segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Uma série para as segundas

       À segunda-feira, na RTP1, garantem-se noites de qualidade televisiva.

      Por algumas semanas (oito), enquanto durar a série O Nome da Rosa, baseada no romance de Umberto Eco (1980), haverá a oportunidade de acompanhar o percurso de Adso (de Melk) e Guilherme (de Baskerville) - personagens que vivenciam uma série de crimes num mosteiro beneditino do norte italiano, em plena época da Baixa Idade Média.
       Se a versão fílmica de Jean Jacques Annaud (1986) projetou a obra a ponto de a tornar um clássico (cruzando romance investigativo com ação detetivesca, fanatismo religioso, luta pelo poder e pelo acesso ao saber, confronto do sagrado com o profano, erotismo, crime e violência em contexto medieval), a série da RAI FICTION (2019) adiciona aos ingredientes anteriores o pormenor, os grandes planos e a qualidade de imagem, a par da brilhante atuação do protagonista (John Turturro) e da realização de Giacomo Battiato.

O 'quarteto' maravilha da série, sem Jorge de Burgos: 
da esquerda para a direita, Bernardo Gui, o ganancioso Abade, William de Baskerville e Adso de Melk

      Tal como na obra de Eco, Adso apresenta-se como narrador, um monge já idoso a rememorar o percurso feito, enquanto jovem, junto do afável, sensato, perspicaz e enigmático mestre Guilherme de Baskerville (John Turturro), um monge franciscano com a argúcia típica dos bons detetives aliada a uma fé cristã humanista. Assim se reconstrói o experienciado na base da memória e do que ela possa recuperar, passado muito tempo:

      "No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto a Deus e o dever do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único evento imodificável do qual se pode confirmar a incontrovertível verdade. Mas 
videmus nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de cara a cara, manifesta-se deixando às vezes rastros (ai, quão ilegíveis) no erro do mundo, tanto que precisamos calculá-lo, soletrando os verdadeiros sinais, mesmo lá onde nos parecem obscuros e quase entremeados por uma vontade totalmente voltada para o mal.
    Chegando ao fim desta minha vida de pecador, enquanto, encanecido, envelheço como o mundo, à espera de perder-me no abismo sem fundo da divindade silenciosa e deserta, participando da luz inconversível das inteligências angélicas, já entrevado com meu corpo pesado e doente nesta cela do caro mosteiro de Melk, apresto-me a deixar sobre este pergaminho o testemunho dos eventos miríficos e formidáveis a que na juventude me foi dado assistir, repetindo verbatim quanto vi e ouvi, sem me aventurar a tirar disso um desenho, como a deixar aos que virão (se o Anticristo não os preceder) signos de signos, para que sobre eles se exercite a prece da decifração.
   Conceda-me o Senhor a graça de ser testemunha transparente dos acontecimentos que tiveram lugar na abadia da qual é bem e piedoso se cale também afinal o nome, ao findar do ano do Senhor de 1327 em que o imperador Ludovico entrou na Itália para reconstituir a dignidade do sagrado império romano, segundo os desígnios do Altíssimo e a confusão do infame usurpador simoníaco e heresiarca que em Avignon lançou vergonha ao santo nome do apóstolo (falo da alma pecadora de Jacques de Cahors, que os ímpios honraram como João XXII).
     Quem sabe, para compreender melhor os acontecimentos em que me achei envolvido, é bom que eu recorde o que andava acontecendo naquele pedaço de século, do modo como o compreendi então, vivendo-o, e do modo como o rememoro agora, enriquecido de outras narrativas que ouvi depois - se é que a minha memória estará em condições de reatar os fios de tantos e tão confusos eventos."

Trailer oficial da série televisiva, realizada por Giacomo Battiato

       Mestre e pupilo veem-se, então, envolvidos numa série de assassinatos, que, para muitos, é obra demoníaca; todavia, e afinal, nada mais é do que fruto de uma mente perversa, que exerce influência no mosteiro (em particular, na sua biblioteca). Na perversão e depravação de quem não olha a meios para atingir fins, a "cegueira" pelo poder não é muito distinta da hipocrisia e da egolatria fundamentalista do inquisidor Bernardo Gui (Rupert Everett), que faz questão de punir qualquer suspeito de heresia (nomeadamente William de Baskerville).

    O nome da Rosa -  título simbólico que, na época medieval, expressava o enorme poder das palavras. Daí a centralidade de uma biblioteca na história e o universo das obras proibidas pela Igreja (nomeadamente, A Comédia, de Aristóteles), que Jorge de Burgos pretende dominar. Uma metáfora e reflexão para o poder e controlo no acesso à informação; para a transição de mundividências (do pensamento obscuro, místico e pretensamente religioso medieval para um raciocínio mais esclarecido, renascentista, humanista); para o tempo que tudo leva, dele restando apenas as palavras, os nomes (porque, da rosa de outrora, fica apenas o nome).

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