terça-feira, 24 de maio de 2011

Com letras e números em abraço

      Assim o escrevi num soneto, dedicado a alguns dos meus alunos, há já quatro anos - talvez inspirado em leituras da altura e desse mistério rendido ao facto de números e letras organizarem a nossa vida.

     Retomo um excerto de O Código Da Vinci, de Dan Brown:

                                 
                                          1.618

     «Voltou-se para o mar de rostos interessados.
     - Quem sabe dizer-me que número é este?
     Um aluno do curso de Matemática, sentado numa das últimas filas, levantou o braço.
     - É o número PHI. - Pronunciava-o como fi.
     - Muito bem, Stettner - disse Langdon. - Senhoras e senhores, apresento-lhes o PHI.
     - Não confundir com PI - acrescentou Stettner, sorrindo. - Como nós, matemáticos, costumamos dizer... (...)
     Enquanto carregava o projector de diapositivos, Langdon explicou que o número PHI derivava da sequência Fibonacci, uma sequência famosa não só por a soma de dois termos adjacentes ser igual ao termo seguinte, mas também por os quocientes de dois termos adjacentes terem a surpreendente propriedade de se aproximarem de 1.618: PHI!
    A despeito da aparente origem místico-matemática, explicou Langdon, a faceta verdadeiramente extraordinária do número PHI era o seu papel como elemento constitutivo fundamental da natureza. Plantas, animais e até seres humanos, todos possuíam propriedades dimensionais que obedeciam com uma espantosa exactidão à razão de PHI para 1.
    - A ubiquidade do número PHI na natureza - continuou Langdon, apagando as luzes - excede claramente a coincidência, e por isso os Antigos assumiram que tinha sido preordenado pelo Criador do Universo. Os primeiros cientistas chamavam a um-ponto-seis-um-oito a Proporção Divina. (...)
    - Isto é espantoso! - exclamou alguém.
    - Pois é - admitiu uma outra voz -, mas o que é que tem a ver com arte?
   - Ah! - disse Langdon. - Ainda bem que alguém pergunta. Projectou um novo diapositivo, um pergaminho amarelado no qual estava representado o famoso nu de Leonardo da Vinci, O Homem de Vitrúvio, assim chamado em honra de Marcus Vitruvius, o brilhante arquitecto romano que exaltou a Proporção Divina no seu texto De Achitectura
   - Ninguém compreendeu melhor do que da Vinci a estrutura divina do corpo humano. Da Vinci chegava ao ponto de exumar cadáveres para poder estudar as proporções da estrutura óssea do ser humano. Foi o primeiro a mostrar que o nosso corpo é literalmente formado por blocos constitutivos cuja razão proporcional é sempre igual a PHI.
    A turma inteira dirigiu-lhe um olhar carregado de dúvida.
    - Não acreditam? - desafiou-os Langdon. - Da próxima vez que forem para o duche, levem uma fita métrica. (...) Todos vocês. Rapazes e raparigas. Experimentem. Meçam a distância do topo da vossa
cabeça até ao chão. Então dividam esse valor pelo da distância do vosso umbigo até ao chão. Adivinhem lá que número vão obter.
    - Não me diga que é PHI! - exclamou, incrédulo, um dos futebolistas.
   - Digo, sim senhor - respondeu Langdon. - PHI. Um-ponto-seis-um-oito. Querem outro exemplo?Meçam a distância do ombro às pontas dos dedos, e então dividam-na pela distância do cotovelo às pontas dos dedos. Outra vez PHI. Mais uma? Anca ao chão a dividir por joelho ao chão. PHI. Articulações dos dedos das mãos. Dos pés. Divisões espinais. PHI, PHI, PHI. Meus amigos, cada um de vocês é um tributo ambulante à Proporção Divina. (...)
    Durante a meia hora seguinte, mostrou-lhes diapositivos de obras de Miguel Ângelo, Albercht Dürer, Da Vinci e muitos outros, demonstrando a obediência intencional e rigorosa de todos estes artistas à Proporção Divina na disposição das respectivas composições. Mostrou a presença do número PHI no Pártenon de Atenas, nas pirâmides do Egipto e até no edifício das Nações Unidas em Nova Iorque. O número PHI aparecia na estrutura organizacional das sonatas de Mozart, na 5ª Sinfonia de Beethoven, nas obras de Bartók, Debussy e Schubert. O número PHI, disse Langdon aos seus alunos, fora inclusivamente usado por Stradivarius para calcular a localização exacta dos
espelhos nos seus famosos violinos.
    - Para terminar - disse, dirigindo-se ao quadro -, voltamos aos símbolos. - Traçou cinco linhas que se interceptavam para formar uma estrela de cinco pontas. - Este símbolo é uma das imagens mais poderosas que vão ver este semestre. Formalmente conhecido como pentagrama... ou pentáculo, como lhe chamavam os Antigos... é considerado por muitas culturas simultaneamente divino e mágico. Alguém sabe dizer-me porquê?
     Stettner, o matemático, levantou a mão.
     - Porque, se traçar um pentagrama, as linhas dividem-se automaticamente em segmentos de acordo com a Proporção Divina.
    Langdon dirigiu-lhe um orgulhoso aceno de cabeça.
    - Muito bem. É verdade, as razões dos segmentos lineares num pentáculo são todas iguais a PHI, o que faz deste símbolo a expressão perfeita da Proporção Divina.

    Na arte, diz-se também estar o soneto como a forma mais perfeita da literatura.
    Catorze (são os versos) dividido pelo número 1.618 resulta no número 8,652657...
    Os dois primeiros algarismos dessa sequência infinita são precisamente o 8 (a soma das duas quadras) e o 6 (a dos dois tercetos). Entre os dois não figura o 7 (que se diz mágico), ainda que se prefigure no arredondamento da décima.
   Se na sequência numérica por nós normalmente reconhecida  o 8 e o 6 são mediados pelo 7, dir-se-ia que aí se encontra um ritual de passagem, uma fronteira para dois eixos compositivos: do sétimo para o oitavo verso cumpre-se a ponte entre duas metades do soneto. Talvez, por isso, no soneto camoniano "Alma minha gentil que te partiste", esteja muito mais aí a chave de ouro, segundo a linha interpretativa de uma composição poética marcada pela temática central do 'amor' (um amor vivido, "ardente", que o sujeito poético pretende colocar no plano da idealização, de uma eternização que supere os limites terrenos, mundanos).

   
     E. M. de Melo e Castro "Soneto Soma 14x" (1963)


    Ernesto M. de Melo e Castro prefere a leitura do soneto enquanto soma (horizontal dos algarismos) catorze vezes, pela expressão da poesia concreta e visual - um discurso que se materializou e cristalizou num outro código (gráfico-numerológico).
       Duas quadras e dois tercetos - a totalidade de versos no soneto - evidenciam-se graficamente numa organização estrófica com a mesma ordem de leitura do verso da esquerda para a direita, ou vice-versa.
     A leitura vertical da sequência numérica é menos significativa face ao título da composição, mas não deixará de constituir um jogo revelador de somas combináveis com a própria noção de soneto: a coluna da esquerda totaliza 49 (noves fora quatro - uma quadra); a seguinte e a do meio somam, cada uma, 35 (noves fora 8 - duas quadras; sem esquecer que 35+35 = 70, noves fora 7 - uma quadra e um terceto); a penúltima, 28 (noves fora um - a unidade do soneto, para não referir a soma de 2+8, a totalizar 10 - o habitual verso decassilábico); a última coluna, à direita dá 63 (o 6 que representa os dois tercetos; 3, a composição versificatória do terceto).
       Números e letras; Matemática e Literatura (Poesia). 
       Para quê separar códigos que a Proporção Divina juntou?

    ... tem o Homem que saber interpretar a sua própria criação e as suas convenções. Tudo dele depende, sabendo que, nos contrários, também há lugar para os afectos: "letras e números dando um abraço".

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