Tudo a propósito de uma pergunta avançada por alguém que "viaja nesta carruagem": quem é Lídia nas Odes de Horácio e em Sophia de Mello Breyner Andresen?
A construção da figura é precisamente isso: uma construção poética, literária, simbólica, um tópos delineado como personagem que autores, ao longo dos tempos, foram e vão configurando na memória coletiva da literatura universal. No fundo, constitui-se como uma espécie de código para representar temas, ideias que transcendem o tempo e traduzem uma herança cultural e literária da Europa latina.
Lídia não é ninguém, com a possibilidade de, potencialmente, ser toda e qualquer pessoa. É o resultado criativo de um autor clássico - Horácio - que associou à criação o que deixa ler nos seus versos, mais precisamente, uma conceção do que é o amor e a paixão amorosa na vida de qualquer um. Entre a expressão explícita de um sentimento numa visão conformada de sentido estoico-epicurista e o retrato polifacetado de uma personagem que, à moda pessoana, pode implicitamente ser a descentração do próprio 'eu' criador, tudo pode caber no jogo do fingimento artístico que a literatura, em geral, e a poesia, em particular, são.
Nas Odes horacianas, Lídia é objeto de recomendações, avisos, chamadas de consciência no domínio amoroso (o amor que se transforma, numa espécie de feitiço que se vira contra o feiticeiro; que faz negligenciar o dever, os compromissos, percursos de vida mais dedicados ao esforço e à disciplina; que se revê nos perigos ora da sedução - de que Lídia é mestre - ora do abandono - dos por ela seduzidos; que, irascível e leviano, desconcerta, mas já permitiu vivências de comunhão entre amantes tão diferentes; que se molda numa expressão tensa, dramática e, por isso, também fonte de ação e de vida). É também ela sujeito de uma voz diretamente representada, no diálogo com um 'eu' (na ode nona do livro III), a sublinhar que o presente bem diverso nas representações do amor não impediu um passado de conjugação e felicidade partilhadas.
Em suma, mais do que quem é, Lídia representa a súmula dos diferentes matizes de um sentimento plasmado, na sua diversidade, desde as letras da Antiguidade. Neste sentido, ela é ciclicamente revisitada por autores que leram Horácio e/ou pertencem a uma tradição cultural e literária comuns, mesmo quando eles se assumem como distintos, mas nem sempre distantes, de uma cosmovisão clássica (como é o caso do romântico Garrett, cuja educação não deixou de ser por ela marcada).
Sophia está neste percurso de revisitação, tanto por alguma referencialidade e inspiração clássicas da sua obra como pela experiência de leitura que espelhou influências e reações. Seja por acesso direto a autores clássicos seja por leitura mediada (por exemplo, do heterónimo pessoano Ricardo Reis), a autora de
Dual (1972) recuperou essa personagem horaciana, que Reis retomara, acrescentando-lhe cambiantes um pouco desafiadores face à (re)visão proposta por quem havia escrito "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio". Diferente deste, Sophia alerta Lídia para os perigos da resignação, do comedimento, de uma ataraxia que impedem a ação ou a vontade de agir; avisa-a de que não pode acreditar naquilo que outros fizeram crer ("Não creias, Lídia, que nenhum estio / Por nós perdido possa regressar"). Ao contrário de Reis, não é desejável que ela fique pela contemplação do rio, com as mãos desenlaçadas, numa tranquilidade ou serenidade estagnantes. O convite, agora, é para ela se atirar ao rio e acompanhar o fluir da vida. Nova é a mensagem: aquela que permite a mudança, a celebração, o festejo, o
carpe diem que o heterónimo pessoano conheceu, mas evitou (enquanto estratégia de sobrevivência), para obsessivamente não sofrer ou não perder muito à hora da morte.
À pergunta 'Quem foi Lídia?', uma bem mais importante interessa considerar: 'o que esta representa na tradição artística, cultural, literária, nessa herança latina a todo o tempo revisitada?' Onomasticamente, diz-se que Lídia significa 'aquela que tem as dores do parto'. É, portanto, aquela que traz e origina vida. Metaforicamente é aquela que se identifica com a vida e como esta é percecionada por quem dela / para ela escreve.