quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Vá de retro!

            2020, vai-te embora!

         Foi tão indesejável que percebo aqueles que dizem que houve janeiro, fevereiro e dezembro. Quase um ano inteiro preso a uma máscara, confinado, com restrições e grandes limitações no sentido de felicidade e liberdade.
         Para o novo ano não tenho desejos. Talvez haja uma leve esperança... leve. Gostava que fosse sólida. É mais gasosa, talvez líquida pela força da vontade. Solidez não!

Onde chega a onda?

         De resto, não formulo desejos. Tal como Tchékov, nalgumas das suas peças, prefiro o silêncio: o som mais eloquente de todos, para todas as circunstâncias (nomeadamente esta, a do começo de um novo ano). O silêncio.
        Sinto-me qual gaivota sobre um lago. Sem terra, sem mar. Por ali, algures, num espelho estagnado, em imagem parada, à espera de melhores dias (Venham eles)!
          Escrevo na areia 2020. Venha o mar...
          Segue-se 2021. Onda, onde chegarás?

          2021... sei lá que diga!

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Ainda Lídia...

        Depois de um primeiro apontamento, persiste a curiosidade sobre Lídia (seja ela quem for,... ou não)!

      Tudo a propósito de uma pergunta avançada por alguém que "viaja nesta carruagem": quem é Lídia nas Odes de Horácio e em Sophia de Mello Breyner Andresen?
    A construção da figura é precisamente isso: uma construção poética, literária, simbólica, um tópos delineado como personagem que autores, ao longo dos tempos, foram e vão configurando na memória coletiva da literatura universal. No fundo, constitui-se como uma espécie de código para representar temas, ideias que transcendem o tempo e traduzem uma herança cultural e literária da Europa latina.
        Lídia não é ninguém, com a possibilidade de, potencialmente, ser toda e qualquer pessoa. É o resultado criativo de um autor clássico - Horácio - que associou à criação o que deixa ler nos seus versos, mais precisamente, uma conceção do que é o amor e a paixão amorosa na vida de qualquer um. Entre a expressão explícita de um sentimento numa visão conformada de sentido estoico-epicurista e o retrato polifacetado de uma personagem que, à moda pessoana, pode implicitamente ser a descentração do próprio 'eu' criador, tudo pode caber no jogo do fingimento artístico que a literatura, em geral, e a poesia, em particular, são.
      Nas Odes horacianas, Lídia é objeto de recomendações, avisos, chamadas de consciência no domínio amoroso (o amor que se transforma, numa espécie de feitiço que se vira contra o feiticeiro; que faz negligenciar o dever, os compromissos, percursos de vida mais dedicados ao esforço e à disciplina; que se revê nos perigos ora da sedução - de que Lídia é mestre - ora do abandono - dos por ela seduzidos; que, irascível e leviano, desconcerta, mas já permitiu vivências de comunhão entre amantes tão diferentes; que se molda numa expressão tensa, dramática e, por isso, também fonte de ação e de vida). É também ela sujeito de uma voz diretamente representada, no diálogo com um 'eu' (na ode nona do livro III), a sublinhar que o presente bem diverso nas representações do amor não impediu um passado de conjugação e felicidade partilhadas. 
       Em suma, mais do que quem é, Lídia representa a súmula dos diferentes matizes de um sentimento plasmado, na sua diversidade, desde as letras da Antiguidade. Neste sentido, ela é ciclicamente revisitada por autores que leram Horácio e/ou pertencem a uma tradição cultural e literária comuns, mesmo quando eles se assumem como distintos, mas nem sempre distantes, de uma cosmovisão clássica (como é o caso do romântico Garrett, cuja educação não deixou de ser por ela marcada).
     Sophia está neste percurso de revisitação, tanto por alguma referencialidade e inspiração clássicas da sua obra como pela experiência de leitura que espelhou influências e reações. Seja por acesso direto a autores clássicos seja por leitura mediada (por exemplo, do heterónimo pessoano Ricardo Reis), a autora de Dual (1972) recuperou essa personagem horaciana, que Reis retomara, acrescentando-lhe cambiantes um pouco desafiadores face à (re)visão proposta por quem havia escrito "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio". Diferente deste, Sophia alerta Lídia para os perigos da resignação, do comedimento, de uma ataraxia que impedem a ação ou a vontade de agir; avisa-a de que não pode acreditar naquilo que outros fizeram crer ("Não creias, Lídia, que nenhum estio / Por nós perdido possa regressar"). Ao contrário de Reis, não é desejável que ela fique pela contemplação do rio, com as mãos desenlaçadas, numa tranquilidade ou serenidade estagnantes. O convite, agora, é para ela se atirar ao rio e acompanhar o fluir da vida. Nova é a mensagem: aquela que permite a mudança, a celebração, o festejo, o carpe diem que o heterónimo pessoano conheceu, mas evitou (enquanto estratégia de sobrevivência), para obsessivamente não sofrer ou não perder muito à hora da morte.

      À pergunta 'Quem foi Lídia?', uma bem mais importante interessa considerar: 'o que esta representa na tradição artística, cultural, literária, nessa herança latina a todo o tempo revisitada?' Onomasticamente, diz-se que Lídia significa 'aquela que tem as dores do parto'. É, portanto, aquela que traz e origina vida. Metaforicamente é aquela que se identifica com a vida e como esta é percecionada por quem dela / para ela escreve.
 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

(Re)viver o Natal, a saber a mar.

      O Natal já passou!

      Repete-se, sempre que é possível juntar amigos, ainda que à distância desejada para o bem de todos.
    A vontade dos abraços é grande, os sorrisos e as gargalhadas estão mais contidos, mas escapam sempre aqueles ou aquelas que aquecem o momento.
    O convívio é controlado, mas o instante das trocas de prendas é sempre o mais confuso, por causa do entusiasmo de dar e receber - trocar na vontade do que se fez, do que se comprou, do que se escolheu para o(s) outro(s) que faz(em) parte de nós. É como se revivêssemos esse tempo genuíno da infância e da ânsia de descobrir o que está dentro do embrulho. Rasga-se o papel, abrem-se os sacos, revela-se o que é, agradece-se e promete-se que, no próximo ano, vamos repetir tudo bem juntos (o que já é impensável não acontecer).
    Veio a "Prenda natalícia", como muito mar (que rima com amar - esse sal de vida a temperar a amizade). O verdadeiro natal é estar(mos) junto(s) e dar o que saiba a mar:

Um natal tão típico no atípico que foi - montagem de fotos (VO)

         Com Covid, sem Covid, não interessa. Desde que aconteça!
      (A trabalheira que me deu ir à praia, apanhar conchas e substituir aqueles típicos papeluchos a indicar 'De:...' e 'Para:...'! Que me perdoe o comércio destes tempos, mas gosto mais, é mais natural e também gratuito. Escreve-se o nome dos amigos e sempre se dá uma prenda com um pouco de praia, de mar, a lembrar verão, nestes dias de inverno).

     Já lá vão três dias; mas Natal é quando o Homem quiser (na companhia daqueles com quem queremos conviver)!

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Natal em concha

      Tão pequeno na sua grandiosidade!

      Grandioso rima com gracioso. O meu presépio tem as duas qualidades de tão pequenino que é.
      Ganhei-o como presente, embrulhado nas cores natalícias que também são nacionais:

A concha da vida em tempo de Natal (Foto VO), 
com o agradecimento pela lembrança amiga da E.P.

    É pequeno como as personagens humildes nele representadas, tão grandes para o mundo.
    Inspira fragilidade, mas é o exemplo de humanidade que nem sempre os humanos seguem.
    Um bom Natal para todos, em tempos tão críticos que permitam a descoberta do que verdadeiramente interessa: uma concha de vida para vida.

     Vale este tempo para isto lembrar: a concha da vida que, ao Homem, o tempo convida à hora de nascer, para a cada instante revivescer.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Um espaço a várias cores

           Quando no mesmo local, o tempo passa...

        Só o mar vai e vem junto à praia. Talvez também não seja mais o mesmo, ainda que os olhos pareçam ver a mesma água. Não é a do rio, que flui para o mar. Dela, Heráclito de Éfeso dizia “Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras.” Em suma, ninguém se banha duas vezes na mesma água do rio - a constatação da fugacidade do tempo, da volatilidade da vida.
          Há bancos, porém, que se mostram à espera de quem neles se sente. Assistem a quem passa, ao ir e vir das ondas; ao sobrevoar do sol; às nuvens que surgem e se dissipam; ao correr das estações.

Um banco mirando o espetáculo da natureza (Foto VO)

Um banco mirando o espetáculo da natureza (Foto VO)

         Estão bancos distintos nas cores do(s) dia(s), quando uma só nuvem faz a diferença. Talvez sejam outros, sem o parecer no correr do dia-a-dia ou dos meses; lá ficarão no devir de muitos anos. 

          ..., há quem por lá fica, aos poucos, e vai deixando de ser o mesmo.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A propósito de choques... (no plural)

      "Chocada" por chocado, resta dizer que já somos dois em choque!

     Lido um 'briefing' noticioso do dia, chama-me a atenção o título de alguém que se diz chocado. Acabei por ficar da mesma forma, mal assimilei o conteúdo do texto:

Um 'briefing' a correr o risco de nunca mais acabar...

      Nem sei por onde começar. Vamos por ordem. 
    Primeiro, uma construção relativa que não dá lugar à devida anteposição do pronome 'se' ( > "... dentro do qual... se mantém..."); depois o conectivo aditivo "não só... mas também..." que, na sua composição correlativa, não deve dar lugar a separação por vírgula; por fim, a extensão frásica de todo o apontamento a encadear orações sucessivas, umas atrás das outras, num comboio que parece não ter fim. Bem digo aos alunos que, ao escreverem, duas / três linhas, há que parar, para dar fôlego à escrita e o leitor não sufoque. Duas, três orações e chega! Colocar ponto e recomeçar a construção de novo período com pensamento completo (princípio-meio-fim). Não só a extensão excessiva começa a comprometer a inteligibilidade informativa como também o erro se torna previsível: aquele 'onde' a retomar 'autoridades gregas' é, no mínimo, duvidoso. E, logo a seguir, está para surgir nova subordinada introduzida por um 'que', mais uma coordenada com um 'e', e sabe-se lá o que mais virá (viria).

       Pelos vistos, o choque não é só da Srª. Secretária de Estado. É também meu, por um 'briefing' que não é tão breve quanto isso. Portanto, um mau exemplo de escrita.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Onde está o Ernesto?

        O tempo anda muito depressivo!

        Depois de ter sido anunciada a Dora (que me fez lembrar a letra de uma canção, em versão feminina: Não sejas má p'ra mim!) para o fim de semana passado, eis que chega, agora, a depressão Ernesto, com chuva, neve, vento e marés altas.
        Isto de as tempestades e as depressões terem nomes próprios tem a sua piada (estou à espera de uma com o meu nome)! Nem por isso é a graça dos efeitos que provocam.
         Talvez por isso, hoje, o céu estava um autêntico borrão; ou melhor, manchado de alguns borrões bem coloridos:

Borrões celestes (Foto VO)

         E lá estava ele, o sol, entre os escuros, a espreitar, como que à procura do Ernesto:

À espreita entre escuros - onde anda o Ernesto? (Foto VO)

         Lá virão mais uns dias inverniços, invernengos ou inverneiros, mesmo quando estamos no (final do) outono. Poderia escrever 'invernosos', mas apeteceu-me variar. É favor não reagir mal aos meus adjetivos, que hoje ouvi o nosso Presidente da República anunciar a sua recandidatura, para não "instabilizar" a situação nacional (pelo menos, os meus adjetivos estão dicionarizados)! 

         Deve ser do inverno que aí vem.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Do bem e do mal (ou afins)

           Tudo depende por onde se começa.

      Cruzei-me (não sei se por oportunidade ou ironia do momento) com um livro intitulado Poemas do Bem e do Mal. O autor, Max Miliano (pseudónimo de Alan de Souza), propõe uma antologia poética em três capítulos, cada um dos quais a abrir horizontes para a espiritualidade e o lirismo, entre os vícios e as virtudes humanas, na busca de um equilíbrio entre forças ou energias (um pouco de yin e yang, de sombra e luz). Trata-se de poesia urbana (não sei se de urbanidade), de versos do mundo e de vida alternativos; de vida contemporânea, feita de bem e de mal - em contraste e em complemento.
       Quero acreditar que o mal existe porque há o bem (e não o contrário). Pode ser crença, assumo; mas é bem mal que este último esteja no princípio de tudo. Mal gera mal; é tóxico. Bem, por princípio, dá lugar a novo bem, à predisposição para se ser (mais) feliz e fazer (mais) felizes os outros - um sentido de humanidade, portanto. Sei que o bem cansa e pode fazer com que alguns dele suspeitem (por o associarem a motivos outros que não o do próprio).
        Gente que faz bem nunca devia ser chamada pelo bem que fez, julgada pelo mal que outros dizem ter sido feito. E se tal é dito é porque se desvaloriza o bem (intencionado) que houve, apostando no mal (insignificante) que nunca existiu e, por alguma razão, despropositadamente se sentiu.
        Bem melhor seria que este mundo ficasse livre do mal. Já que tal parece ser difícil, procure-se (ver e ouvir) o bem para que o mal não resista nem persista.

         No bem que se faz há que dirimir o mal. O mal não é bem que alguém queira (talvez seja levado a ele por uma desconfiança doentia).

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

No vaivém da chuva, do mar e das gaivotas

     Uma paisagem familiar, entre o estado goticulado e o molhado.

     O tempo de inverno, em despedida de outono, está aí e poucos podem já ser os passeios, a não ser nos intervalos dos chuveiros que ora vêm ora se vão. 
    Assim que chegam, as gotículas de chuva colam-se aos vidros; escorrem algumas, aqui e além, deixando ainda ver o que está para lá delas:

Num dia de chuva, para lá dos vidros (Foto VO)

      A paisagem conhecida ganha outra visão, como que pintalgada; melhor, goticulada. 
      Para a chuva e o sol deixa-se ver, como um remendo, num pano de fundo de nuvens escuras:

Um passadiço à beira-mar - I (Foto VO)

            Uma gaivota aparece para a composição do "quadro"; outras seguem-na:

Um passadiço à beira-mar - II (Foto VO)

        E já não é só a diferença das aves. São as cores, as nuvens continuamente a mudar (sim, não é apenas a mudança no olhar)!

Um passadiço à beira-mar - III (Foto VO)

       Entre o chão e o céu, há um mar imenso para contemplar: vai e vem sem voar; não é gaivota, mas é livre no seu ondear; não é nuvem, mas tem as cores desta a deslizar; há de ter o sol a nele se deitar; a linha do horizonte esconderá, assim que o escuro da profunda noite chegar.

        Qual Caeiro, diria que, a cada instante, a paisagem familiar (re)nasce; a cada piscar de olhos, a eterna novidade do mundo acontece.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Ilustração bem exemplificativa

      Assim ma foi dada a ver.

     Este, sim, é o caso de um verdadeiro "influencer" (com um "follower" à altura):

Os verdadeiros "influencers" - os que testemunham o bom exemplo 
(recolhido do Facebook)
  
   Já alguns, ou algumas que se dizem como tal, deixam muito a desejar - então aqueles(as) que aparecem na televisão, a perorar acerca dos comportamentos dos outros, são uma lástima!

    Tudo isto porque me perguntam se eu vejo certos programas que, por princípio, nem deviam existir (estou aqui estou como eles, a perorar sobre o que não vejo nem quero).

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Da Restauração da Independência Ao Peso De Uma Ausência

     É dia feriado, para celebrar a restauração da independência nacional; é dia de pesar, pelo anúncio da morte de um grande intelectual.

    Aos 97 anos, faleceu Eduardo Lourenço. Dizem-no ensaísta, pensador, filósofo, crítico literário, escritor, interventor cívico, conselheiro de Estado. E, indubitavelmente, o foi. Sublinho o facto de, em tudo isso, ter sido um Professor.
    Para quem dizia que não sabia fazer "outra coisa a não ser pensar", tomava este ato como o do "diálogo que temos connosco próprios". Era um pensador que parava para pensar, que buscava as melhores palavras para exteriorizar, traduzir um pensamento à espera da luz do dia. Da morte, dizia que não é pensável"; "é só uma coisa que falta, que nós nos estamos faltando". É tomada, assim, como "só isso: uma ausência. E essa ausência não pode ser dita, não pode ser escrita".

    Eduardo Lourenço - retrato pintado por Bottelho

     Na sequência da ausência neste dia, o Professor Carlos Reis relembra um episódio da vida de Eduardo Lourenço, quando este, no ano de 2010, pelo funeral de José Saramago (20 de junho), adquiriu, numa livraria, um exemplar do Memorial do Convento. Na folha de rosto escreveu: “Agora terás a eternidade para leres a maravilha que escreveste”. Instantes depois e de modo reservado, Eduardo Lourenço introduziu o romance na urna do nobel da literatura português. Pouco antes da cremação, evocava, assim, e singelamente, a eternidade, para reconhecimento da grandiosidade literária de um homem e de uma obra. E, assim, o romancista foi acompanhado do que escreveu, ambos notabilizados, porque o pensador quis preencher a ausência com o maior dos presentes: o d(e um)a obra d(e um)a vida.

       Grande gesto de um homem grande. Obra bem escolhida (eu escolheria outra) para um romancista que Eduardo Lourenço talvez quisesse ter sido, mas preferiu pensar a vida, o Homem, Portugal e Ser Português no Mundo.