"No dia seguinte ninguém morreu" - início para um romance de José Saramago (2005); início e fim para a representação de uma peça, inspirada nesse romance e encenada numa coprodução do Ítaca Teatro de Itália, da Associação Cultural Quinta Parede e da companhia Trigo Limpo.
Uma reflexão sobre a vida, a morte, a linguagem e o amor, mais o sentido ou a falta dele na nossa existência: eis aquilo a que o espectador assistiu no Teatro Carlos Alberto, no âmbito do FITEI, numa representação dinamizada pelos atores Ginni Bissaca, Marco Alotto e Sara Alzeta, em franca fidelidade à narrativa de Saramago (muito bem conseguida no tom e no conteúdo do texto-base).
A celebração da vida, com requintes e prazeres, é a imagem de partida; todavia, é a morte que o Nobel português da Literatura foca como tema fulcral, nas relações que mantém com a organização da vida, dos sentimentos e da expressão de poder. Farta de ser temida e indesejada pela Humanidade, a "Senhora Foice" suspende a sua ação e, num certo país, ninguém morre. Do fervor patriótico ao grave problema o passo é curto, denunciando-se os interesses que o Estado, a Igreja e o comum dos cidadãos revelam para com ela.
Retomada a normalidade, é risível (porque nos rimos daquilo que nos assusta?) a ideia de a Morte anunciar uma semana antes o seu propósito, em carta de cor violeta. Como comunicar não é fácil, é desafiadora a devolução da carta à própria Morte (Bem feito! Como sairá ela disto?).
«Sobre a mesa há uma lista de duzentos e noventa e oito nomes, algo menos que a média do costume, cento e cinquenta e dois homens e cento e quarenta e seis mulheres, um número igual de sobrescritos e de folhas de papel de cor violeta destinados à próxima operação postal, ou falecimento-pelo-correio. A morte acrescentou à lista o nome da pessoa a quem se dirigia a carta que tinha regressado à procedência, sublinhou as palavras e pousou a caneta no porta-penas. Se tivesse nervos, poderíamos dizer que se encontra ligeiramente excitada, e não sem motivo. Havia vivido demasiado para considerar a devolução da carta como um episódio sem importância. Compreende-se facilmente, um pouco de imaginação bastará, que o posto de trabalho da morte seja porventura o mais monótono de todos quantos foram criados desde que, por exclusiva culpa de deus, caim matou a abel. Depois de tão deplorável acontecimento, que logo no princípio do mundo veio mostrar como é difícil viver em família, e até aos nossos dias, a cousa tinha vindo por aí fora, séculos, séculos e mais séculos, repetitiva, sem pausa, sem interrupções, sem soluções de continuidade, diferente nas múltiplas formas de passar da vida à não-vida, mas no fundo sempre igual a si mesma porque sempre igual foi também o resultado. Na verdade, nunca se viu que não morresse quem tivesse de morrer. E agora, insolitamente, um aviso assinado pela morte, de seu próprio punho e letra, um aviso em que se anunciava o irrevogável e improrrogável fim de uma pessoa, tinha sido devolvido à origem, a esta sala fria onde a autora e signatária da carta, sentada, envolta na melancólica mortalha que é seu uniforme histórico, com o capuz pela cabeça, medita no sucedido enquanto os ossos dos seus dedos, ou os seus dedos de ossos, tamborilam sobre o tampo da mesa.»
E quando esta se disfarça de mulher sedutora, promovendo maior aproximação a um violoncelista, é este último que a domina, a seduz, fazendo-a destruir a carta violeta a ele destinada - e, assim, "No dia seguinte ninguém morreu".
Circularidades... tal como os ciclos de vida que se repetem, nas rotinas que se impõem e/ou nas novidades que dão outra perspetiva ao que o eterno tempo pode, por alguma boa e harmoniosa razão, deixar ecoar.