Dois apontamentos, pelo dia em que ambos desapareceram (os homens, não os apontamentos)
Um primeiro, mais atual, é para recordar o sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman (19 de novembro de 1925 – 9 de janeiro de 2017):
Bertrand a citar um pensamento (criticamente) muito válido
Um segundo, mais recuado no tempo, é para retomar um texto de alguém já mencionado nesta "carruagem" por várias vezes (três, creio... quem sabe... quatro), mas agora numa outra voz: a de um outro Mário (Viegas). Entre inconformismos, a identidade de ambos vai além do nome, como se pode ver no seguinte registo vídeo:
Programa televisivo "Palavras Vivas" (Canal 1 da RTP), com declamação de Mário Viegas
E depois da voz, a leitura silenciosa esboçando um sorriso, na paródia pressentida:
A Invenção da Água
Como muito bem se sabe, no princípio não havia água.
Só havia o verbo.
Depois apareceram o sujeito e o complemento direto.
Mas de água, nada.
Então todos começaram a beber vinho e deus achou que era bom.
E lá isso era!
No entanto, com o aparecimento das primeiras culturas
do tipo comercial, tornou-se evidente
a falta de qualquer coisa
que pudesse aumentar a produção do vinho
e torná-lo mais rentável.
Era a água, claro.
Mas não havia água, como já fizemos notar.
As primeiras pesquisas,
então ainda bastante primitivas,
levaram à descoberta da água-pé.
Embora curiosa, essa descoberta não resolveu,
de forma alguma, o fim pretendido.
Continuava a não haver água. As pesquisas prosseguiram.
Felizmente o homem é assim, nunca desiste.
É isso que faz o progresso.
E largos tempos passados chegou-se a nova descoberta:
a aguardente.
Era melhor, não duvidemos, mas realmente não era o desejado.
Faltava a água. Definitivamente.
As civilizações pastoris, no seu nomadismo constante,
descobriram, acidentalmente, a água-bórica que,
aliás, nunca serviu para nada. Coisas de nómades.
Foi então que no seio das culturas orientais
mais avançadas tecnologicamente,
surgiu a grande invenção:
um misterioso pó branco que,
deitado em mínima quantidade num litro de água,
o convertia,
quase milagrosamente,
num litro de água.
ESTAVA INVENTADA A ÁGUA
Inicialmente rara e só usada para fazer vinho,
tornou-se no entanto com o desenvolvimento industrial,
bastante acessível e abundante.
Ergueram-se os primeiros lagos,
deu-se início aos rios pequeninos e,
finalmente surgiram os rios maiores,
aqueles muito grandes,
que consta várias pessoas já terem visto por aí.
Este progressivo desenvolvimento líquido
teve como consequência
o aparecimento de poderosas civilizações marítimas,
que se desenvolveram de tal maneira que nos puseram
no brilhante estado em que nos encontramos.
É o que fazem as invenções.
No entanto, e mesmo com a atual abundância,
não devemos abusar, dada a tremenda
explosão demográfica que se está registando.
Parece-nos mais prudente beber gin. Sempre.
Mário-Henrique Leiria
in Obra Completa - A Poesia, vol. II (inclui poemas inéditos),
org. Tania Martuscelli
2018 (póstumo)
De Bauman, sublinho a verdade que procuro contrariar no meu dia-a-dia (por mais que haja quem me queira lembrar trabalho, quando dele saio); de Mário-Henrique Leiria, fica, por ora, a escuta, a leitura e o brinde, com gin (já que, de água,... nada!)
Dois tempos, dois seres, dois apontamentos... à guarda de melhores ventos.
Mário-Henrique Leiria. Lembro A Velha e a Nêspera na contracapa do livro de filosofia. Dispunha. E tinha tudo a ver.
ResponderEliminarDesconhecia "A Invenção da Água" que o inexcedível Mária Viegas faz brilhar eloquentemente. Quanto a Bauman, é um triste facto que a humanidade - ainda - pode contrariar.
Sinto que, às vezes, somos arrastados para um tipo de despersonalização assustadora, para a qual os mais próximos nos empurram. Ainda assim, contrariemos.
EliminarObrigado.
Contrariemos, pois!
ResponderEliminarBom Dia