A um homem das Letras, formado em Direito e com bastante história na cultura e na política deste país.
Ao fim de 72 anos, que tenha sido assim a entrada nessa experiência que, por um lado, anula a existência; por outro, ganha (a morte) aquele que a vive (na passagem).
Ao fim de 72 anos, que tenha sido assim a entrada nessa experiência que, por um lado, anula a existência; por outro, ganha (a morte) aquele que a vive (na passagem).
soneto do amor e da morte
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
O poeta que (se) lê
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.
in Antologia dos Sessenta Anos (2002)
Em registo e tom completamente diferentes (mais risível, mais irónico, menos sentimental ou pungente), uma outra "morte" surge em novo soneto, escrito a pedido de Francisco José Viegas. Nele um sujeito poético coloca-se discursivamente diante de uma alma moribunda, numa coloquialidade capaz de desdramatizar e desconstruir o que possa ser trágico (qual ser que, à procura de entender o desconhecido, brinca estrategicamente com este último e o sentido que a própria vida lhe dá) e em jeito de evidente intertexto camoniano:
Retrato de Vasco Graça Moura, por Bottelho.
mudinha e quietinhapé ante pé há-de chegar a morte:
alminha vagabunda, enquanto ofegas
são as gotas da vida cabras cegas
na hora escapulida que te exporte.
alguém dirá que ao criador te entregas,
terás um atavio em lenho forte
e um necrológio do melhor recorte:
azar, lampejos, erros teus, refregas.
se da outra vida algum contacto póstumo
acaso se consente então a sós tu mo
dirás depois e se gostaste ou não.
mas se não for assim não ficas mal
mudinha e quietinha. por sinal,
há gente bem pior no panteão.
in Poesia reunida , vol. I (2012)
Entre a caracterização de culto, de poeta da renascença contemporânea (tanto pelo que estudou como pelo que escreveu ou traduziu) e os sinais da modernidade (também questionadora da tradição e da convenção canónicas), o galardoado com o Prémio Pessoa (1995) entregou-se à arte de Apolo e de Febo, da forma mais clássica, erudita e disciplinada à mais descondicionada e motivada no que a vida e a língua de hoje nos oferecem.
Fica o registo de dois poemas inspirados nessa hora que se abre (que se lhe abriu) ao tempo sem conta nem vitalidade.
Fica o registo de dois poemas inspirados nessa hora que se abre (que se lhe abriu) ao tempo sem conta nem vitalidade.
Não podia deixar de, à minha maneira, deixar aqui uma breve homenagem a este homem, a este poeta que, infelizmente, ainda não conheço como devia.
ResponderEliminarAinda há poucos meses, os seus poemas vieram ter comigo em ação de formação dedicada à poesia, e o que me espantou foi precisamente a seu lado mais moderno, mais irreverente... Também me impressionou a sua mestria bem patente no "acasalamento" entre as formas ou as temáticas clássicas (incluindo o recurso à mitologia) e as formas ou temáticas de um nova poesia, que amiúde se confunde (formalmente) com a prosa, recheada de registos mais coloquiais também eles acoplados com linguagem erudita. Esse seu lado mais jocoso também esteve bem presente na seleção textual que nos foi dada.
E como o poeta soube também elogiar a vida e a exaltação do amor físico, deixo aqui esta delícia (apesar de o final não ser lá muito feliz para o voyeur!):
"diana no banho"
via diana
pelo buraco
da fechadura.
era jacuzzi?
banho de espuma?
estava nua,
brilhava flava,
tinha o cabelo
puxado acima,
belas maminhas
à tona de água,
olhos fechados
deliciada,
os pés nas bordas
dos azulejos.
e marulhava
de leve a água,
num chape-chape
de mansa vaga,
como se a lua
mais perfumada
ali pousasse
na porcelana
enevoada.
logo se deu
por servo dela,
para cantá-la,
ensaboada,
e se pudesse
dar-lhe umas quecas
vezes sem conta,
fora da água.
logo por dentro
os seus desejos
o devoraram,
espreitador
desprevenido,
dos próprios cães
inda comido.
quanto a diana,
não deu por nada,
não o puniu,
não se vingou.
não precisava.
Vasco Graça Moura, (laocoonte, rimas várias, andamentos graves -2005), in Poesia Reunida, vol. 2 Quetzal, 2012, p. 451
E, com isto, despeço-me, desejando um excelente fim de semana!
beijinho
IA
Coitadinho do sujeito poético! Que final tão "canino"!
EliminarObrigado.
Beijinho.