Em boa companhia, na clausura em que nos colocaram no Mosteiro de S. Bento da Vitória.
No final de mais um dia pesado de trabalho, um reencontro de amigos para compensar o tempo e os sorrisos que nem sempre se tem. Esta é uma das formas felizes de saber viver, o tema evocado por uma das obras de Raul Brandão, datada de 1896: História d'um Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício).
Refundida sob o título A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore (1926), confirma-se a dimensão filosófica do texto, sublinhada no pessimismo das personagens face aos problemas da vida e no ensejo pelo sonho.
Para não se crer que o palco é diferente da vida, a representação do texto (levada a cabo pelo grupo teatral 'O Bando', numa co-produção com o Teatro Nacional de S. João) inicia com o espectador a cruzar-se com um grupo de personagens indigentes: feito o percurso comum até junto do palco, o primeiro senta-se num carro de compras adaptado a um assento; o mesmo fazem as segundas. E todo o "enxurro humano" fica enjaulado, enleado, limitado pelo que o sensível dá, entre duas portas cerradas e numa sociedade "escura". Resta o espaço para sonhar, enquanto alternativa possível à degradação, à indigência, a um contexto marcado pelos sinais da guerra, do pessimismo (finissecular), de um percurso barrado. Entre os gestos repetidos, rotineiros, sem produzir qualquer acção, espera-se por um sinal de mudança: uns limitam-se à espera; outros sonham e, um pouco à moda de Beckett, situam-se entre os socialmente desprotegidos, os que vivem à margem e aspiram a algo que os mantenha presos à vida, numa espécie de quimera frequentemente dolorosa.
Nas conversas construídas com e sobre um palhaço (insistentemente questionando-se se deve amar ou morrer), há ainda lugar para Pita (entregue aos prazeres da vida), um rei, uma rainha e a filha, o doido, o anarquista, um antigo chefe de repartição (Gregório). Todos se caracterizam com um nariz de palhaço e participam na agonia, nas dúvidas e incertezas deste último. Hospedados na casa de D. Felicidade, reflectem sobre a existência humana, as opções de vida: viver pelo sonho; entre este e a vida terrena; a entrega exclusiva à vida mundana.
Se saio do sonho, não sei viver.
Sobressalto-me com o menor ruído imprevisto:
a porta que se fecha é para mim uma angústia.
Compreendes isto?
Antes a catástrofe que espero caísse sobre mim,
e me estatelasse no solo,
do que este terror contínuo, a inquietação do que é vago,
o aflitivo do nada...
Este o pensamento do palhaço, que se revela contra o mundo, num texto cuja adaptação dramatúrgica e cuja encenação estão a cargo de João Brites, segundo um libreto de Nuno Júdice. A composição musical é de José Mário Branco, para um espaço cénico de Nuno Carinhas.
Entre a depressão que conduz ao desgosto (por não se descobrir um caminho para a felicidade e por se constatar a impotência em mudar o mundo) e a luta de todos os dias (aproximada dos sonhos, num simbolismo em que a música e o plano da utopia se cruzam) - ainda que tal possa implicar o sacrifício da realidade -, fica a nota do derrubar de portas que teimam em não se abrir, apenas cedendo sob o peso de uma vida. Sempre morre alguém para que a humanidade dê um novo passo e se possa concretizar algo do sonho aspirado.
Entre a depressão que conduz ao desgosto (por não se descobrir um caminho para a felicidade e por se constatar a impotência em mudar o mundo) e a luta de todos os dias (aproximada dos sonhos, num simbolismo em que a música e o plano da utopia se cruzam) - ainda que tal possa implicar o sacrifício da realidade -, fica a nota do derrubar de portas que teimam em não se abrir, apenas cedendo sob o peso de uma vida. Sempre morre alguém para que a humanidade dê um novo passo e se possa concretizar algo do sonho aspirado.
Todos somos palhaços nesta vida: todos temos sonhos e criamos figuras na nossa cabeça; aspiramos a algo e limitamos, auto-censuramos o que possa ou não ser feito. Damos a vida para que outros lhe dêem continuidade.
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