Há cerca de um ano percorri um dos locais fatídicos na zona que foi Berlim comunista.
Há oitenta e cinco anos desapareciam aí os livros que se revelavam opositores ao espírito alemão nazi. Corria o ano de 1933 e, em Berlim, acontecia a queima dos livros de autores ditos 'não-alemães' (ainda que alguns deles o fossem), levada a cabo pela Liga de Estudantes Alemães Nazis, em OpernPlatz (hoje BebelPlatz).
Tratou-se de uma campanha de propaganda, repetida em muitas cidades alemãs, contra os que se revelavam contra o espírito alemão (os chamados "Undeutsch"). Nomes como os de Sigmund Freud, Karl Marx, Albert Einstein, Franz Kafka, Bertolt Brecht, Walter Benjamin, Marcel Proust, Emile Zola, Máximo Gorki e Ernest Hemingway figuravam entre os que tinham obras queimadas. Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazi, assumiu que, a partir de então, nasceria o novo homem alemão, livre da influência e do intelectualismo judaicos. Por ironia, o país que tinha inventado a prensa tipográfica móvel há cerca de meio milénio assistia a uma tragédia cultural, provocada pelo nacionalismo irracional, destruidor de memórias, ideias, histórias.
Imagem alusiva à queima de livros (Bücherverbrennung)
Trinta e três anos depois (1966), o filme Grau de Destruição (no Brasil, Fahrenheit 451) recuperava o tópico, ao adaptar o romance homónimo de Ray Bradbury, sob a direção de François Truffaut, e ao mostrar como um regime totalitário proibia os livros e toda a forma de escrita, acusando-os de tornar as pessoas descontentes e não produtivas (a resistência ao regime era apenas feita na terra dos homens-livro, uma comunidade de pessoas que destruía os livros depois de os memorizar; a perseguição era inevitável para quem era apanhado na posse de um, mas o propósito de o decorar era o de o republicar quando não fossem mais proibidos).
Excerto fílmico de Grau de Destruição (ou Fahrenheit 41), de 1966
Atualmente, frente ao prédio da Faculdade de Direito da Universidade de Humboldt fica o chamado Book Burning Memorial: uma abertura de vidro colocada no chão da praça, a permitir aos transeuntes a visão, no subsolo, de uma sala com uma grande estante de livros branca, vazia. Recorda-se, assim, o dia em que, durante a ocupação nazi, 20.000 livros foram queimados, num só dia, numa pira que consumiu obras de cientistas, filósofos, escritores e pensadores de renome. Por extensão, a ausência dos livros simboliza a falta dos milhões mortos pelo nazismo, para além dos perseguidos, torturados e humilhados por pensa-rem de modo distinto.
Organizada pelas estruturas governamen-tais nazis e pelo Comité Geral dos Estudantes da União Nacional-Socialis-ta, a "Queima dos Livros" foi acompanhada por reitores, professores universitários, líderes estudantis, mais os altos representantes de Hitler. Mais de trinta cidades universitárias alemãs colaboraram e fizeram estender a campanha a outros pontos do país, graças à divulgação feita pela rádio, pelas telas de várias salas de cinema e pela cobertura de imprensa. Os dias seguintes assistiram à criação de outras fogueiras, alimentadas pelos livros e documentos escritos que os soldados nazi retiraram, à força, de casas, livrarias e bibliotecas.
Em tempos de fraca memória, interessa relembrar os perigos do fundamentalismo, dos nacionalismos exagerados, da miséria humana e dos horrores que a História deu a conhecer e que o presente teima em fazer persistir. Os livros também cumprem esse papel (que o diga Saramago, com o seu O Ano da Morte de Ricardo Reis).
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