As imagens são muito significativas da irracionalidade reinante nestes dias
O que víamos há tempos em território americano chegou à Europa,... a Portugal,... a Matosinhos - corre o povo em cardume, direitinho ao anzol (que não vê), pensando no retalho de pano lindo que, vaidosamente, vai poder mostrar a todos:
Black Friday em Matosinhos (à moda de USA)
Ainda há dias falava, nas aulas, sobre o Black Friday (que mais deve ser Black Days, já que nem de Friday nem de um só dia se trata), tudo a propósito de Vieira e do Sermão de Santo António. As semelhanças com a atualidade são inevitáveis, não fossem os peixes (seduzidos por um retalho de pano) metáfora dos homens (que se iludem com as falsas promoções).
Outra coisa muito geral, que não
tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós, é aquela tão notável
ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para
estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado
e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água,
e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que,
assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior
ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano,
perder a vida?!
Dir-me-eis que o mesmo fazem os
homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se
os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque
houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade
entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os
homens. E que faz a vaidade? Põe por isca na ponta desses piques, desses chuços
e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de
Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que chama de Cristo e de
Santiago; e os homens por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não
reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso que sucede? O mesmo que a
vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos
retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.
Por este exemplo vos concedo,
peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi
este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão ainda que
se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que
também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais
ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê?
Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal
com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe
passou a era e não têm gasto e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores
da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes
sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados
aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro
ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é
encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no
engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o
levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os
pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas,
nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com
que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
Não é isto, meus peixes, grande
loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis
negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano,
quem tem obrigação de se vestir, vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou
de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e
douradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam
ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira
deixarde-vos enganar ou deixarde-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de
pano?
Vede o vosso Santo António, que
pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as
galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma
correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe
que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a
correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só
estes se não enganaram e foram sisudos.
Declamação e representação (adaptada) do sermão vieirino
por Marcelo Lafontana
por Marcelo Lafontana
A atualidade e contemporaneidade da reflexão, com as devidas adaptações, impõem-se. Não se tratando de canibalismo puro, pouco falta. Talvez uma antropofagia social. Só porque há mais uns tostões, matam-se nas filas e nas multidões.
O que foi escrito para o século XVII é visionário para os nossos tempos. Apetece dizer com Vieira que, ao Homem, parece ter sido dada a razão sem o uso; há animais que parecem ter mais o uso sem a razão. "Não é isto verdade? Ainda mal!"
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