sábado, 19 de janeiro de 2019

Aventura dos cinco

      Não se trata dos heróis infantis da Enid Blyton, não! Antes uns leitores adultos e bem queirosianos, reanimados pela Torre da Lagariça.
Rumo à Torre da Lagariça (Foto VO)
      O pretexto é a venda anunciada da Torre. Já que não pode ser comprada pelos próprios, estes vão ao encontro da que se diz ser a torre inspiradora de Eça de Queirós para a construção de A Ilustre Casa de Ramires (AICR). Já sabem que não vão encontrar lá Gonçalo Mendes Ramires nem  o projetado romance, em dois volumes, centrado no antepassado ou "avoengo" Tructesindo Mendes Ramires. O imaginário romanesco é motivo suficiente para juntar cinco amigos, fazê-los viajar pela zona norte de Portugal, dar umas gargalhadas e aproveitar um sábado chuvoso para ficar na história das respetivas memórias. Não há pretensão de escrita (pronto, talvez este singelo apontamento) nem intento genealógico e/ou político (como o de Gonçalinho); talvez o desejo de conhecer um pouco mais do país tão à mão, mas sempre tão ignorado pela sua interioridade. No final, já se sabe que haverá muitas histórias para contar e recontar, acrescentar uma piada, brincar com as palavras e as situações - um pouco como nas narrativas que o protagonista queirosiano lê, revê e reescreve à medida que com elas se cruza.
     Do Porto a Baião, entre curvas e contracurvas, procurou-se esse defensivo e sólido torreão, essa "robusta sobrevivência do Paço acastelado da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X" (AICR, Lisboa, Edições Livros do Brasil, p. 6). Falar da casa de Ramires não parecia ser muito esclarecedor na busca de orientações; em contrapartida, a "Torre da Lagariça" já era tomada pela consabida tradição da marca da defesa da linha do Douro na época da Reconquista; aquela que, mais tarde, perdido o seu interesse e significado militares - com as fronteiras mais a norte - acaba, no século XVI, nas mãos da família Pinto (senhores da Torre da Chã e do Paço de Covelas, descendente de Paio Soares Pinto, que lutara ao lado de Afonso Henriques na Batalha de Ourique).
      Com a sua fachada granítica resistente ao tempo, lá se encontrava ela: a "famosa Torre, mais velha que Portugal" ou "a antiquíssima Torre (...) com uma pouca de hera no cunhal rachado" (AICR, ibidem) no seu formato quadrado e escuro, im-ponente, forte, a contras-tar com o fantasmagórico branco de uma decadência maior no solar anexo. Tal como o dissera uma habitante local, ao seu jeito popular e familiar, esta não tem lá ninguém. Mostra-se, na sua gran-deza, como testemunho histórico-literário da "fre-guesia de S. Cipriano, concelho de Resende, distrito de Viseu... e aqui estou eu".
    Um caminho rural estreito permitiu chegar mais perto. A densa vegetação envolvente, a invadir e bloquear o que foram acessos à casa e à torre, não impediu o calcorrear do miradouro, da muralha em torno do solar, nem a observação das fenestradas paredes de pedra típica nas fortalezas ameadas.
     Persistente, a chuva convidava ao abrigo nessas portas destruídas pelo tempo, a deixarem antever o que seria o espaço solarengo hoje abandonado. A vegetação desordenada, invasiva toma conta do vazio. O que foi um jardim torna-se tão natural quanto o tempo permite. Sobrevivem ali buganvílias entrelaçadas com silvas; folhas e ramos secos, mortos a par ou sobre tufos de musgo viçoso, com verdor.
     A resiliência dos  aventureiros (mais uns do que outros) resultou em registo fotográfico. Talvez, daqui a uns anos ou décadas, a imagem venha a ser diferente. Quem sabe - seria bom que assim não fosse - ausente.
       Hoje ficou esta:

Torre da Lagariça e o solar anexo (Foto VO)

      De regresso ao Porto, os cinco, sem que a imaginação os leve "sempre a exagerar até à mentira", vivenciaram uma viagem bem real, alimentaram o corpo e o espírito com o que de bom a vida também tem, sempre com "A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades..." - por ora diria que bastava resolver o interesse em preservar um espaço, uma memória cultural e histórica, um motivo literário do interesse e da especulação imobiliários, no respeito pelo "silêncio e doçura da tarde (...), pedindo a paz de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casais adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que sempre bendita fosse entre as terras" (final de AICR, pág. 362).  
   

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