que os alunos dos cursos humanísticos assumiam na frequência com que ouviam falar tanto de António José Saraiva como de Óscar Lopes.
    Quando, em 1984, entrei para o curso de Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, voltei a deparar-me com o nome do Professor Doutor Óscar Lopes no momento de inscrição nos horários de Introdução aos Estudos Linguísticos. Ganhava aí a consciência da extensão maior de saber num homem: do historiador de literatura para o linguista. Copiava então um nome que já respeitava e que imaginava na grandiosidade física proporcional à imponência do saber. Verificado o horário da disciplina, mais o local, apresentei-me no anfiteatro pequeno da faculdade, então localizada na Rua do Campo Alegre, num edifício junto ao Jardim Botânico. A curiosidade era imensa: se a compatibilidade horária com outras cadeiras do plano de estudos de Português-Inglês me fez assistir e frequentar as aulas da Professora Fernanda Irene Fonseca (circunstância de que não me arrependo em absoluto), não pude deixar de me infiltrar num grupo que iria trabalhar com quem, à partida, eu gostaria de ter ficado mais tempo e mais perto.
     Recordo-me das primeiras linhas de apontamentos que tentei tirar, depois do espanto de ter visto entrar e ficar à minha frente um professor de pequena estatura, aspeto franzino, semblante aquilino e trato afável. Explicou a todos os presentes que tinha ido almoçar muito rapidamente à Alicantina e acabara por gizar, num pequeno e fino guardanapo de papel (entretanto retirado, e desdobrado, do bolso do sobretudo),  os tópicos para o tema de que ia falar: sinais e linguagem. E, para tal, nada melhor do que convocar experiências e conhecimentos de mundo.
    Tentei tirar apontamentos, sim,... tentei. Mas o assombro do que foi essa aula estava mais para apreciar o que ouvia do que para me perder na escrita. Cheguei mesmo a listar as ciências e/ou áreas de saber que foram evocadas naquela sessão de 120 minutos:  astrologia e astronomia, biologia, ciências náuticas, física, química, economia, geografia, sociologia, filosofia, medicina, música, pintura, arquitetura... Entre a angústia de pensar que era melhor registar o que ouvia (para não perder) e o prazer de escutar, de acompanhar os raciocínios e a argumentação produzidos, fiquei-me pela segunda.
    Repeti a experiência por mais cinco / seis lições, com o mesmo fascínio e, reconheço, a vontade de poder dominar só uma pequeníssima parte de todo aquele saber, conjugado com naturalidade e humildade capazes de motivar qualquer público.
     Nesta grandeza, explica-se como era possível encontrar o Professor caminhando no passeio da Avenida da Boavista, junto à parede das casas, sem qualquer nota de protagonismo e como que humildemente procurando proteção e generosamente oferecendo o espaço restante aos que com ele se cruzavam.
     Anos mais tarde, em maio de 1996, quis o destino que fizesse parte de uma comissão organizadora de homenagem a Óscar Lopes - o 1º encontro de professores de português (a língua mãe e a paixão de aprender), promovido pela Areal Editores no Salão Nobre da Câmara Municipal de Matosinhos. Dava eu aulas, nessa altura, na Escola EB2,3 de S. Pedro da Cova. Assim que o Professor o soube, pediu-me que ensinasse e fizesse o melhor que pudesse por aquelas gentes de que tanto se lembrava e estimava. Assim o quis fazer, por não poder ser por menos - nessa altura, Vasco Graça Moura, que nunca tinha sido aluno direto de Óscar Lopes e todavia sempre se sentira como se o tivesse, chamou-lhe "o Professor dos Professores" (expressão de correção e rigor).
      Com Óscar Lopes ficou-me uma máxima: "O sentir liberta-se quando o pensar está bem arrumado" [in Gramática Simbólica do Português (um esboço), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1971]. Também, um princípio pedagógico-didático: "O aluno não precisa de saber exactamente para onde vai, mas o professor precisa; e, se o souber, descobrirá muito mais facilmente qual o modo mais adequado de interrogar, de estimular problemas interpretativos, e qual a melhor altura para inculcar as peças de raciocínio simbólico, e para, pouco a pouco, as articular com vantagens correlativas no domínio da precisão racional e no do apuramento da sensibilidade" (idem, pág. 8).
    Transcrevo aqui algumas das sábias palavras que ouvi há quase vinte anos e que (re)leio hoje na pertinência e no ajustamento de qualquer tempo:

      "Eu chamo a esta disciplina [falando do Português] uma superdisciplina, porque, no fundo, deveria coroar todo o ensino, ou toda a comunicação. É na língua materna que tende a confluir tudo o que se aprende, e por isso esta é, por excelência, a disciplina em que há sempre algo de novo, em que o professor, com a integridade dos seus dons, ultrapassa de longe o próprio programa. É preciso estar atento ao novo que se exprime literariamente, incluindo o mundo que se traduz em qualquer língua estrangeira (...). Por outro lado, a nossa gramática escolar tem de condizer com a mais exacta das nossas disciplinas, a matemática, que assenta não no algarismo (o algarismo decimal veio do Oriente, no século XII, com os Árabes - os Árabes! -, e só nos familiarizámos com esse sistema de numeração no século XVIII), mas nas operações mentais, que se realizam em qualquer das sete ou oito mil línguas do mundo. É indispensável que o professor de língua materna e o professor de cálculo formal (ou matemático) se compreendam um ao outro, porque, de contrário, somos nós que não nos entendemos, impotentes, perante uma grande manifestação de esquizofrenia real que já não pode vencer-se".
(Excerto da alocução do Professor Óscar Lopes,
no 1º encontro de professores de português - homenagem a Óscar Lopes,
2-3 de maio de 1996)

      Um Professor que teve a paixão de ensinar, pela paixão que teve com e pelas causas justas.
      RIP


9 comentários:

  1. Que saudades das suas aulas!

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    1. Sei que não é a mesma coisa, mas temos os escritos e a oportunidade de (re)ativar os seus ensinamentos, na medida do que pudermos...

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  2. Perdeu-se o homem físico, mas o espírito - e esse é grande e rico! - ficou!
    Não tive a sorte de o ter como professor!
    Neste caso, perdi eu...

    IA

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    1. Concordo.
      Saibamos nós tirar proveito do muito que nos legou, no espírito das letras.

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  3. Estive lá. Como me lembro...

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  4. Nessa famosa aula e no encontro Areal...

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  5. Belíssimos tempos... por variadíssimas razões e pelo Professor também.
    Felizmente, houve um jornal nacional (Público) que lhe deu lugar de destaque; infelizmente, pela pior razão: a da perda.

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  6. Nunca o tive como professor, mas lembro-me bem de ouvir falar dele quando entrei na Faculdade de Letras do Porto. Nesse ano (1973), o curso de Românicas funcionava no edifício em frente ao hospital de Sto António. Era ainda tempo de ditadura e ao Professor Óscar Lopes não era permitido lecionar na Faculdade devido às suas ideias políticas. Felizmente a História corrigiu o erro.
    Um abraço
    M.

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    1. Felizmente!
      E felizmente, nesse tempo, cresceu e muito o investigador que todos reconhecemos. Não sendo nunca desejável o afastamento pelas razões aduzidas, houve a melhor resposta do Professor. Um exemplo a seguir, também por isso.
      Beijinho.
      VO

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