As aparências enganam, o que parece ser igual tem contornos diferenciados; não se pode colocar num mesmo saco o que é de qualidade distinta.
Servem estas primeiras linhas como pressuposto: não se force para ser estável o que não o é; não se tenha a classificação como fim em si mesmo.
Q: Olá, Vítor.
Desculpa, mas aqui vai mais uma dúvida. Tenho andado a consultar várias gramáticas, nomeadamente a da Mira Mateus, mas as dúvidas permanecem. Então, quanto à formação de palavras, como posso classificar "telefone", "telemóvel" e "televisão"?
R: O caso destas três palavras, aparentemente com um elemento comum (o radical grego 'tele'), não admite uma só possibilidade de resposta, pois está em causa a forma como este elemento morfológico erudito se foi transformando e adquirindo sentidos completamente distintos. Nesta linha, aliás, se entende que Celso Cunha e Lindley Cintra tenham resolvido a questão ao propor o processo de 'recomposição' (aquele no qual certos radicais gregos e latinos adquirem um sentido especial nas línguas modernas, distinto do etimológico), conforme se lê na Nova Gramática do Português Contemporâneo.
Trabalhar estes casos, em termos didáticos, só faz sentido quando se acompanha o estudo morfológico de uma atividade ou tarefa que implique, por exemplo, a consulta de dicionário com informação acerca da formação da própria palavra. Além de se operar um trabalho de consulta em obras de referência, contribui-se para o que sejam procedimentos de pesquisa e análise na busca de dados ou conhecimentos especializados. A perspetiva sincrónica que o comum dos falantes detém sobre a língua colherá dados mais consistentes com tais metodologias, nomeadamente as que o possam familiarizar com a complexidade de respostas.
A propósito de 'telefone' interessará saber que o termo entra na língua portuguesa pelos finais do século XIX, já formado e por influência do inglês 'telephone' ou mesmo do francês 'téléphone'. O que terá sido um empréstimo (anglicismo / galicismo) é, entretanto, aportuguesado no que em tudo se apresenta como uma palavra-base.
O mesmo sucede com 'televisão', proveniente do francês 'télevision'.
Naturalmente que estes dois casos têm um substrato grego na base formativa da palavra e que corresponde ao advérbio grego 'tele', com o significado de 'longe / à distância'. Daí haver quem defenda a classificação de palavras compostas para todas as que apresentam este elemento compositivo. Ainda assim, o que está em questão é o seguinte: não se trata de um processo de formação na língua portuguesa; antes a apropriação / adaptação de uma palavra que entra já formada no nosso idioma.
Por outro lado, 'telemóvel' é um exemplo de como a sua formação relativamente recente acaba por ganhar contornos completamente distintos dos anteriores. A consciência da segmentação '[tele][móvel]' não é de natureza etimológica: não é um móvel longe ou à distância, mas sim um telefone móvel. Portanto, há o resultado da redução ou truncação de uma palavra [tele(fone)], à qual se junta outra. Trata-se de composição, sim, mas sem obedecer às descrições estabelecidas pelo Dicionário Terminológico (composição morfológica / morfossintática), por não caber nos mecanismos de sistematicidade associados ao estudo da morfologia.
Mais um caso, portanto, para a discussão da especialidade, para a possibilidade de confronto de perspetivas, e que não se compagina com respostas que escapem ora à consideração de processos irregulares na formação de palavras (com cenários combinatórios desses processos) ora à existência de uma dimensão como a lexicalização (a enquadrar a explicação de casos atípicos, assistemáticos como o do 'telemóvel').
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