sábado, 7 de maio de 2011

A Morte do Palhaço... ou um despertar de consciências

      Em boa companhia, na clausura em que nos colocaram no Mosteiro de S. Bento da Vitória.

     No final de mais um dia pesado de trabalho, um reencontro de amigos para compensar o tempo e os sorrisos que nem sempre se tem. Esta é uma das formas felizes de saber viver, o tema evocado por uma das obras de Raul Brandão, datada de 1896: História d'um Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício).

     Refundida sob o título A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore (1926), confirma-se a dimensão filosófica do texto, sublinhada no pessimismo das personagens face aos problemas da vida e no ensejo pelo sonho.
      Para não se crer que o palco é diferente da vida, a representação do texto (levada a cabo pelo grupo teatral 'O Bando', numa co-produção com o Teatro Nacional de S. João) inicia com o espectador a cruzar-se com um grupo de personagens indigentes: feito o percurso comum até junto do palco, o primeiro senta-se num carro de compras adaptado a um assento; o mesmo fazem as segundas. E todo o "enxurro humano" fica enjaulado, enleado, limitado pelo que o sensível dá, entre duas portas cerradas e numa sociedade "escura". Resta o espaço para sonhar, enquanto alternativa possível à degradação, à indigência, a um contexto marcado pelos sinais da guerra, do pessimismo (finissecular), de um percurso barrado. Entre os gestos repetidos, rotineiros, sem produzir qualquer acção, espera-se por um sinal de mudança: uns limitam-se à espera; outros sonham e, um pouco à moda de Beckett, situam-se entre os socialmente desprotegidos, os que vivem à margem e aspiram a algo que os mantenha presos à vida, numa espécie de quimera frequentemente dolorosa.


     Nas conversas construídas com e sobre um palhaço (insistentemente questionando-se se deve amar ou morrer), há ainda lugar para Pita (entregue aos prazeres da vida), um rei, uma rainha e a filha, o doido, o anarquista, um antigo chefe de repartição (Gregório). Todos se caracterizam com um nariz de palhaço e participam na agonia, nas dúvidas e incertezas deste último. Hospedados na casa de D. Felicidade, reflectem sobre a existência humana, as opções de vida: viver pelo sonho; entre este e a vida terrena; a entrega exclusiva à vida mundana.

Se saio do sonho, não sei viver. 
Sobressalto-me com o menor ruído imprevisto: 
a porta que se fecha é para mim uma angústia. 
Compreendes isto? 
Antes a catástrofe que espero caísse sobre mim, 
e me estatelasse no solo, 
do que este terror contínuo, a inquietação do que é vago, 
o aflitivo do nada...

       Este o pensamento do palhaço, que se revela contra o mundo, num texto cuja adaptação dramatúrgica e cuja encenação estão a cargo de João Brites, segundo um libreto de Nuno Júdice. A composição musical é de José Mário Branco, para um espaço cénico de Nuno Carinhas.
      Entre a depressão que conduz ao desgosto (por não se descobrir um caminho para a felicidade e por se constatar a impotência em mudar o mundo) e a luta de todos os dias (aproximada dos sonhos, num simbolismo em que a música e o plano da utopia se cruzam) - ainda que tal possa implicar o sacrifício da realidade -, fica a nota do derrubar de portas que teimam em não se abrir, apenas cedendo sob o peso de uma vida. Sempre morre alguém para que a humanidade dê um novo passo e se possa concretizar algo do sonho aspirado.
   
     Todos somos palhaços nesta vida: todos temos sonhos e criamos figuras na nossa cabeça; aspiramos a algo e limitamos, auto-censuramos o que possa ou não ser feito. Damos a vida para que outros lhe dêem continuidade.

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