Muito se tem falado de Agustina Bessa-Luís e do centenário do seu nascimento.
Quando em 1995 lia Os Meninos de Ouro, fazia-o na descoberta não da exemplaridade de uma personagem masculina, mas de um menino do Douro cujo percurso servia para traçar não o papel forte que poderia (ou, em certa medida, viria a) ter, mas a limitação, a fraqueza, a raiz arrancada à força da natureza, da terra, do Norte e das grandes famílias rurais nortenhas.
Publicado em 1983, o foco romanesco começa por estar depositado em José Matildes, um político do período pós-revolucionário, evocando semelhanças com a figura de Francisco Sá-Carneiro; com o sentido messiânico de que a figura se viria a revestir; com uma vida a espelhar dificuldades relacionais e sentimentais. Contudo, é a afirmação do feminino que se virá a assumir no romance, roubando-se ao (anti)herói o protagonismo narrativo. Assim se salienta Rosamaria, figura duriense trocada no casamento, por não ser prefigurada como a grande mulher que se diz estar por trás de um grande homem. A força desta última vinga e assenta num orgulho firmado na seriedade e na luta enquanto razões de existência e de identidade construídas na interioridade humana.
Este lado matricial da obra de agustina traduz o sublinhar de uma energia, de uma força, de uma fonte, de uma geografia e de uma terra (todas femininas) que veem na Natureza (genesíaca e venusiana) valor maior. Residem aqui a importância e a coerência da epígrafe a abrir a obra: "A Natureza, ela mesma é a doença, e só ela sabe o que é a doença" (Paracelso), recuperando-se com ela o princípio decisivo de toda a cura, encontrada no interior da própria Natureza.
Neste arrazoado, lembro-me de ter sublinhado, logo nas primeiras páginas, o seguinte:
"Diferente do que pensam os economistas, uma área produtiva não se destina apenas a ser rentável; sobretudo é uma área onde a vida se condensa e se transmite. Representa uma condi-ção histórica que se reflecte e se repercute, pondo a tónica principal não no lucro, mas sobretudo na circulação da energia, que implica o lucro também, mas que acentua a persuasão da inteligência, do investimento moral."
Numa espécie de hino à terra e à natureza, finda o romance com uma referência a
"... um lírio azul, planta endémica e maravilhosa. (...) Penso nela como sendo um olhar que a terra ergue das suas profundezas e que nos empresta para que os segredos novos nos sejam apontados. Pois é a terra quem nos persuade aos caminhos que ela tem ainda invioláveis. Um lírio azul que parece perdido nas alturas roqueiras é talvez mais do que a Iris boissieri; é um olhar que nos vigia, passe a candura poética."
Hoje cito-a, porque há pensamentos que, entre os valores ecológicos, telúricos e panteístas (com algum paganismo genesíaco e venusiano) da escrita literária, deviam ser relembrados na vida de todos nós, para que à nobre "raça humana" não falte a "Velha amiga que é a terra" nem a interioridade que nos define - a natureza humana ou da humanidade.
Agustina vai ficar. Ela, por sua birra inteligente contra a normalidade, certa embirração que a fazia andar ao contrário dos outros e ser inesperada nas opiniões, algo trocista e bem humorada. Os livros, porque são na verdade únicos. Dela se contarão histórias e ditos, que os tem. Os livros, esses, ficam para contar o mundo como a escritora o via e serão os de mais longa memória.
ResponderEliminarVerdade. Há uma força de sagrado feminino e de profundidade humana que chegam a desconcertar o leitor, de tão inesperados que se revelam. Está aí a sua singularidade de escrita, a par de uma ambiência que torna os(as) infortunados(as) nos(as) maiores heróis (heroínas) das histórias.
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