domingo, 13 de abril de 2014

Dois homens para um poema

    Música, corpo e voz num palco-ancoradouro com cordas caídas do teto, tornadas amarras de um cais.

    Como que olhando para o porto, um engenheiro imagina o volante e o comando de um paquete que passa... Os primeiros versos fazem-se ouvir: "Sozinho no cais deserto, a esta manhã de verão /Olho prò lado da barra, olho prò Indefinido/...".


Vídeo com a declamação de Diogo Infante para alguns versos da "Ode Marítima", de Álvaro de Campos

    Metáfora para uma viagem ao interior do ser humano na recolha das sensações e na procura de “sentir tudo de todas as maneiras”. Assim surge a "Ode Marítima", de Álvaro de Campos, na representação que Diogo Infante compõe a partir da direção cénica de Natália Luiza.
    Na versatilidade de tons; no registo entre a reflexão imaginativa e a ânsia febril, maquinal, energicamente totalizadora, audaciosa e freneticamente esgotante; na selvageria em que tudo é sentido de mais para se poder continuar a sentir, houve o Campos metafísico, o Campos engenheiro sensacionista de amplo fôlego e de feroz e incoordenado grito (saudando a infração do convencional social e da escrita versificatória, marcadamente interjetiva e eufórica), o Campos nostálgico aposentado - variadas fases para uns, faces para outros. Para qualquer dos casos, uma totalidade avassaladora.
   Porque de teatro se trata, estiveram em palco as várias máscaras que o ortónimo produz(iu) e o heterónimo reproduz(iu). Porque de mar se cria o cenário, há ir e voltar da imaginação; há percursos, passagem, fluidez, movimento, deriva, fluxo e refluxo de marés, na aparente instabilidade e contradição (mais complementaridade de forças e sentidos dissonantes) que definem o ser humano na construção de uma identidade complicadamente presente a partir da sua ausência.

     No último dia do espectáculo no Teatro Nacional de São João, dois homens (Diogo Infante e João Gil) fizeram poesia - versos e música - em mais de uma hora de magia para e com um texto que Campos dedicou a Santa Rita Pintor. Poema dito nos seus mais de oitocentos versos magistralmente evocados e convocados na letra e no som, na nota e na luz que abrilhataram o ato de fazer, dizer, ser. No fim, apetece dizer como o poeta: "Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!"

4 comentários:

  1. Muito bom dia, Vítor!

    Não podia deixar de aqui registar breve comentário ao que foi parte (a melhor!) da tarde de domingo, no Teatro S. João.
    Tinha grandes expectativas relativamente a estas encenação e interpretação e, muito sinceramente, as ditas foram cumpridas em pleno. Muito bem "apanhada" a "Ode Marítima", da autoria do nosso engenheiro naval, em todos esses contrastantes momentos que são o que de mais humano há em nós e em que o mar (para além do que tu já referiste, também útero primeiro da vida na terra) se assume o "caminho" para essa viagem ao interior! Também aqui (um bocadinho, porque só em alguns desses mais de 800 versos) viagem histórica, pelo que nela há da construção da nossa identidade cultural: " Homens que primeiro vendestes escravos / que destes nomes a cabos..."(esta citação é livre, em parte na memória muito por influência dos Wordsong, que musicaram, manipulando levemente, alguns dos versos desta magnífica, ou "mar(e)nífica" obra)!
    E, já agora, fica o apontamento:
    https://www.youtube.com/watch?v=z1lunZZrNwo

    Enfim, gostei muito. Muito mesmo!...
    E, como isto de breve já nada tem, despeço-me, renovando virtualmente os votos de santa Páscoa para ti e para os teus!
    bjinho
    IA

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    1. Boa noite, Zá.
      Ainda bem que gostaste (muito... muito mesmo). Tudo obra de dois homens (para não falar do terceiro que deu origem ao texto). Boas palavras para boa música e boa representação.
      Boas Páscoa também para ti e para os teus.
      Beijinho.

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  2. Olá, Vítor
    Reitero a minha pena de lá não ter estado. Haverá, por certo, uma próxima vez - a partir da obra de Fernando Pessoa ou de outros Poetas. E Portugal bem deles precisa.

    O teu texto e o comentário da Zá ajudaram-me a entrar mais facilmente na atmosfera criada no Teatro S. João.

    Um abraço e feliz Páscoa
    Dolores

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  3. Olá, Dolores.
    Faltaste lá tu, por mais que te tornássemos presente e por mais que soubéssemos que terias adorado (convenhamos: se gostas de um leitor que te vai levando a 'Ode Triunfal' sempre com o livrinho à frente, que dirias de quem diz a 'Ode Marítima' só de memória e com arte de representar! SIm... eu sei... E o Diogo Infante!)
    Haverá por certo outras oportunidades.
    Força, amiga.
    Beijinho e uma Páscoa com tudo do melhor possível.

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