Noticiada ao final do dia, a despedida que há muito se anunciava.
Para o conhecido autor de narrativas que foi o colombiano Gabriel García Márquez, Nobel da Literatura em 1982, quase se pode dizer que hoje foi o dia da Crónica de Uma Morte Anunciada (1981) - não a do assassinato da personagem Santiago Nasar, mas a que naturalmente foi chegada aos 87 anos de vida do próprio escritor. Teminou, assim, a última página vivida, porque das lidas muitos outros poderão dar contínuos e intemporais desenlaces como se aquela se mantivesse como narrativa aberta.
Muito falado é o realismo mágico da escrita de Gabo ou Gabito, dessa fusão entre realidade e fantástico que se lê em "Surpresas de Agosto" (na coletânea Doze Contos Peregrinos, de 1992). Tudo parece passar pelo exemplo que a narrativa nos dá: refletir sobre a vida, não pelo que dela se vive, mas pelo que dela se recorda e pela forma como essa recordação é contada. Neste sentido, o autor de Cem anos de Solidão (1967) ou de O Amor nos Tempos de Cólera (1985) foi alguém que se entregou dominantemente à narrativa, da mais ficcionada àquela que nada tem de ficção (como, por exemplo, a jornalística ou periodista). É desta última que Portugal faz parte dos seus escritos, particularmente os que deram origem a três textos (duas reportagens e um ensaio) sobre o processo revolucionário de abril e o período do verão quente de 1975.
Sobre o ofício da escrita dos contos, dizia Gabo que "é tão intenso como o de começar um romance. Porque no primeiro parágrafo de um romance tem de se definir tudo: estrutura, tom, ritmo, extensão, e por vezes até mesmo o carácter de uma ou outra personagem. (...) o conto, em contrapartida, não tem princípio nem fim: pega ou não pega." (in Doze Contos Peregrinos).
Lembro que, pelos finais da década de oitenta do século XX, me "pegou" a história de um pequeno livro que tive a oportunidade de reler há cerca de três / quatro anos:
"Caminhou mais de cem metros para dar a volta completa à casa e entrar pela porta da cozinha. Teve ainda a lucidez bastante para não ir pela rua, que era o trajeto mais longo, entrando na casa contígua. Poncho Lanao, a mulher e os cinco filhos não tinham dado pelo que acabava de acontecer a vinte passos da sua porta. "Ouvimos a gritaria", disse-me a mulher, "mas pensamos que era a festa do bispo." Começavam a tomar o pequeno-almoço, quando viram entrar Santiago Nasar encharcado em sangue e segurando nas mãos o cacho das suas entranhas. Poncho Lano disse-me: "O que eu nunca pude esquecer foi aquele fedor a merda." Mas Argénida Lanao, a filha mais velha, contou que Santiago Nasar caminhava com a altivez de sempre, medindo bem os passos, e que o seu rosto de sarraceno com os caracóis revoltos era mais belo do que nunca. Ao passar em frente da mesa sorriu para eles, e continuou através dos quartos até à porta de trás. "Ficamos paralisados de susto", disse-me Argénida Lanao. Minha tia Wenefrida Márquez estava a escamar um sável no quintal da sua casa, do outro lado do rio, e viu-o descer a escadaria do cais antigo, procurando com passo firme o caminho para sua casa.
- Santiago, meu filho - gritou -, que tens tu?
Santiago Nasar reconheceu-a.
- Mataram-me, menina Wene - disse ele.
Tropeçou no último degrau, mas levantou-se logo. "Teve mesmo o cuidado de sacudir com a mão a terra que tinha nas tripas", disse-me minha tia Wene. Depois, entrou em casa pela porta de trás, que estava aberta desde as seis, e desabou de bruços na cozinha."
Eis o epílogo de uma narrativa que já no seu início anunciava estas últimas linhas de intenso mistério no trágico destino de uma personagem; mas, mais do que esta, era o facto, a ação narrada que constituía o núcleo central para todo o percurso de um narrador que quis fazer (uma) crónica e colheu as informações necessárias para o narrado. E tudo sendo sabido por antecipação, nada impediu que existisse e persistisse a fatalidade.
Entre o tanto que ainda tenho para ler (dele), houve várias experiências que pegaram e bem: nos contos, "A Sesta de terça-feira" (in Os funerais da mamã grande) e "Surpresas de Agosto" (in Doze Contos Peregrinos); nas narrativas mais extensas, Crónica de uma morte anunciada, Cem anos de solidão e O Amor em tempos de cólera. Vejamos se o tempo me dará a oportunidade de cruzar com mais alguns dos seus escritos.
Olá, Vítor
ResponderEliminarO texto transcrito é um exemplo da capacidade imensa de contar histórias. O leitor vai atrás das palavras porque nelas estão as personagens que se afiguram tão reais e tão próximas!
Há vários livros de GGM que gostaria de ler. Estão à espera de mais longos dias.
Um abraço
Dolores
Olá, Dolores.
EliminarÉ um dado que GGM tem o valor que os leitores e as instituições lhe têm dado, talvez pelo facto de essas personagens se cruzarem tantas vezes frente aos nossos olhos, como se a magia do real fosse o livro aberto em que também vivemos. As fronteiras do real e do ficcional por vezes são tão ténues...
Beijinho.