O tema dos exames é a cada ano mais controverso, particularmente quando os resultados ficam aquém do muito trabalho desenvolvido pelos professores junto dos alunos.
Neste apontamento, não posso deixar de assumir alguma previsibilidade face à média nacional dos resultados de Português (1ª fase) no Ensino Secundário hoje publicitada. Bastou para tanto ter conversado, durante a semana, com alguns profissionais de vários pontos do país e ter chegado a conclusões coincidentes face àquelas que fui construindo enquanto corrector de provas.
Entre as coincidências, houve reflexões e discussões que se orientaram para vários níveis de ac(tua)ção:
I - ao nível da elaboração dos exames:
a) o reconhecimento da insistência numa instrução apoiada na referência a sensações (questão 1 do Grupo I), à semelhança do sucedido há um par de anos numa outra prova de exame, restringindo tal referência a um sentido físico (conforme se configurará em cenário de resposta previsto e sublinhado pelo GAVE, não obstante a consideração de outras possibilidades de resposta sustentadas no que qualquer falante pode encontrar numa entrada de dicionário: também há sensação de movimento, de paz, de tranquilidade, de angústia, apoiada em sentimento - o que, aliás, é palavra-chave para o trabalho poético de um Álvaro de Campos menos sensacionista, mais angustiada e existencialmente dominado pelo sentimento e pela consciência singular e diferenciadora face 'ao outro');
b) a formulação de uma instrução com um grau de complexidade e abstracção capaz de constituir um interessante desafio para um óptimo leitor, inclusivamente um professor de Português (que precisa de dominar bem algumas considerações teórico-filosóficas para dar resposta à relação solicitada) - mais do que instrução para diferenciação de desempenhos de alunos, a questão 4 do Grupo I é já óptima para distinguir muito professor ou aluno de literatura no ensino superior;
c) a orientação temática da produção escrita extensa do Grupo III (acerca da literatura), apoiada numa citação que apontava para uma questão precisa acerca da importância e da modelação que aquela permite ao conhecimento humano (ganhar-se-ia mais com uma citação mais genérica, com uma maior sustentação argumentativa nos valores, nos temas, nas apreciações / depreciações das obras que estiveram na base de experiências de leitura ao longo do ano e/ou do ciclo de escolaridade);
II - ao nível da formação (obrigatória) implementada para os docentes que exercem a função de correcção:
a) o sentido de rigor e de exigência propagado numa formação que focalizou a necessidade da fiabilidade e acabou por apostar mais em processos e metodologias de trabalho tendencialmente individuais e/ou de moderação à distância (só contrariada por alguns voluntários, cujas necessidades conduziram à constituição de parcerias com "amigos críticos");
b) o trabalho de aferição de critérios menos apoiado nas provas que são objecto de avaliação / classificação em detrimento do que se faz com experiências anteriores de exames, sempre no confronto do que são propostas de classificação individual, de classificação de grupo, da classificação do professor-corrector, da classificação atribuída pelo GAVE: mantém-se a constatação da disparidade, do que pode ter levado a cotar com X ou Y, do que deve ser evitado (ainda que nem sempre consensual, face a representações diferentes das práticas e dos agentes instituintes relativamente às dos órgãos instituídos);
c) a consciência de que não há critérios explícitos consistentes na selecção dos professores-correctores indicados pelas escolas, sendo estes chamados a exercer uma função pela qual são responsabilizados, sem qualquer tipo de feedback directo ou imediato face ao trabalho que desenvolvem ou às classificações que atribuem (o que virá a cruzar-se com o nível V das considerações abaixo listadas);
III - ao nível dos critérios facultados para correcção das provas:
a) a permanência de descritores de desempenho pouco consistentes e esclarecedores para o exercício de classificação, atendendo aos enunciados descritivos formulados;
b) a tipificação de cenários de resposta, sempre que questionada para poder abranger outros tópicos / outros dados / outros conhecimentos (por vezes relacionáveis e ajustáveis), é dificilmente entendida pelas estruturas de controlo numa atitude de abertura e ajustamento, preterindo-se frequentemente hipóteses que se revelam válidas (por inferências, associações, analogias);
c) o relevo dado a um conjunto de palavras ou termos-chave cria disparidades frequentemente incompreensíveis, no que diz respeito à lógica de raciocínios utilizada por aqueles que adoptam estratégias de aproximação à resolução;
IV - ao nível da resolução das provas, a reflectir algumas práticas e/ou orientações muito pouco desejáveis:
a) a constatação de um problema maior que, a não ser subjectivo, evidencia um grande conjunto de respostas de alunos com dificuldades em termos de estruturação discursiva, lógica, coerente e coesa; de extensão frásica; de descodificação de metalinguagem específica ao nível do conhecimento explícito da língua; de regras básicas de pontuação, acentuação e ortografia; de selecção vocabular;
b) o desconhecimento claro de níveis de análise distintos em termos da língua e das suas realizações literárias;
c) o reconhecimento crescente de uma selecção de informações acríticas, listadas em respostas que se revelam desajustadas, sem qualquer tipo de relação ou implicação lógica face ao que é lido no texto e/ou solicitado nas instruções (
questões de imediatismo e abordagens redutoras);
d) a aposta necessária em mais tempo para que se processe o trabalho de pensar, reflectir e logicamente argumentar face a situações que constituam problemas para a aprendizagem dos alunos - os menus, as listas de verificação descontextualizadas, as tarefas simples e avulsas nunca fizeram ninguém aprender (quando muito ajudaram a fazer passar o tempo e a iludir o incauto de que havia uma maneira de se tornar 'chico esperto');
V - ao nível da peritagem de resultados e sua orientação para processos de reclassificação:
a) a factualidade da classificação múltipla (com reclassificações que apontam para intervalos diferenciais de seis ou mais valores);
b) o incumprimento das instruções básicas de correcção (como as que se prendem com a não sinalização de erros, a indicação de cotação não diferenciada em termos de conteúdo, estruturação discursiva, correcção linguística sempre que tal é pedido);
c) a falha / a falta de profissionalidade evidenciada pelas alíneas anteriores e pela desconsideração total dos critérios de exame - o que só posso ou quero ver enquanto sinal de insatisfação face às condições em que todo este trabalho é exigido a alguns (não a todos) que ganham exactamente o mesmo daqueles que não têm de o fazer - mas não é certamente com as classificações dos alunos que tal se pode evidenciar (ainda que o princípio de não prejudicar ninguém tenha sido seguido como princípio geral e, a priori, de forma bem intencionada).
Em síntese, os exames estão a tornar-se, cada vez mais, um mal geral; cada vez menos fiáveis e menos legitimadores da real diferenciação entre os desempenhos essenciais dos que aprendem e/ou os dos que sobrevivem num campo de imensas areias movediças ou
aranhiças teias.
Se Camões dizia "Perdigão perdeu a pena / Não há mal que lhe não venha", eu acho que alguém (ou muitos alguéns) anda(m) a querer fazer de Perdigão. Pena é que alguns destes tenham de ser os alunos, num momento decisivo das suas vidas.