domingo, 27 de abril de 2014

Aqui vive um poeta (e não só)

    A um homem das Letras, formado em Direito e com bastante história na cultura e na política deste país.

    Ao fim de 72 anos, que tenha sido assim a entrada nessa experiência que, por um lado, anula a existência; por outro, ganha (a morte) aquele que a vive (na passagem). 

soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer 
fica junto de mim, não queiras ver 
as aves pardas do anoitecer 
a revoar na minha solidão. 
O poeta que (se) lê
quando eu morrer segura a minha mão, 
põe os olhos nos meus se puder ser, 
se inda neles a luz esmorecer, 
e diz do nosso amor como se não 

tivesse de acabar, sempre a doer, 
sempre a doer de tanta perfeição 
que ao deixar de bater-me o coração 
fique por nós o teu inda a bater, 
quando eu morrer segura a minha mão. 

 in Antologia dos Sessenta Anos (2002)

     Em registo e tom completamente diferentes (mais risível, mais irónico, menos sentimental ou pungente), uma outra "morte" surge em novo soneto, escrito a pedido de Francisco José Viegas. Nele um sujeito poético coloca-se discursivamente diante de uma alma moribunda, numa coloquialidade capaz de desdramatizar e desconstruir o que possa ser trágico (qual ser que, à procura de entender o desconhecido, brinca estrategicamente com este último e o sentido que a própria vida lhe dá) e em jeito de evidente intertexto camoniano:
Retrato de Vasco Graça Moura, por Bottelho.
      mudinha e quietinha

pé ante pé há-de chegar a morte:
alminha vagabunda, enquanto ofegas
são as gotas da vida cabras cegas
na hora escapulida que te exporte.

alguém dirá que ao criador te entregas, 
terás um atavio em lenho forte
e um necrológio do melhor recorte:
azar, lampejos, erros teus, refregas.

se da outra vida algum contacto póstumo
acaso se consente então a sós tu mo
dirás depois e se gostaste ou não.

mas se não for assim não ficas mal
mudinha e quietinha. por sinal,
há gente bem pior no panteão.
in Poesia reunida , vol. I (2012)

        Entre a caracterização de culto, de poeta da renascença contemporânea (tanto pelo que estudou como pelo que escreveu ou traduziu) e os sinais da modernidade (também questionadora da tradição e da convenção canónicas), o galardoado com o Prémio Pessoa (1995) entregou-se à arte de Apolo e de Febo, da forma mais clássica, erudita e disciplinada à mais descondicionada e motivada no que a vida e a língua de hoje nos oferecem.

        Fica o registo de dois poemas inspirados nessa hora que se abre (que se lhe abriu) ao tempo sem conta nem vitalidade.

2 comentários:

  1. Não podia deixar de, à minha maneira, deixar aqui uma breve homenagem a este homem, a este poeta que, infelizmente, ainda não conheço como devia.
    Ainda há poucos meses, os seus poemas vieram ter comigo em ação de formação dedicada à poesia, e o que me espantou foi precisamente a seu lado mais moderno, mais irreverente... Também me impressionou a sua mestria bem patente no "acasalamento" entre as formas ou as temáticas clássicas (incluindo o recurso à mitologia) e as formas ou temáticas de um nova poesia, que amiúde se confunde (formalmente) com a prosa, recheada de registos mais coloquiais também eles acoplados com linguagem erudita. Esse seu lado mais jocoso também esteve bem presente na seleção textual que nos foi dada.
    E como o poeta soube também elogiar a vida e a exaltação do amor físico, deixo aqui esta delícia (apesar de o final não ser lá muito feliz para o voyeur!):

    "diana no banho"

    via diana
    pelo buraco
    da fechadura.
    era jacuzzi?

    banho de espuma?
    estava nua,
    brilhava flava,
    tinha o cabelo

    puxado acima,
    belas maminhas
    à tona de água,
    olhos fechados

    deliciada,
    os pés nas bordas
    dos azulejos.
    e marulhava

    de leve a água,
    num chape-chape
    de mansa vaga,
    como se a lua

    mais perfumada
    ali pousasse
    na porcelana
    enevoada.

    logo se deu
    por servo dela,
    para cantá-la,
    ensaboada,

    e se pudesse
    dar-lhe umas quecas
    vezes sem conta,
    fora da água.

    logo por dentro
    os seus desejos
    o devoraram,
    espreitador

    desprevenido,
    dos próprios cães
    inda comido.
    quanto a diana,

    não deu por nada,
    não o puniu,
    não se vingou.
    não precisava.

    Vasco Graça Moura, (laocoonte, rimas várias, andamentos graves -2005), in Poesia Reunida, vol. 2 Quetzal, 2012, p. 451

    E, com isto, despeço-me, desejando um excelente fim de semana!
    beijinho
    IA

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    Respostas
    1. Coitadinho do sujeito poético! Que final tão "canino"!
      Obrigado.
      Beijinho.

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