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sexta-feira, 3 de abril de 2020

Revendo 'A Lista de Schindler'

     Foi dos filmes mais marcantes do final do século XX, obra-prima de Steven Spielberg.

    Já há um tempo andava com vontade de rever este filme. As interpretações de Liam Neeson (Oskar Schindler), Ben Kingsley (o contabilista judeu Itzhak Stern) e Ralph Fiennes (o comandante alemão Amon Goeth) são marcantes, bem como produção feita a preto e branco maioritariamente (só aqui e ali com uma nota de cor). No enredo, situado entre 1939 e 1945, revê-se a Polónia nazi, o genocídio dos judeus, a Checoslováquia da fábrica e do campo de concentração de Schlinder (Brünnlitz). Em mais de três horas, retratam-se, de forma mais ou menos ficcionada, episódios de vida de um Justo entre as Nações mais o périplo de um povo que, na II Grande Guerra, viveu mais uma etapa trágica na sua diáspora.

Compacto de A Lista de Schindler (1993)


    Inspirado no livro homónimo de Thomas Keneally, é seguramente um dos filmes da minha vida, desde que há mais de vinte e cinco anos ficaram imagens fortes como a da irritante criança loura que assiste ao desfile de judeus nas ruas polacas e grita "Goodbye, Jews!"; a do professor de História e Literatura que não é considerado "trabalhador essencial", mas acaba por o ser quando diz ser "polidor de metais"; a dos soldados alemães que discutem se a música tocada por um outro é da autoria de Bach ou de Mozart, enquanto ocorre o fuzilamento de vários judeus; a da criança vestida de vermelho, que se esconde do exército nazi, mas acaba junto de outros corpos; a do intolerável comandante Amon Goeth a fazer "tiro ao alvo" da sua varanda para alguns judeus que se encontram no campo de concentração de Płaszów; a de crianças que se escondem nas sanitas conspurcadas, na esperança da sobrevivência; a de uma outra criança insuportável a simular, com a mão, o corte de pescoço para as mulheres que chegam ao campo de Auschwitz-Birkenau; a do banho ameaçador das mulheres numa câmara que, em vez de água, bem podia ter sido de Zyclon B; a do comovente Schindler a chorar por não ter conseguido salvar mais judeus. O percurso deste povo é representado na pior das agonias.
     Mais significado ganha o filme quando, apesar da distância no tempo, se contacta com os locais nele retratados: a fábrica de Schindler e a judiaria, em Cracóvia; o campo de Auschwitz-Birkenau.

Praça Bohatérow Getta (ou dos Heróis do Gueto), no distrito de Podgorze, 
no gueto judaico de Cracóvia, com Monumento das Cadeiras, diz-se, pago por Roman Polanski
 (local onde eram selecionados os judeus para os campos de concentração) - Foto VO

Fachada da fábrica de Schindler, em Cracóvia - Foto VO

Janela à entrada da Fábrica de Schindler 
(com fotos e nomes dos trabalhadores judeus) - Foto VO 

Monumento Judeu junto ao bairro Kazimierz, onde este povo vivia na cidade, antes da II Guerra
(colocação de pedras como prática nas sepulturas judaicas, lembrando a época do Antigo Testamento) - Foto VO

Pórtico da Sinagoga Remuh, ao fundo do bairro Kazimierz
(nome a lembrar o rei Casimiro, fundador do espaço judaico na Baixa Idade Média) - Foto VO

    O bairro Kazimierz foi local da gravação cinematográfica, tendo-se, a partir desta última, conseguido a recuperação do espaço (dado o interesse turístico que o tem marcado). Quem por ele passeia não deixa de sentir o peso da História, os sinais da tragédia, o espírito de uma revolta contra quem pôde alguma vez defender o genocídio judeu, o holocausto.
      Na confluência de sentimentos, quando percorri estes locais, dizia para comigo que tinha de rever A Lista de Schindler. Entre a revolta do vivenciado com as políticas antissemitas e a admiração por um homem, no meio de outros iguais, dominou um sentido de compaixão e de gratidão muito forte. A cena final do filme (homenagem dos judeus salvos por Schindler junto à campa, em Jerusalém, no Monte Sião) é a representação maior da figura dessa gratidão, uma espécie de pacto ou princípio que, aliás, atravessa toda a película, ainda que numa multiplicidade de sentimentos bem difusos: o de Schindler para com Stern, no reconhecimento do trabalho deste; o de Amon para com Schindler, enquanto parceiros de negócios pautados por suborno e contrabando; o de Schindler para com uma judia, beijando-a num dos aniversários dele, quando lhe é ofertado um bolo; o dos judeus para com Schindler, à hora da rendição alemã incondicional, oferecendo-lhe um anel a partir de um dente de ouro fundido, a partir dos bens de muitos, e trabalhado à hora do final da guerra.
        Hoje o Ser Humano não pode deixar de estar, quase por ironia, agradecido a um partidário inicialmente nazi, o único que tem sepultura em território judeu, pelos mais de mil que ajudou a salvar.

      De oportunista interessado em ganhar dinheiro a herói tomado pela humanidade (sem escolha) ao salvar judeus, Oskar Schindler fica para a memória de muitos como um dos protagonistas da Sétima Arte, num filme que recebeu sete óscares, um deles o de Melhor Filme (1994). E foi tudo, na base inspiradora, tão real!

terça-feira, 31 de março de 2020

E vão passando os dias

       As línguas têm destas coisas associadas aos dias.

      Com a nova rotina dos dias, ao final de mais de uma quinzena, prossegue o tempo da quarenta.
      Na língua inglesa, há já quem conte os dias naquilo que têm de mais indiferenciado:

A indiferenciação dos dias - só com 'day' (by day)

      É todos os dias o mesmo!
    Já na língua portuguesa, excetuam-se o sábado e o domingo. De resto, fica tudo "feira" (sem segunda, nem terça, quarta, quinta ou sexta). Talvez por isso algumas pessoas teimem no passeio e nos encontros, sem distanciamentos.

      Fica a "feira" e perdem-se as horas da oração. Os nossos dias da semana parecem mais divertidos, mesmo em tempos de contenção.

domingo, 15 de março de 2020

Beleza natural em tempos críticos

       Apartado do mundo, por uma ameaça que anda por aí à solta, fui ao encontro  do sol, do céu, do mar...

      Quando quase tudo se recolhe, pelo frio e pelo crescente escurecer, vou ao encontro do resto de sol que paira no céu enevoado, a ameaçar chuva.
        Registo, progressivamente, o momento:

Quando ainda o céu fogueava com o sol ensombrado (Foto I - VO)

Quando as nuvens ensombravam a luz do fim de tarde (Foto II - VO)

Quando a luz deu lugar a uma nuvem de ameaçadora chuva (Foto III - VO)

       Hoje, ver o sol ocultando-se numa e noutra nuvem foi como participar num jogo de esconde-esconde, até que, cansado e rendido, esse companheiro do dia se deixou cair num leito oceânico que foi, é e sempre será vida.
        No meio de tanto sinal de desgraça e de arautos do fim do mundo, prefiro as cores e o silêncio naturais, tão multiformes e plásticos, como de pintura feita a traço e guache, à espera de que toda a miséria e todo o infortúnio sequem, para renovação da felicidade na humanidade.
        É tanto  o discurso sinistro, trágico que é imperativo fugir da deprimência. Em tempos críticos, são necessárias alguma serenidade, alguma racionalidade (quem sabe uma nota de sorriso, uma gargalhada), até para poder tomar-se decisões o mais sensatamente possível. Para alarmismo e dramatismo, já bastam os vividos por quem realmente sofre ou trata do problema que o Covid-19 trouxe a todos. A todos, e bem para lá de qualquer país ou de alguém que ache que cantar o hino nacional vale para animar quem quer que seja. Pedissem-me para bater palmas a quem cuida dos que sofrem e fá-lo-ia pela segunda vez, numa varanda para a rua e numa noite como muitas as que têm vindo a invadir o espírito e a vida dos seres humanos. Ainda assim, há que combatê-la(s), ir em frente, na busca da luz que mitigue ou neutralize o medo.

    E, no entanto, ele move-se (o sol); ela também (a terra). Possamos nós acompanhar e testemunhar esses movimentos.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

75 anos depois

      Para futura memória e para que não se repita a história.

     Na sequência do visionamento do documentário "Depois de Auschwitz", na RTP1, há memórias que se recuperam de um passado, o estudado e o vivenciado.
      Saber o que se sucedeu há 75 anos, pelos livros e registos audiovisuais, é descobrir uma forma de recuperar a liberdade e a visão da dignidade humana que muitos, anos antes, ficara comprometida, ao serem cometidas atrocidades impensáveis. Os testemunhos do tempo vão sendo revelados, partilhados (e, ainda assim, há quem assuma que o holocausto não existiu) e o espanto revoltado não cessa!
   Visitar Auschwitz e Birkenau, depois de já ter passado pelo campo de concentração de Sachsenaushen, é definitivamente uma outra visão dos sinais dos factos. O último impressiona; o primeiro perturba; o do meio (sem qualquer virtude) faz abominar, odiar quem tenha pensado em tal espaço com propósitos tão execráveis.

Entrada do campo de concentração de Auschwitz ("O trabalho liberta") I - Foto VO

 Entrada do campo de concentração de Auschwitz ("O trabalho liberta") II - Foto VO

 Uma janela para os muros, os postes e as redes eletrificados - Foto VO

  O muro dos fuzilamentos - Foto VO

  Os fornos de um crematório - Foto VO

  As camas de cimento e tábuas rompidas para os sobreviventes - Foto VO

       De Auschwitz, ficou-me a memória de entrada no campo, quando um grupo de judeus cobertos com o seu 'talit' branco, com a estrela azul de David, mais o 'kipá' branco na cabeça, solidéu tradicional, orava em círculo. O respeito deles e nosso por eles impunha-se. Não foi o único povo a sofrer as atrocidades nazis, mas, na sua diáspora, tem o segundo quartel do século XX  como um dos seus períodos mais negros e a Humanidade como espectadora de uma perseguição desmesurada, de um genocídio atroz. 
       Uma nota informativa, para os turistas / visitantes, dá conta de que os primeiros prisioneiros foram polacos; seguiram-se os prisioneiros de guerra soviéticos, os ciganos e inúmeros deportados de outras nacionalidades. A partir de 1942, este tornou-se no local de morte maciça nesse plano nazi de exterminar o povo judeu que se encontrava na Europa. A taxa de mortalidade era tão elevada que a única forma de identificar os corpos era através de um número do campo tatuado no corpo (antebraço, braço, perna ou peito), mesmo quando muitos homens, mulheres e crianças eram praticamente dizimados à chegada, tanto em Auschwitz como nas câmaras de gás de Birkenau. Mortos nas câmaras ou em qualquer ponto do campo, feitos cheiro nauseabundo ou pó nos crematórios, marcados de dor e humilhação insanáveis no corpo e na alma.
      Hoje, o fim chegava - há 75 anos - com o exército vermelho a libertar os prisioneiros que não haviam sido deslocados pelos alemães para o interior da Polónia. Um massacre e um morticínio que deixaram marcas aos que conseguiram sobreviver e assistiram à eliminação de inúmeros. 
     Tudo começou menos de uma década antes (seis anos apenas), com discursos de intolerância, de supremacia de raças, de desprezo por quem interessava tirar do caminho para poder usufruir daquilo que deixavam e que alguém tinha instruções de recuperar (desde os dentes de ouro a tudo o que pudesse ser aproveitado).

     Uma história que não pode ser apagada, pela intolerância que foi, pelo excesso de poder que revelou, pela desumanidade que alguns humanos foram capazes de criar e outros de aceitar ou silenciar. Demasiado pesado para não ser divulgado.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Como se dúvidas houvesse

      As imagens são muito significativas da irracionalidade reinante nestes dias

      O que víamos há tempos em território americano chegou à Europa,... a Portugal,... a Matosinhos - corre o povo em cardume, direitinho ao anzol (que não vê), pensando no retalho de pano lindo que, vaidosamente, vai poder mostrar a todos:

Black Friday em Matosinhos (à moda de USA)

     Ainda há dias falava, nas aulas, sobre o Black Friday (que mais deve ser Black Days, já que nem de Friday nem de um só dia se trata), tudo a propósito de Vieira e do Sermão de Santo António. As semelhanças com a atualidade são inevitáveis, não fossem os peixes (seduzidos por um retalho de pano) metáfora dos homens (que se iludem com as falsas promoções).


     Outra coisa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?!
     Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que chama de Cristo e de Santiago; e os homens por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.
     Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos.
     Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe passou a era e não têm gasto e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
     Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir, vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixarde-vos enganar ou deixarde-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano?
     Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.

Declamação e representação (adaptada) do sermão vieirino
por Marcelo Lafontana

       A atualidade e contemporaneidade da reflexão, com as devidas adaptações, impõem-se. Não se tratando de canibalismo puro, pouco falta. Talvez uma antropofagia social. Só porque há mais uns tostões, matam-se nas filas e nas multidões.

      O que foi escrito para o século XVII é visionário para os nossos tempos. Apetece dizer com Vieira que, ao Homem, parece ter sido dada a razão sem o uso; há animais que parecem ter mais o uso sem a razão. "Não é isto verdade? Ainda mal!"

sábado, 3 de agosto de 2019

'O Rei Leão'... com reflexão de inclusão?

      O remake de 'O Rei Leão' (2019), dirigido por Jon Favreau, não faz esquecer a versão animada da Walt Disney de 1994.

      A expectativa era naturalmente grande. O resultado final é sempre condicionado pela experiência de quem viu o original (já com um quarto de século, dirigido por Roger Allers e Rob Minkoff, com as melodias de Elton John e Tim Rice). O impacto foi maior então; hoje, é sempre uma versão com um visualismo mais natural / real, numa sincronia de movimentos animais e vozes humanas que captam a atenção do espectador, para além da cor das paisagens, da mensagem da intriga e do registo de vitória e felicidade finais para o que é, e sempre será, uma metáfora do ciclo da vida.

       Trailers (montagem) do remake de Jon Favreau

      Sem o efeito total de surpresa, mantém-se algum do encanto da mensagem: um hino ou a apologia dos valores da vida (feliz). Os conflitos que esta propõe, a morte que a finda ou complementa, o confronto com os medos, a sede de poder, o oportunismo e a hipocrisia que marcam a humanidade estão bem representados nesta história. Nem tudo é o virtuosismo de Simba e Nala, Mufasa e Sarabi; nem só de Pumbas, Timons e Zazus se compõe a comédia e a atitude 'Akuna Matata' (diga-se, os problemas são para esquecer), que nos fazem experienciar instantes de felicidade. Há ainda cicatrizes (como a de Scar) e hienas (mais ou menos perversas e ameaçadoras) que complicam o ciclo da existência.
       No final da película, fica sempre a sensação de que estas últimas eram escusadas. Não se perde o ciclo da virtude (pelo menos, em termos da ficção), mas é caso para perguntar se vale a pena tanta perda e tanta dor decorrentes de forças malévolas como as de Shenzi e Scar, ou do egoísmo e distanciamento que outras hienas exploram de forma hilariante, mas não menos crítica. A lição do altruísmo, da amizade, da solidariedade, do amor e da família compagina-se com a do cinismo, do perigo, da falsidade e da traição, quase como se fossem duas faces de uma só moeda.
     Quando no fim se retoma o início (com a apresentação à comunidade do sucessor de Simba), prevê-se e prenuncia-se um futuro apaziguador, mais justo, mais integrador. A diversidade animal e o equilíbrio natural afirmam a legitimidade do rei, mas é bom lembrar que as hienas não deixam de existir. É certo que afastam "Scar", mas a barriga e o apetite delas não são facilmente saciados. 

       Não sei que inclusão poderão estas hienas ter, senão a da sombra (por mais que dê valor à luz) ou a do mal (por mais que sublinhe a necessidade e a vantagem do bem). Não as desejo, senão bem longe de mim.

domingo, 14 de abril de 2019

Um roteiro com sinais de tragédia

         O dia de hoje trouxe à consciência o sofrimento de há quase oitenta anos.

       O percurso pela Cracóvia da diáspora judaica é um misto de emoções: o da satisfação de uma viagem em boa companhia; o da mágoa de encontrar sinais de um tempo feito de sofrimento de um povo e do imperialismo perverso e antissemita de um outro.

 
Roteiro pelo bairro de Kazimierz - Cracóvia (Vídeo e fotos VO)

         É a oportunidade de calcorrear cenários hollywoodianos (A Lista de Schindler teve neste espaço algumas gravações, nomeadamente nas cenas dos judeus a deixarem as suas casas e a serem concentrados neste bairro medieval), entretanto refeitos com as marcas das memórias e dos restauros, a procurar recuperar de um passado terrível vivenciado no século passado.
       Kazimierz foi constituída no século XIV pelo rei Casimiro III da Polónia (Kazimierz Wielki), tendo-se tornado um local onde os judeus se estabeleceram ao longo de vários séculos em sã convivência com os polacos. Aí se podiam encontrar pontos comerciais, casas e sinagogas para uma população judaica que chegou a atingir 80 mil habitantes, um terço do total da área urbana. Com a invasão nazi, o número acabaria por ser substancialmente reduzido, largo que ficou no das vítimas dos campos de concentração.
       Atualmente, a recuperação do local tem atraído polacos e judeus, como que numa retoma do ambiente anterior à invasão alemã.

         Cracóvia, na sua beleza, tem a densidade e o peso de uma história triste para a Humanidade.
        

quarta-feira, 22 de março de 2017

Dia Mundial da Água

      Depois da Primavera e do dia da poesia,...

    Chega o "Dia Mundial da Água", criado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, desde 1993, com o intuito de consciencializar publicamente para a proteção, conservação e desenvolvimento dos recursos hídricos.
   Da importância dela para a vida já muito se disse e daí decorrem as múltiplas significações e simbologias que adquire na arte, em particular, e na vida, em geral. Meio de fecundação e de purificação, de regeneração de forças (espirituais, anímicas, físicas), de regresso às origens, de fluidez do próprio tempo, a água é tudo isto nas letras que nos são dadas a ler; nas cores que cobrem as telas; no líquido que nos escorre pela pele.
      Pela relação que mantém com todo o ser humano, é também fonte de memórias, límpidas ou baças, alegres ou sofridas conforme reflete os bons ou maus momentos da vida. Assim se pode entender "The Water", musicada e interpretada pelo duo britânico Hurts (formado pelo teclista Adam Anderson e o vocalista Theo Hutchcraft):

Vídeo "The Water" em concerto por terras russas

     Do álbum "Happiness" (2010), fica a letra dessa 'água' que, no seio da vida e da felicidade, não deixa de espelhar também o receio de se estar / entrar numa relação pelo que já possa ter havido de dor no passado. O ciclo da água pode manter-se, mas impõe-se o cuidado de não se fazer ninguém perder naquele que também pode ser um leito de morte, onde os anjos também gritam.

       THE WATER

Innocent, they swim
I tell them 'no'
They just dive right in
But do they know?

It's a long way down
When you're alone
And there's no air or sound
Down below the surface

There's something in the water
I do not feel safe
It always feels like torture
To be this close

I wish that I was stronger
I'd separate the waves
Not just let the water
Take me away

There was a time I'd dip my feet
And it would roll off my skin
Now every time I get close to the edge
I'm scared of falling in

Cause I don't want to be stranded again
On my own
When the tide comes in
And pulls me below the surface

      ... fica  esta nota de música, neste dia da água que, entre o hídrico e o simbólico, também se faz de fluxo e de ondas da vida.

domingo, 29 de janeiro de 2017

Silêncio

    Não é ordem nem convite; antes constatação ou necessidade.

   Inspirado na obra do escritor católico japonês Shusaku Endo (1966), Silêncio é um filme a não perder pelas imagens, pela representação e pela referência cultural, mais os dilemas e desafios desconcertantes que propõe. Realizado por Martin Scorsese, retrata a epopeia nessa diáspora de jesuítas portugueses pelas missões no Oriente (nomeadamente no Japão) no século XVII. 
    No contexto da apostasia (negação da fé) e do inquietante reencontro de dois padres (Rodrigues e Garupe) com um terceiro (Ferreira) - que havia sido mentor na formação cristã deles e de muitos outros e que parecia ter renegado tudo o que ensinara -, o espectador confronta-se com os limites da fé e a necessidade (mais ou menos forçada) de abdicar de tudo aquilo em que se acredita quando o martírio (próprio ou dos outros) surge:

Trailer legendado do filme "Silence", de Martin Scorsese

     O silêncio de quem assiste às atrocidades, ao martírio e ao sacrifício pode ser expressão de impotência; o silêncio, por não haver resposta ou por se instalar a dúvida, constitui-se mais como um desafio, uma oportunidade de (re)construção para o bem comum, se não der lugar à espera do que apenas está para além de cada um de nós.
     Voltados para a educação, a catequização, a divulgação da palavra de Deus em terras nipónicas, o silêncio marca o percurso dos jesuítas representados, colocando-os sob o dilema surgido entre a crença, a fidelidade à fé e a sobrevivência dos próprios e dos que os seguem. A procura da resposta implica a questionação, a reflexão, inclusive alguma adaptação às situações. Isto é particularmente demonstrado no caminho feito pelos padres Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), tornados testemunhos de uma resposta para uma realidade que, por norma, se revela incompreensível, estranha, "estrangeira" diferente.
      Procurar apenas no exterior a resposta para os dilemas vividos não é a solução. Esta passa pela interioridade, pelo silêncio, pela consciencialização de que o bem ao próprio e aos outros admite ir ao encontro de algo / de alguém; afastar de modelos / exemplos de partida; estar atento a fatores contingenciais e a processos de enculturação, de tradução de práticas e crenças que não podem deixar de se focar no bem do outro e do que ele tem de distinto.
     A articulação de Silêncio e A Missão (1986), de Rolland Joffé, são inevitáveis, no que ao missionarismo diz respeito, bem como à posição frágil a que os jesuítas missionários acabaram por ficar votados quando confrontados com o poder, nomeadamente o da própria Igreja; Silêncio vai ao ponto de explorar as forças e as fragilidades que o Homem vive na sua fé. A missão aqui é a do próprio ser humano, que necessita de procurar, encontrar em si mesmo, no silêncio e na ausência, a resposta e a presença do bem. A fé por nós acolhida é em nós que se (re)constrói, sem que ela acabe negada - e, assim, a luz brilha na escuridão.

    À entrada, o título do filme até podia convergir com o pedido do silêncio; no final, não há a banda sonora usual, nem a necessidade de se saber quem canta o tema principal. Há o silêncio que diz e significa muito mais do que qualquer outro som, ruído.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Ontem foi dia "interestelar"

      Mais um filme para abordar a questão apocalíptica da terra...

      Este é o assunto de apresentação para "Interstellar", filme de Christopher Nolan, que encontrou no cenário da ficção científica e no contexto apocalíptico do planeta terra (dominada por pragas, nuvens de poeira, doenças, fugas de habitantes) mais um pretexto para ir em busca da esperança; construir a base de uma crença humana capaz de se afirmar além do material visível; compor um hino à vida e à(s) possibilidade(s) ilimitada(s) do(s) saber(es) e do(s) afeto(s).
     Numa história de amor, de família - onde os laços mais estáveis dos sentimentos permitem ir além do tempo e do espaço alcançados pela nossa consciência -, os limites, por mais que estes existam, nunca são um fim em si. Constroem-se pontes entre o perigo e a salvação; um planeta devastado e uma estação (Cooper), construída à imagem e semelhança do paraíso que ele podia ter sido; a distância e a proximidade; a crença e a realidade.


    Na força da crença e da potencialidade que pode evitar a extinção da Humanidade, bem como na busca de um mundo onde a vida possa ter continuidade, um engenheiro viúvo (Cooper, interpretado por Matthew McConaughey) vive o difícil dilema de participar numa viagem perigosa (de retorno mais do que duvidoso) ou de permanecer junto dos dois filhos.
   A inevitabilidade do fim é um desafio, com fortes motivações para que este último possa ser superado.
     Vai no mesmo sentido o poema do escritor galês Dylan Thomas: "Odeia, odeia a luz que começa a morrer". Citado pelo professor John Brand (interpretado por Michael Caine), um físico da NASA, fica o convite para se viver com intensidade, na crença que permite esgotar as possibilidades e encontrar respostas para o projeto de uma vida (no caso, a resolução do mistério último da gravidade, viabilizador dessa esperança de salvar a Humanidade de uma iminente ameaça).
    Os testemunhos que abrem o filme permitem, pela técnica de flashback, constatar os problemas que existiram; o final sugere a possibilidade de vida numa outra dimensão, mesmo que esta possa estar ao alcance do conhecimento de uma estante - a que separa um pai de uma filha, mas que pode resultar no elo de ligação que um relógio (também) pode criar: o do tempo feito de afetos.
   À medida que ia vendo o filme, ia-me lembrando de A Fórmula de Deus, de José Rodrigues dos Santos, e dos diálogos entre a personagem Tomás de Noronha e o pai deste; ou das interações criadas com uma mulher iraniana. Em ambos havia explicações para as grandes teorias científicas do tempos contemporâneos - como a Teoria da Relatividade Restrita de Einstein, que assume uma ligação entre o espaço e o tempo encarados como relativos; a Teoria da Relatividade Geral, que resolve as questões da gravidade e estabelece o espaço como sendo curvado, encarando que a massa dos objetos distorce o espaço e o tempo; a Teoria do Tudo, unificadora de abordagens e entendimentos acerca das forças da natureza, inspirada também na Teoria Quântica, apostada na reconstrução dessas forças e dos movimentos associados a partículas invisíveis aos olhos comuns; a Teoria do Caos, enquanto modelo matemático evidenciador de como pequenas alterações nas condições iniciais podem provocar, numa espécie de progressiva onda, alterações substanciais nas condições finais - num efeito equiparado ao bater de asas da borboleta que provoca a imprevisibilidade num ponto mais distante.
       Muitos saberes, muita inteligência à espera de que a vida lhes dê oportunidade de vingar, para a construção de uma maior consciência de tudo. E na continuidade das gerações está a possibilidade de se progredir.

     Ver a vida não como um fim em si mesmo, mas como o meio para permitir aproximações, acessos a outras formas de desenvolvimento de inteligência e consciência é um sentido de leitura para uma existência que possa manter continuidade com a seguinte, numa espécie de cadeia ininterrupta que ganha maior sentido pela energia emotiva e afetiva que a una. Neste sentido, a vida é "interestelar".

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A Fórmula de Deus

    Concluída a leitura de A Fórmula de Deus - quarto romance de José Rodrigues dos Santos, originalmente publicado em 2006 -, registo a minha segunda aventura com a série Tomás Noronha.

     De Einstein à prova científica da existência de Deus; entre o Egipto, o Irão, Tibete e Lisboa; na conspiração internacional com a crise nuclear no Irão; na descodificação de cifras ou na relação que o protagonista mantém com a bela Ariana Pakravan (iraniana portadora duma cópia de um velho manuscrito com um título e um poema enigmáticos), de tudo isto se compõe a aventura narrativa assente numa história de amor, numa intriga de perseguições e traição, numa procura espiritual que se cruza com uma revelação mística e as mais recentes descobertas e questões científicas nos domínios da Física, da Matemática e da Cosmologia. 
      Entre a suspeita de que Albert Einstein estava a planear a construção de uma bomba atómica e a constatação de que os registos apenas davam a ler uma fórmula para provar a existência de Deus, muita informação passa, nomeadamente conhecimentos de vária ordem (científicos, teológicos, religiosos, filosóficos, linguísticos, artísticos). Entre eles contam-se:

. a Teoria de Tudo, que  recorre aos contributos da Teoria Quântica para lidar com o domínio das partículas e a noção de que estas últimas, enquanto subatómicas, podem ir de um estado de energia A para um outro (B) sem passarem pela transição desses dois estados (salto quântico), numa espécie de onda - Einstein constrói, assim, uma teoria unificadora (Teoria dos Campos Unificados ou Teoria de Tudo) que apresenta as forças fundamentais da natureza como manifestações de uma força única e que equaciona a força que faz um electrão andar em torno do núcleo como sendo a mesma que faz o sol girar em torno da terra.

. a Teoria do Caos, enquanto modelo matemático que dá conta de como pequenas alterações num estado inicial provocam alterações profundas no produto final (pequenas causas, grandes efeitos) - a metáfora do bater de asas da borboleta é um exemplo disso, pelo efeito de dominó e de onda. Neste sentido, o caos, sendo síncrono, só parece caótico (tem um comportamento determinista, obedece a padrões que o regem por regras muito bem definidas, é causal, mas é indeterminável; previsível a curto prazo e imprevisível a longo prazo).

. os Teoremas da Incompletude, demonstrativos de que um sistema lógico jamais poderá provar todas as afirmações nele contidas (o real é tão totalizador que é inexprimível, ainda que seja verdadeiro; haverá sempre mistério na sua apreensão).

        Além destes dados, registo ainda alguns dos pensamentos que mais me chamaram a atenção na leitura do romance:

"Eu sou os meus pensamentos, a minha experiência, 
os meus sentimentos. Isso sou eu. Eu sou uma consciência (...) 
e a minha consciência, esta noção que eu tenho 
da minha existência, é uma espécie de programa. Percebes? 
De uma certa forma, e literalmente, os miolos são o hardware
a consciência o software." 
(nas palavras do matemático Manuel Noronha, pai do protagonista - pág. 85).
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"O segredo da vida não está nos átomos 
que constituem a molécula, está na sua estrutura, 
na sua organização complexa. Essa estrutura existe 
porque obedece a leis de organização espontânea da matéria. 
E, da mesma maneira que a vida é o produto 
da complexificação da vida inerte, 
a consciência é o produto da complexificação da vida. 
A complexidade da organização é que é a questão-chave, 
não é a matéria."
(nas palavras do matemático Manuel Noronha, pai do protagonista - pág. 88).

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"Não é possível provar 
a existência de Deus, 
da mesma maneira que não é possível provar a sua não-existência. 
Nós apenas temos a capacidade 
de sentir o misterioso, 
de experimentar a sensação 
de deslumbramento pelo maravilhoso esquema que se exprime no universo" 
(numa representação das palavras de Einstein para o ministro israelita Ben Gurion - pág. 21) .

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"A vida descreve-se em dois planos. 
Um é o plano reducionista, 
onde se encontram os átomos, as moléculas, as células, 
toda a mecânica da vida. 
O outro plano é semântico. 
A vida é uma estrutura de informação 
que se movimenta com um propósito, 
em que o conjunto é mais do que a soma das partes, 
em que o conjunto nem sequer tem consciência 
da existência e funcionalidade de cada parte que o constitui.
 [...] se analisar a tinta e o tipo de folha de um exemplar 
do Guerra e Paz constitui uma forma muito incompleta e redutora de estudar esse livro, por que diabo analisar os átomos e as forças existentes no cosmos há-de ser uma forma satisfatória de estudar o universo? Não haverá também uma semântica no universo? Não existirá igualmente uma mensagem para além dos átomos?" 
(nas palavras do matemático Manuel Noronha - págs. 319-321).

      Um livro será sempre uma busca e um encontro. Neste sentido, pode dizer-se que fiz algum caminho, Caso para dizer, que subscrevo o pensamento einsteiniano tão adequado à ciência como à leitura (como se aquela também não se fizesse desta):


       Pensamentos e interrogações que fazem sentido para um leitor das humanidades. Razão para encarar Deus como a semântica de tudo. Assim se busca o sentido das coisas (talvez numa dimensão mais poética, como a que transcende a própria realidade). Assim se enuncia essa fórmula mestra, também designada como "fórmula de Deus".