quarta-feira, 4 de maio de 2011

Deixis e idealização... um caso problemático.

      Camões: numa das suas mais clássicas e mais idealizadas composições poéticas...

      Um exemplo que se convoca para o que o poema não tem.

     Q: No caso do soneto "Um mover de olhos brando e piedoso", o "Esta" do último terceto é um deíctico de pessoa ou de espaço?

       R: Antes de qualquer resposta, começo por transcrever o poema camoniano:

O nascimento de Vénus, de Boticelli
(pormenor)
Um mover de olhos, brando e piedoso
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

     A progressão do soneto faz-se em função de uma longa enumeração (entre os versos 1-11) associada a uma imagem estereotipada que está mais para a idealização e o modelo clássicos da figura feminina, traçada em termos que conjugam a influência platónica (ideal de beleza física, reflexo da beleza interior, numa manifestação sensível do princípio de beleza inteligível), bem como a representação dos modelos petrarquista de Laura e renascentista de Vénus.
    Pela natureza e pela opacidade da significação literária, pelo recurso a códigos estéticos que convocam o sentido das regras, da harmonia e da imitação dos modelos, haveria já aqui razões para alguma problematização do conceito de 'deixis' aplicado ao soneto (a deixis está para a mostração das condições temporais-espaciais-pessoais de produção de um discurso como este poema está, em contraposição, distante da construção de alguma referencialidade evidenciadora da interacção de um 'eu / nós' com um 'tu /vós').
    Assim, o pronome demonstrativo em causa (que abre o terceto final e constitui uma pista linguística para a possível divisão do soneto em duas partes) não é um deíctico. A sua funcionalidade textual é a de retomar toda uma sequência enumerativa anterior (onze versos iniciais), esta última resumida num só termo e que, no seio do discurso poético em questão, configura um sujeito sintáctico para a predicação dominante do texto. Logo, trata-se de um exemplo de termo anafórico, cujo antecedente é, nada mais nada menos, o conjunto dos onze grupos nominais anteriores - identificáveis por uma estrutura sintáctica do tipo "Um(a) + [adj] + N".
   "Esta", noutras circunstâncias textuais, pode ser um deíctico quando referencia a proximidade de uma entidade face a um 'eu / nós' responsável pela produção discursiva; quando entra em contraste com um "Essa" (que está mais para o 'tu / vós').
   Textualmente, "esta" pode ainda ser uma referência a uma entidade, a um espaço, a um tempo que acabaram de ser discursivamente mencionados. 

      É o caso nesta composição camoniana (na qual se retoma um ideal de beleza feminina); daí a sua natureza anafórica.

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