Afrodite, saída das ondas, é mito clássico para figurar na mais criativa expressão da modernidade.
Uma pintura anónima do primeiro século (79. d.c.) encontra-se em Pompeia, representando a divindade sobre as águas. A ascendência mítica remonta à civilização egípcia e à deusa Neith ou Nepte, Naus, Nuk ou Nut, numa nau celestial.
Os versos de Arthur Rimbaud traçam-na com alguma abjeção, mesmo quando a figura poética tenha gravados, nas nádegas, os nomes Clara Vénus. A desconstrução do mito ou a sua reconfiguração preparam uma visão estética e poética assentes na metamorfose, na afirmação do desconhecido e na reinvenção da imagem cultural do mito.
Na literatura portuguesa, Jorge de Sena tomará a poesia como a possibilidade de transformar o mundo e também a própria linguagem. Os 'Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena' escritos em 1961 são disso exemplo, além de outras experimentações em verso publicadas, por exemplo, em Peregrinatio ad loca infec-ta (1969), em Exorcismos (1972) ou, postumamente, em Visão Perpétua (1982) - todas elas rela-cionadas com a metamorfose da própria língua ao nível do sig-nificante (recorrendo a apócopes, síncopes, formações neológicas das palavras, colagens de segmentos, recuperação de arcaísmos e eruditismos, inversões, invenções lexicais, epítetos clássicos para referências mitológicas).
Há quem veja neste trabalho criativo a aproximação de Sena a projetos de poesia experimental (na linha de Ernesto de Melo e Castro). Todavia, mais do que produções orientadas para uma dimensão semiótica a construir - nomeadamente, com signos não vocabulares -, a reconstrução da linguagem seniana não apaga muita da materialidade que a língua traz consigo, antes apostando na reminiscência de sonoridades e raízes gregas e/ou alatinadas; na possibilidade significativa da sugestão sonora e da organização morfossintática na própria dimensão sintagmática da língua; na invenção vocabular, potencial no português.
Graças a estes mecanismos, visa-se atingir uma significação nova, uma outra semântica, para a qual o poeta orienta, por exemplo, com as «Notas a alguns Poemas» (in Trinta Anos de Poesia, de 1972) ou ainda com as palavras citadas num ensaio de Gastão Cruz (cimo, à direita).
Na recriação proposta, nas entradas que o leitor ativa para aceder à associação de imagens evocadas no texto (sonora, morfológica, sintática, conhecimentos enciclopédicos), a decifração do enigma faz-se, qual peregrino perseguindo locais e motivos poéticos que, na tensão do aparente nulo significativo, conduzem ao pleno infinito da significação; permitem a experiência radical de, pela conjugação de entradas de leitura, (re)construir um código feito do jogo poético composto de forças e redes de reiteração e dissonância.
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