quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Jogos com a descoberta de um livro

    Foram hoje abertos os Jogos Paralímpicos - Londres 2012. 

    Porque há quem faça das fragilidades força, cabe reconhecer que há filhos de um Deus que não é  menor e, portanto, nas suas dificuldades, dão o exemplo de que os limites existem para serem superados. Daí o símbolo da bandeira paralimpíada, o 'Agito' - 'eu movo', na língua latina. 
    Na cerimónia de apresentação dos jogos deste ano, o núcleo do espetáculo apoiou-se na apresentação de um livro: o Admirável Mundo Novo (Brave New World, segundo o título original inglês), da autoria de Aldous Huxley. 
  Inspirado numa réplica de Miranda na obra shakespeariana The Tempest, o título desta narrativa publicada em 1932 tem mais de atrativo no que sugere do que na história dá a ler: propõe a hipótese de um futuro no qual as pessoas se encontram genética e psicologicamente predeterminadas, conformadas a viverem harmoniosamente segundo leis e regras sociais de uma sociedade estratificada, organizada por castas. 
    Bernard Marx é o protagonista, descontente consigo mesmo por, em certa medida, se apresentar como fisicamente distinto dos outros elementos da sua casta.
    Nessa medida, numa espécie de reserva histórica, onde algumas pessoas continuam a viver conformes a valores e regras do passado, Bernard encontra um jovem que irá apresentar à sociedade asséptica do seu tempo, como um exemplo de outra forma de ser e de viver.

    "... chorava por estar sozinho, por ter sido escorraçado, sozinho, para o mundo sepulcral dos rochedos e do luar. Sentou-se à beira do precipício. A Lua estava atrás dele; mergulhou os olhos na sombra negra da mesa, na sombra negra da morte. Tinha só que dar um passo, um pequeno salto... Estendeu a mão direita ao luar. Do golpe do pulso ainda corria sangue. Com intervalos de alguns segundos, caía uma gota, sombria, quase incolor na luz morta. Uma gota, uma gota, uma gota... «Amanhã, e amanhã, e ainda amanhã ...
      Tinha descoberto o Tempo, a Morte e Deus. 
      - Só, sempre só - dizia o rapaz. Estas palavras acordaram um eco doloroso no espírito de Bernard. Só, só... 
    Eu também - disse ele num sopro de confidência. - Terrivelmente só. 
     - Você também? - John espantou-se. 
     - Pensei que Além ... Quer dizer, Linda,dizia sempre que nunca ninguém estava só. Bernard corou, contrafeito. 
     - É preciso esclarecer - continuou, gaguejando e desviando os olhos - que devo ser um pouco diferente da maioria das pessoas. Se acontece às pessoas serem diferentes desde a decantação ... 
     - Sim, é isso, precisamente. - O rapaz aprovou com um sinal de cabeça. - Ser diferente condena a uma fatal solidão. E a um tratamento abominável. Acredita que eles me mantiveram absolutamente afastado de tudo? Quando os outros garotos iam passar a noite nas montanhas - sabe quando é, quando se deve ver em sonho qual é o nosso animal sagrado -, não consentiram que eu fosse com os outros. Não quiseram confiar-me nenhum dos segredos. O que não impediu que eu o fizesse sozinho - acrescentou. 
     - Estive sem comer cinco dias, e depois fui uma noite sozinho para as montanhas, além. - E indicou-as com o dedo. 
     Bernard teve um sorriso protector. 
     - E você conseguiu ver qualquer coisa em sonho? - perguntou. 
     O outro fez um sinal afirmativo com a cabeça. 
  - Mas não posso dizer-lho. - Calou-se uns momentos, para acrescentar em voz baixa: - Um dia fiz uma coisa que os outros nunca tinham feito: fiquei de pé contra um rochedo, num meio-dia de Verão, com os braços estendidos, como Jesus crucificado. 
     - Mas porquê? 
  - Porque queria saber o que representa ser crucificado. Suspenso ali, em pleno sol ... 

     Não imaginando as implicações, os problemas e conflitos decorrentes da sua decisão, a personagem Bernard Marx acaba por, em cumplicidade com o autor, fazer de Admirável Mundo Novo um aviso, uma chamada de atenção aos totalitarismos, um apelo à consciência dos homens face aos perigos que ameaçam a humanidade, caso não haja resistência ao sedutor canto da sereia que anuncia (falsas) noções de progresso.

      Mensagem relevante para qualquer sociedade que, nas suas diferenças, tenda a tratar todos por igual, sem reconhecer os limites de cada um ou fazendo destes um qualquer padrão de comportamento (a que nem todos podem chegar). Que os nossos atletas paralímpicos revelem como são especialmente diferentes, por mais que frequentemente se sintam "suspensos ali, em pleno sol".

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