sábado, 31 de maio de 2025

Pediram-me para ler...

       ... e não me fiz rogado.

     Aquando da apresentação de VINTE SONETOS e outros poemas, de Manuel Maria, no Auditório da Biblioteca Municipal de Gondomar, durante a tarde de hoje, li dois dos textos poéticos compilados na obra. Tinham-me pedido um, mas, como ando um insubordinado e insubmisso, decidi abusar e dobrei a parada.
     Contrariei, inclusive, a ordem do título, iniciando pelo único dístico presente na secção (segunda) intitulada "outros poemas". Enquanto leitor de Sophia, relembrei o facto de os poemas mais curtos da nossa poeta apresentarem uma profundidade de pensamento evidente, uma sabedoria que nos toca com as palavras mais singelas - lições de vida traduzidas em cerca de dois a quatro versos. Fica, portanto, provado que a escolha não teve nada a ver com preguiça minha, mas com um capital de leitura que, de uma forma ou outra, se vai cruzando com outras oportunidades trazidas pelo próprio ato de ler.
      Também disso o Manuel Maria é capaz, pelo que, ao folhear o livro, na página 33, encontrei o texto
 
Vídeo e áudio do poema "Há tantas coisas tristes...", de Manuel Maria (maio 2025)

     A seleção reflete, por um lado, a tónica de um sentimento emergente de um mundo que nos vai deixando sinais fortes dos perigos e das ameaças que, longe ou perto, nos colocam em aviso constante e na razão da crescente consciência de que nenhuma guerra dignifica o ser humano; por outro lado, assume uma estratégia, na qual o fingimento recobre uma forma de sobrevivência, enquanto ingrediente necessário à vida e ao ato criativo, fictivo, poético, recuperando Pessoa e a génese criadora de quem "chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente" (como se lê em "Autopsicografia"). A nota de negatividade presente ao longo dos catorze versos decassilábicos, não pela forma, mas pelo conteúdo, é típica de um Manuel Laranjeira, que me persegue (n)a vida e que, na polaridade negativa, não deixa de a representar como húmus a alimentar e a valorizar o seu contrário, num caminho de idealização a fazer, a perseguir, a cumprir.
      Por extensão, e numa relação intratextual com a obra hoje dada a ler (desta feita com a parte correspondente aos "Vinte Sonetos"), reencontro novas e coincidentes dissonâncias, em versos a espelhar um sujeito poético atormentado, revoltado, caraterizado por uma disforia exógena a dominá-lo endogenamente (pág. 27):

Poema "Ingratidão" de Manuel Maria (vídeo e áudio por Vítor Oliveira)

      Eis as palavras, os versos de um sujeito poético que o Manuel Maria compôs à imagem e semelhança de um estado de espírito que vive instantes, que tem momentos feitos de opostos complementares, que busca identidades e que encontra palavras num exercício de escrita dominador: ao mesmo tempo "(a minha) cruz" e também "a luz". Na dualidade da dor rimada com amor, resulta uma tensão declarada na expressão poética, visível também ora na forma perfeita e convencionada do soneto italianizante ora na liberdade versificatória moderna (ambas usadas na publicação hoje publicitada), orientadas para Amor - Tempo - Arte. 

Obra poética de Manuel Maria, dedicada "A todos os que, na leitura e na escrita, se sentem com alma de poeta".

    Estas são as linhas com que, acronimicamente, o sujeito poético (também o poeta,... também o Manel) se ATA(m): na multiconfiguração e plurivalência do Amor; na inexorável, mas profícua passagem do Tempo; na exploração e na entrega à Arte (da palavra alada).

      De novo, relembrando Sophia e "Epidauro 62", ecoam versos: "Oiço a voz subir os últimos degraus / Oiço a palavra alada impessoal / Que reconheço por não ser já minha". A apresentação feita por Ana Maria Cardoso e a estratégia feliz da leitura a várias vozes amigas resultaram, sobretudo, em "partilha poética", em leituras e interpretações de muitos, conduzidas por esse fio de Ariadne a permitir o (re)encontro com a escrita e a leitura, num coro pintado de vozes, tons e cores a matizar uma co-autoria polifónica a diferentes tempos.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Pedro Lamares na Laranjeira

       Chegou o momento de o rever: um ex-aluno da escola.

      O reencontro aconteceu graças à iniciativa do grupo disciplinar de Português, que preparou, junto com a Coordenadora da Biblioteca do Agrupamento e o Departamento de Línguas, uma sessão para o programa que constituiu a celebração da Semana da Língua Portuguesa (onde se inclui o dia 5 de maio, o Dia Mundial da Língua Portuguesa).

Reencontros num "Passei por aqui" que honra o AEML (com Pedro Lamares)

     Um ex-aluno da Escola Secundária Dr. Manuel Laranjeira deu-se a conhecer aos que hoje frequentam o agrupamento, numa interação que se pautou pela abordagem de vários tópicos: a formação, as opções académicas e profissionais, o posicionamento político, o gosto pela poesia, a apresentação de programas televisivos, entre outros.
        Nascido em Portimão, Pedro Lamares cedo mudou para a Granja, tendo estudado em Espinho. Cruzou-se com as artes plásticas, a escola de jazz do Porto (1996/97), o curso de preparação para licenciatura em música sacra, até que chegou ao teatro (com formações em vários pontos do mundo). Conta, no seu currículo, a participação no Filme do Desassossego, de João Botelho (2010), onde assumiu o papel de Fernando Pessoa. Em 2015, é convidado para apresentar o programa televisivo Literatura Agora (RTP2), onde "diz" (e não declama) poesia.

Interação de Pedro Lamares com o público que assistiu ao (re)encontro

    Foram praticamente duas horas de uma conversa próxima, à qual assistiram alunos e professores, brindados com a simpatia de quem partilhou o gosto pela leitura (nesse encontro feliz do leitor com os textos, pela janela do sentido e não pelos formalismos de análise tecnicista), a natureza expressiva do discurso teatral e das experiências de leitura poética (mais ou menos marcadas por escolas e por diferentes modos de oralizar os textos), o elogio da aposta nos cursos das literaturas e humanidades. No princípio de tudo, uma visão e uma posição face ao mundo, focadas no exercício de uma cidadania comprometida com os valores que dignificam a pessoa. Em suma, uma lição para muitos, na qual a experiência de vida se cruza com o sentido (inter)artístico e político das causas comuns.
     Não terminou o encontro sem que fosse dada a conhecer uma poetisa a descobrir: Filipa Leal (jornalista, escritora portuense). Lido o poema "Manual de Despedida para Mulheres Sensíveis", ecoaram os rituais desse 'topus' literário da partida, seus motivos (imigração) e efeitos (autocontrolo), junto das que muito a sentem.
     
Espaço de cidade, espaço de mundo para o ser humano do século XXI 
(poema de Filipa Leal dito por Pedro Lamares)

       Realidade tão atual em texto tão contemporâneo: "É tanto o que se pede a um ser humano no século XXI!" 

        Manual de despedida para mulheres sensíveis 

Ser digna na partida, na despedida, dizer adeus com jeito, 
não chorar para não enfraquecer o emigrante, 
mesmo que o emigrante seja o nosso irmão mais novo, 
dobrar-lhe as camisas, limpar-lhe as sapatilhas 
com um pano húmido, ajudá-lo a pesar a mala 
que não pode levar mais de vinte quilos 
(quanto pesará o coração dele? e o meu?), 
três pares de sapatos, um jogo de lençóis, o corta-vento, 
oferecer-lhe a medalha que a Mãe usava sempre que partia 
e que talvez não tenha usado quando partiu para sempre, 
ter passado o dia à procura da medalha pela casa toda 
(ninguém sai mais daqui sem a medalha, ninguém sai mais daqui), 
pensar que a data escolhida para partir é a da morte da Mãe, 
pensar que a Mãe não está comigo para lhe dobrar as camisas 
e mesmo assim não chorar, nunca chorar, 
mesmo que o Pai esteja a chorar, mesmo que estejam todos a chorar, 
tomar umas merdas, se for preciso: uns calmantes, uns relaxantes, 
uns antioxidantes para não chorar; andar a pé para não chorar, 
apanhar sol para não chorar, jantar fora para não chorar, conhecer gente, 
mas gente animada, pintar o cabelo e esconder as brancas, 
que os grisalhos são mais chorões, dizer graças para não pôr também
os amigos a chorar, os amigos gostam é de nós a rir, ver séries cómicas 
até cair, acordar mais cedo para lhe fazer torradas antes da viagem, 
com manteiga, com doce de mirtilo, com tudo o que houver no frigorífico, 
e não pensar que nunca mais seremos pequenos outra vez, 
cheios de Mãe e de Pai no quarto ao lado, 
cheios de emprego no quarto ao lado quando ainda existia Portugal. 

É tanto o que se pede a um ser humano do século vinte e um. 
Que morra de medo e de saudade no aeroporto Francisco Sá Carneiro. 
Mas que não chore. 
                                                  
                                                   in Vem à Quinta-feira (2016: 48)

        E, no fim de tudo, despediu-se com o sorriso e a empatia que o caracterizam. Sem chorar.

    Mais uma figura de relevo nacional passou pelo agrupamento (ontem e hoje) e deixou o seu testemunho a quem o acompanhou.