Em horas de tristeza, ainda há palavras, discursos que deixam esboçar alguma lágrima de alegria.
Esta foi a sensação no final de um discurso de Gabriela Canavilhas (Ministra da Cultura) que teve tudo menos o tom fúnebre que, naturalmente, se impunha à morte de José Saramago.
Natural foi mais o registo de homenagem, de cerimónia ao Homem, na constatação de uma velhice de mãos dadas com a infância; no ecoar de uma obra que se fez qual hora de conto ("Era uma vez..."); no constrangimento de uma morte que tanto celebrou a vida, lembrando a avó Josefa (que, aos noventa anos, dizia que o "mundo é tão bonito e eu tenho pena de me ir embora") ou o avô Jerónimo (que se despediu das árvores que havia plantado e chorou por saber que não mais as veria).
Um fim com a solenidade merecida, não por um escritor, mas com o escritor; um recomeço com a Literatura, o Homem e o Ambiente, tomando o Verbo no princípio.
«Era uma vez um rei que fez promessas de levantar um convento em Mafra, um soldado maneta, uma mulher que tinha poderes, e um padre que queria voar numa Passarola e que morreu doido;
Era uma vez Jesus, que disse a Maria Magdalena - “quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos”;
Era uma vez um cão que lambeu as lágrimas a uma mulher desesperada num mundo de cegos, desejando também cegar para ser poupada aos horrores que a vista lhe trazia;
Era uma vez a morte, que tinha um plano e que o cumpriu – abraçou-se ao homem sem que ele compreendesse o que lhe estava a suceder, e ela, a morte, que nunca dormia, deixou descair suavemente as pálpebras enquanto adormecia; no dia seguinte, ninguém morreu;
Era uma vez um homem, que quando morreu, partiram duas pessoas: saiu ele, de mão dada com a criança que foi – tal como o próprio José Saramago previu, nas suas próprias palavras.
Era uma vez e tantas outras vezes, o respeito à terra e aos homens, a luta contra as injustiças, a defesa dos direitos humanos, a denúncia contra a guerra do Iraque ou contra a ocupação palestiniana, as causas dos Sem Terra, do movimento anti-globalizante, da preservação do ambiente, ou do anti-clericalismo desassombrado.
Estas e tantas outras, foram as histórias com que o ateu místico, religioso laico, interrogador de Deus e dos homens, José Saramago, “comunista hormonal” nas suas palavras, questionou Portugal e o mundo incessantemente, directa ou metaforicamente.
A liberdade do pensamento define o criador: Saramago foi voz lúcida, inconformada, firme, insubmissa na luta contra a desigualdade entre os homens – esta sim “a verdadeira miséria”, dizia.
Parte da imensa receptividade que as suas obras têm merecido em todo o mundo, e que a atribuição do Nobel cimentou e glorificou, deve-se a esse carácter humanista, à esperança que a sua obra impõe ao Homem.»
(excerto do discurso)
E com palavras simples tanto se disse.
Gostei do discurso a um Homem de escrita e pensamento universais. Por isso, obrigado, Senhora Ministra.
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